O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 23 de agosto:
A elitização brasileira
NÃO SOU o primeiro e certamente não serei o último a criticar o abuso da palavra "elite" no Brasil. Como não fazê-lo? Em política, a imprecisão conceitual só serve aos oportunistas.
É sobretudo no vocabulário de quem se considera "de esquerda" que essa palavra costuma aparecer. Seu uso entre "soi-disant" marxistas resulta de um desleixo conceitual que mostra que nem mais eles levam a sério a teoria em que pretendem se basear.
O emprego da palavra "elite" na sociologia se estabeleceu a partir das obras de Vilfredo Pareto e de Gaetano Mosca. Sua pretensão era substituir o conceito marxista de "classe dominante". Pareto afirmava que há, em toda sociedade, um estrato inferior e um estrato superior. O estrato superior constitui a elite, que é composta pelos indivíduos mais capazes. Segundo Mosca, o domínio da minoria sobre a maioria se explica pela organização da primeira, que é composta por indivíduos que possuem um atributo, real ou aparente, altamente valorizado pela sociedade em que vivem.
Ao criticar as "teorias da elite", os marxistas atacaram tanto a pretensão, nelas embutida, de que a estratificação social seja supra-histórica, universal, eterna, quanto o fato de que elas desviam atenção do fundamental, que é a base econômica da sociedade.
Suponho que os marxistas brasileiros tenham ignorado essas e outras críticas em conseqüência, pelo menos em parte, da influência que sofreram de políticos e intelectuais não-marxistas, durante a luta contra a ditadura. Entre esses, destaca-se, por exemplo, o antropólogo Darcy Ribeiro, que não hesitava em falar da "maldade" da elite: "velha elite, feita de filhos e netos de senhores de escravos calejados na maldade; de ricaços descendentes de imigrantes que olham de cima, com desprezo, a quem não enricou também; e sobretudo desta casta de gerentes das multinacionais, só leais a seus patrões".
Segundo essa perspectiva, é por culpa de uma elite má que temos os problemas que temos. O Brasil, diz Darcy, é "um país que não deu certo, por culpa não do seu povo, mas das elites". "Maldade", "culpa": é fácil entender que também os teólogos da libertação – católicos – tenham se reconhecido nessa linguagem, excelente catalisadora de todo ressentimento difuso.
Tal tipo de "explicação" psicologista da realidade social é absolutamente incompatível com o pensamento de Marx, em que não entram em jogo "culpas" ou "maldades". Para Marx, a relação das diferentes classes sociais entre si é determinada em primeiro lugar pelo caráter das relações de produção vigentes na formação sócio-econômica em consideração.
De todo modo, não é difícil entender como, paradoxalmente, a vulgarização da teoria das elites –que havia sido introduzida na sociologia para enfrentar as teorias liberais e socialistas, e que era simpática ao fascismo – pôde dar subsídios exatamente para a execração das elites. É que, já que a dominação destas não se explica pela estrutura econômico-social, mas pela sua putativa superioridade, é concebível que essa "superioridade" se reduza ao maquiavelismo com que se supõe que elas submetem as massas, por meio da doutrinação, da violência, da intimidação, da intriga, da corrupção, do engodo: em suma, da "maldade".
Já a facilidade dessa inversão vulgar do sentido da teoria das elites seria suficiente para evidenciar sua inanidade teórica. Mas isso não é tudo. Além de não ser capaz de explicar coisa nenhuma, a noção de "elite" é vaga demais para ter qualquer eficácia cognitiva.
Essa ineficácia ficou comicamente clara no ano passado, quando o apresentador de programa de televisão Luciano Huck, ao ter seu relógio roubado, escreveu um artigo na Folha, queixando-se da insegurança das cidades brasileiras. Uma enxurrada de cartas à redação o atacou, alegando que, pertencendo à elite, ele não tinha qualquer direito de se queixar. Uma delas foi do cantor Zeca Baleiro. No dia seguinte, uma leitora escrevia: "Lamentável o comentário dele sobre o texto de Luciano Huck – como se Zeca Baleiro não fizesse parte dessa elite".
O fato é que, cada vez mais, também a classe média tem sido chamada de "elite" pela esquerda. Consequentemente, como as estatísticas indicam que o Brasil é cada vez mais um país de classe média, trata-se sem dúvida de um país em que, segundo a esquerda, quase todos fazem parte da elite. Será a pior elite do mundo, como muitos afirmam? Não sei; mas é certamente a mais autoflagelante.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
15 comentários:
Precisa e preciosa análise. Parabéns.
acho Antonio Cicero é que cada vez mais a "classe média" tem adotado mesmo estas ideias vindas de uma elite, a elite que detem o poder economico e de comunicação. autoflagelantes? não acho; mas vitimistas em busca de mais proteção estatal, com certeza.
Cícero, a clareza está sempre contigo, meu irmão. Impressionante a fundamentação de suas idéias e explicações. O Waly tinha razão quando falava de você. E note-se que neste caldo entram também ressentimentos e idéias como culpa e pecado, maldade e tudo o mais que faz com que tenhamos a esquerda mais católica do mundo, embora ela própria não se dê conta disso.
