5.8.08

Inês Pedrosa: "O império do anticonvencional"

O seguinte artigo de Inês Pedrosa foi publicado no Expresso, de Lisboa, sábado, 2 de agosto de 2008:


O império do anticonvencional


COMO ESCUTAR o som cristalino de uma gargalhada numa sociedade que vive sob o jugo atroador do humor obrigatório? No século XIX era de bom tom exibir socialmente um tédio imenso, como uma espécie de manto de veludo que nos erguia acima dos gozos e das preocupações do comum dos mortais. É curioso observar como essa pose serve ainda de escudo visível a grupos bem definidos e opostos entre si - uma certa direita ultraconservadora, e uma certa esquerda auto-intelectualizante. Une-os uma mesma consciência atávica de superioridade. Escreve Antonio Cicero numa das suas iluminadoras crónicas, no jornal "Folha de São Paulo" (12/7/2008): "Não vejo superioridade nenhuma na pessoa cronicamente entediada. Se alguém, para parecer superior, precisa fingir estar entediada, é porque, na verdade, se sente inferior. Seu ar entediado é uma tentativa de se vingar dessa inferioridade. Por outro lado, uma pessoa que esteja sempre ou quase sempre genuinamente entediada não pode deixar de ser, em primeiro lugar, entediante: ela é entediada exactamente porque se entedia a si própria."

Porém, o espírito futurista, cibernético, arrasador, que o novo milénio impôs como moda conduziu-nos a um novo império, só aparentemente mais criativo e lúcido do que o do tédio: o do riso generalizado. Houve um tempo em que só as actrizes de telenovela diziam, quando entrevistadas, que o que mais apreciavam num homem era essa coisa indefinível e chique, adornada por uns fumos de inteligência, a que se dá o nome de "sentido de humor". Agora os homens também já perderam a vergonha de mentir (ou, até, a genuína noção de que mentem) e respondem, olhos nos olhos, que sim, a mulher ideal é a rainha do "sentido de humor" - muito embora a Scarlett Johansson continue a ter mais procura do que a Oprah Winfrey, romanticamente falando.

Subentende-se que o riso é, por si só, uma forma sofisticada de inteligência - e toda a gente se ri de tudo, o tempo inteiro. Os militantes do humor partilham com os aristocratas do tédio uma visão catastrófica do mundo - e, como bem sublinha Antonio Cicero, "o mundo é sempre o mundo contemporâneo". Tudo está mal - menos quem denuncia o mal, colocando-se assim imediatamente acima dele. "Vivemos sob o império da convenção da anticonvenção", observa o filósofo francês Alain Finkielkraut, numa entrevista em que, com a extrema lucidez que é seu timbre, analisa as causas e as consequências da ditadura do humor no Ocidente contemporâneo. Inserida num imperdível dossiê sobre o Humor na Literatura, publicado na edição de Julho-Agosto da revista "Magazine Littéraire", esta conversa alerta-nos para o adormecimento anímico a que o riso contínuo conduz - uma insensibilização progressiva, que faz do mundo uma imensa caricatura, uma realidade virtual, desumanizada, em que os sentimentos das pessoas (desde que essas pessoas sejam outras pessoas, não aquelas que estão a rir) são menosprezados. Assim, tudo o que é sério perde a seriedade - a começar pelos políticos, que são a representação exponencial do sério. O humor todo-poderoso aí está para os derreter, insultando-os, vasculhando-lhes fragilidades, truncando-lhes frases e imagens, transformando-os em bonecos de vudu - George Bush é o exemplo mais evidente deste trabalho de irrisão, e não é certamente por ser o mais acéfalo líder da Terra: que diremos, por exemplo, de Khadafi ou de Ahamadinejad? Nesses casos o humor surge embrulhado no celofane protector das "outras culturas". É contra a sua própria cultura que o actual maremoto de humor actua, num terrorismo de bombista suicida.