Todo mundo adora culpar a tal "elite", é o bode expiatório perfeito.
Sinceramente, acho que o Brasil não tem uma elite real faz tempo, só tem mediocridades.
Também aprendo consigo a olhar o Brasil.
:))
Execelente artigo, Antonio. Preciso e esclarecedor. Parabéns. abraço, lucas.
Prezado Antonio Cicero,
Li o seu artigo no sábado pela folha que me chega, às vezes, em casa. Não o li aqui ainda. Mas me ficou um idéia de que somos uma grande classe média, o que - na verdade - não me parece verdade. A idéia de elite virou uma metonímia -- mas dizer que há uma classe média coesa não me parece de bom tom. Não sei onde você mora, mas se você olhar para cima, você verá que lá não reside a elite -- muito menos -- na perí pheria de sampa -- ´é só checar o caderno de sampa da folha que diz sobre a região leste mais distante. O problema do Brasil é às veze ver culpados demais ou culpados de menos. Mas não podemos olvidar os números e os fatos empíricos. Do Leblon ou Copacabana, talvez só observaremos o Corcovado: talvez!
Muito obrigado!
Bom, taí o filme "Tropa de Elite" para dar testemunho...
No sistema democrático todos são iguais perante a lei, quer dizer, não há elite reconhecida oficialmente pelo estado. Mas o raciocínio aristocrático continua vivo e dominante. A globo sempre se refere aos políticos como "os homens que comandam a nação". Trabalho num favela em Belo Horizonte. Se chega aqui um homem que é deputado ou vereador, de terno e gravata, é tratado como se fosse de fato de uma casta superior, com deferência quase(?) religiosa. Não entendemos que vivemos em uma democracia, em que os políticos são servidores da população. A globo sempre se refere ao presidente dos Estados Unidos como "o homem mais poderoso do mundo". Isso é malandragem, uma vez que ele é um servidor. Mas é que pelas teorias dos autores apresentados, parece que a humanidade reconhece assim por instinto os melhores e lhes confere o poder. Mas o que se vê é o uso "da doutrinação, da violência, da intimidação, da intriga, da corrupção, do engodo". Os melhores são melhores em quê? Melhores como? Pensar nisso pode dar bons resultados... A esquerda fala em revolução pra cá e pra lá, mas puxa, se ao menos compreendêssemos o sistema democrático que já temos, se ao menos lutássemos por fazer valer a constituição que já existe, que revolução seria, não? "Revoluçãozíssima".
Esse abuso da idéia de "elite" por parte do "povo" é sintoma, sintoma de que nossa democracia é fachada, e os velhos sistemas sociais da aristocracia ainda imperam em nossas cabeças moles. Marx é bom porque é claro. Valeu! Gostei do artigo.
Boas observaçoes....
Agora, o artigo de Zeca Baleiro tem muita lucidez e nao incorre nessas críticas apontadas. Zeca Baleiro fez uma análise lúcida do problema apontando as contradiçoes do tal desabafo do Huck.
Nao entendo essa espécie de desconforto que se passou. Quer dizer, cada vez mais me convenço que o que o velho Marx diz tem sua solidez filosófica e por isso nao penso em pudores em se pensar a transformaçao da realidade, independente dos termos que se podem ser utilizados para se verificar isso.
Por que nao poderíamos falar dos conceitos problemáticos e toscos utilizados pela direita ou por aqueles que querem conservar a realidade assim como está?
Há muito tempo que esse texto foi publicado, e por isso não sei se meu comentário terá alguma utilidade.
Devo dizer que o argumento me pareceu muito fraco. Pretende invalidar a intuição de um homem como Darcy Ribeiro com base em história das idéias... Será que Darcy realmente distorceu o conceito, ou apenas aplicou uma noção muito mais densa de significado (no nosso contexto brasileiro), que já não será a mesma de Mosca?
Quem disse que é possível (ou mesmo necessária) essa "coerência" com o uso anterior da palavra elite?
Essa "etimologia", aliás, não me parece confiável. A palavra foi usada pela primeira vez por fulano de tal, na obra tal... Muito superficial.
Outra coisa, o post faz parecer que Darcy Ribeiro era um demagogo, de idéias rasas. Quanta ingenuidade (?).
Por fim, é preciso muito alheamento para ignorar que a maldade existe, e é organizada.
Cristiano,
1) O uso que Darcy e outros fizeram e fazem, no Brasil, da palavra “elite” não é mais denso: é mais ralo do que o de Mosca e Cia. Como eu disse, os brasileiros converteram a “superioridade” de que falavam os fascistas em “maldade”. Ora, a ideia de que os problemas de um país se devem à maldade de determinados grupos é ingênua ou demagoga, ou as duas coisas, mas não é algo que possa ser levado a sério.
2) Sinto muito, mas “etimologia”, Cristiano, diz respeito exatamente o estudo da origem e da evolução das palavras. Consulte o Houaiss ou o Aurélio, para ver. E, se você consultar um dicionário etimológico, verá que, quando possível, ele diz exatamente coisas do tipo “a palavra foi usada pela primeira vez por Fulano de Tal...”. E as cargas semânticas que as palavras trazem não podem ser abolidas num passe de mágica.