Finkielkraut diz-nos, por exemplo, isto: "Os anos 60 deixaram-nos uma visão das relações entre o indivíduo e o mundo, através da qual aquele exerce sem limites a sua autovalorização. A pessoa que exibe sem o menor pudor a sua vida sexual convence-se de que está a fazer qualquer coisa de extremamente corajoso. Dito de outra forma, é a ausência de lucidez sobre a sociedade actual, é a tendência à automistificação, que torna tanta gente inapta para o humor. (...) O que é incomodativo na autoficção não é apenas a mistura entre o fictício e o vivido, mas a ideia de que esta aventura, tal como a de Rousseau, nunca teve exemplo. Um autor envolvido neste empreendimento deveria, pelo contrário, ter consciência da sua banalidade. Hoje, o elogio automistificador da vivacidade do Maio de 1968 não tolera a menor mistificação. A iconoclastia de 68 adquiriu o estatuto de incontestável. Os iconoclastas transformaram-se em ícones. Quando Daniel Cohn-Bendit pede que esqueçamos o Maio de 68, fá-lo em nome de uma revolta que, precisamente, teria por vocação obedecer ao mesmo paradigma. Se esta iniciativa me inquieta, é porque a consagração da juventude acompanha a emergência e o triunfo do riso bárbaro."

Os Hugos Chávez deste mundo já perceberam, intuitivamente, o extraordinário poder do riso como estratégia de dominação. Quem ri, contínua e indiferenciadamente, não analisa nem contesta. Acresce que o riso comove, conduz à desculpa. É tempo de percebermos que este humor absolutista não tem graça nenhuma.

6 comentários:

mdsol disse...

Não tinha lido a crónica da Inês Pedrosano Expresso. Ainda bem que a colocou aqui e, ainda melhor que ela o cita. Tenho de estar mais atente à Folha de S. Paulo! Para o ler lá também em primeira mão e não por interposta pessoa.
:)

Climacus disse...

riso é conjunto, só libera.

Climacus disse...

riso é conjunto, só libera, solta o riso e não vai ficar preocupado em reconhecer ridículos tiranos.

Anônimo disse...

é,

há uma coisa estranha nessa história de rir para tudo e de tudo.

adoro uma canção que o frejat canta, com versos que declaram: "e que você descubra que rir é bom/ mas que rir de tudo é desespero". acho que diz muito.

ensinou-me o grande e sábio poetinha, que "é melhor ser alegre que ser triste/ a alegria é a melhor coisa que existe"; mas, calma aí: há muitas dores e seriedades na existência, muitos pesares e umas tantas responsabilidades. momentos feitos de silêncio, de alguma reclusão, de olhares parados, reflexivos.

beijo!

GLT disse...

“É tempo de percebermos que este humor absolutista não tem graça nenhuma” – adverte Inês Pedrosa, concluindo o artigo, dirigindo-se ao mesmo a todos e a ninguém, racionando na perspectiva da coletividade, empenhada em atuar politicamente.

Adotei há não sei quantos anos como referência de conduta o ponto de vista defendido por Ludwig Wittgenstein segundo o qual melhorar a si mesmo é a única coisa que se pode fazer para melhorar o mundo.

Pauto nele inúmeras das minhas atitudes, entre elas a de desconfiar dos efeitos das reflexões voltadas para a transformação de outrem enquanto coletividade, através de “políticas públicas”, se o emprego desta expressão não parecer inadequado aqui.

A propósito, Platão era de opinião que quem realmente quiser lutar em prol da justiça é na vida privada que tem de fazê-lo e não como político.

Ocupo-me da questão do riso / divertimento em vários pontos de um livro cuja elaboração consumiu a maior e melhor parte das últimas três décadas da minha vida, e a respeito do qual falo em um espaço denominado Trevo do Talvez que mantenho aqui na Internet.

Recolho dele, prezado Antonio Cícero, algumas colocações com as quais pretendo estar expondo o essencial do que penso a respeito da questão abordada por nossa compatriota – “A minha pátria é a língua portuguesa” – Inês Pedrosa:

Leva a vida na brincadeira o incapaz de levá-la a sério.

O irônico retira tanto prazer do riso que acaba por não se constranger em buscar satisfação nos dignos de compaixão; em síntese, ele se caracteriza por preferir ferir a deixar de rir.

O humorista profissional em geral não tem coragem de fazer crítica menos radical do que a habitual; crítica na qual se dispense de expor ao ridículo provocando riso.

Muita diversão reflete muita frustração; a qualidade da alegria guarda pouca relação com a forma de expressão.

Seria o ser humano um animal medíocre caso sua felicidade consistisse na somatória dos momentos de corriqueira alegria, conforme entende a maioria. De acordo com Montaigne, o mais miserável sinal de sabedoria é uma alegria constante, ponto de vista cuja compreensão requer uma explicação que se encontra no I Ching: A verdadeira alegria baseia-se numa firmeza e força interior, expressando-se no plano externo através de suavidade e gentileza.

A forma mais evidente de fingir felicidade é justamente mostrar-se permanentemente alegre e sorridente.

Diversão não substitui compreensão em face do sofrimento; permite tão somente esquecê-lo momentaneamente.

Mais do que reflexo da ausência ou da compreensão do sofrimento, a alegria expressa em riso é uma forma comum de se consolar temporariamente dele; assim é que, ao preconizar em seu último livro uma geração de brasileiros mais alegre, porque mais sofrida, o sociólogo Darci Ribeiro (1922-97) torna evidente que a trivial condição alegre não é correspondente da condição feliz.

Carece de razão quem se opõe à opção de beber diversão para melhor suportar a dor de viver; afinal, trata-se de droga relativamente saudável, pois que, conforme a freqüência e quantidade, droga não deixa de ser. Usuário tão ilustre quanto discreto do conhecido alcalóide que cita adiante, Bandeira mentiu a este respeito com um verso esmerado: Uns tomam éter, outros, cocaína. Eu tomo alegria. – Assim é que, conforme observa Plutarco, a alegria não temperada pela razão agita a alma do homem mais que a dor e o medo, fazendo-o ficar fora de si. – Esta observação ajuda a compreender G. L. Chesterton quando escreve que o desespero não surge de se ficar esgotado por causa do sofrimento, mas de se enfastiar por causa da alegria.

Para dor de viver, riso não é psicoterapia; dor de viver o riso mais agrava que alivia.

A associação entre alegria e felicidade é tão freqüente porque política e comercialmente é muito conveniente; afinal, conforme escreve Heinrich Mann, nada existe de mais fatigante do que uma pessoa ser obrigada a mostrar o tempo todo uma expressão feliz.

Estes que proclamam sorridentes levar a vida na brincadeira estão entre os menos contentes.

Pouco sabe da real felicidade aquele que toma o riso como referencial. Schopenhauer ensina que quando se deseja avaliar a condição de uma pessoa do ponto de vista da sua felicidade, não do que a diverte, mas do que a entristece é que se deve obter informações.

O fundamental da felicidade é feito de ganhos racionais sobre sofrimentos naturais.

A propósito de tudo, recolhido em outro canto do meu livro:

Ao se dar conta do quanto custa mudar de atitude, a maioria troca de filosofia; rápido feito quem caça Coelho.

Flávio Corrêa de Mello disse...

Olá Antônio,
Há algumas expressões, ditos e provérbios que refletem os "parenteses" apresentados por Ines, mas duas expressões são extremamente significativas: "(...) tô rindo para não chorar..." no bom português e "panis et circus" no ilustrado latim. Esta última, ótima referência ao Chaves. Além disso, podemos ir as charges e a ridicularização dos mulçulmanos.
Ótima crònica. Aproveito o momento e te convido a ler a entrevista que fiz com Mauro Gama, está lá no Rio Movediço.