3) Usei a declaração de Darcy como exemplo do abuso da palavra “elite” no Brasil. Nesse ponto, ele errou. Minha crítica foi, portanto, pontual. Isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que eu pense que ele fosse um homem de ideias rasas. Darcy era inteligentíssimo. Penso apenas que, enquanto político, ele, como quase todos os outros, embarcava às vezes, como nesse caso, em facilidades demagógicas conjunturais. E penso que às vezes, como nesse caso, a demagogia conjuntural tem um efeito deletério, a longo prazo.
Prezado Antonio Cícero,
Agradeço seus esclarecimentos. Infelizmente, parece que não chagaremos a concordar. Por isso, apenas me permita umas poucas observações.
1)Insisto em que o uso da palavra "elite" não é menos denso (ou mais ralo, como você diz) em Darcy do que em Mosca. São simplesmente diferentes, porque estão ligados a dois contextos diferentes. A palavra pode ser a mesma, mas o contexto não, e aí a palavra já não é a mesma... Acresce que uma palavra usada na Itália não tem a mesma carga axiológica dessa mesma palavra usada no Brasil. Não é uma questão de simples tradução, de consulta ao dicionário italiano/português. O mundo não é tão simples quanto um dicionário. Também discordo de você no que se refere à "maldade". Não vejo ingenuidade nem damagogia nessa idéia. Até porque a análise de Darcy não se restringe a essa proclamação da "maldade", vai além de simplesmente apontar a "feiúra" da "elite". Perceba que numa passagem como essa, Darcy provavelmente estava "correndo pela campina aberta", como diz Hugo de São Vítor. Não cabem, aí, notas de rodapé e bibliografia milimétrica. É um exercício livre de pensar. Mais útil é saber se esse pensamento (e ele todo, não apenas um fragmento) tem alguma consistência com a nossa realidade, do que saber se a palavra estava sendo empregada no sentido específico que um autor específico empregou numa obra específica.
2) Conheço a palavra e o seu significado. Não apenas conheço dicionários etimológicos como tenho um, do Antônio Geraldo da Cunha. Me perdoe a insistência, mas continuo entendendo que a etimologia não serve para invalidar a tese de Darcy (será que você negará a ela o status de tese?). Servirá, quem sabe, para dar um colorido ao texto, enriquecê-lo com uma informação curiosa. Mas não como um argumento decisivo, como me parece que você fez no texto. De fato é um erro supor que a carga semânticade de uma palavra possa desaparecer por mágica. Mas é um erro menor do que supor que a carga semântica de uma palavra decorre do emprego que dela fez determinado autor, em determinada obra. A carga semântica da palavra elite vem do efeito que ela tem no nosso contexto social, e não do sentido que a ela quis emprestar Mosca e Cia. Nisso, realmente, discordamos frontalmente.
3) Ambos concordamos (até que enfim) quanto às qualidades de Darcy. Compreendi que sua crítica foi pontual, mas, nesse ponto, discordei dela, pelas razões que você já conhece.
Cristiano,
1) Você diz que o uso da palavra “elite” não é mais denso nem ralo em Darcy do que em Mosca. Está errado. É mais ralo em Darcy porque ele emprega essa palavra a partir da vulgarização, logo, da simplificação, das teorias de Mosca, Pareto e Michels. O que faz é apenas inverter o valor do termo, para que corresponda à mixórdia do pensamento da esquerda católica brasileira.
2) A palavra “elite” foi usada nas ciências sociais a partir de Mosca, mas ele não a inventou. Se você consultar o seu Antônio Geraldo da Cunha, verá que ela vem do francês, não do italiano. E se trata de uma das raras palavras usadas em todas as línguas. É falsa a tese de que “uma palavra usada na Itália não tem a mesma carga axiológica dessa mesma palavra usada no Brasil”. Os integralistas brasileiros usaram perfeitamente a palavra “elite” no sentido de Mosca. A inversão do valor de “elite” vem da mesma mistura demagógica do integralismo católico com o marxismo aguado que produziu a aberração que é a “teologia da liberação”.
3) Onde é que Darcy vai além da proclamação da “maldade” da elite? Respondo: em lugar nenhum. A verdade é que essa palavra lhe servia simplesmente para atacar, por razões demagógicas, a classe dominante brasileira, sem usar a terminologia marxista, que queria evitar pelas mesmas razões demagógicas.
4) O que o meu texto mostra é que a inversão da noção fascista de elite, efetuada para que ela pudesse servir a finalidades políticas de esquerda, implicou o uso de uma linguagem valorativa – “maldade”, “culpa” – própria à religião, mas não à análise sociológica ou política. Assim, ela acaba levando a uma teoria conspiratória – e primária – da história. E mostrei que o caráter ralo dessa noção permite que a própria classe média já esteja sendo considerada “elite”, o que implica que, em breve, a maior parte dos brasileiros deverá ser considerada “elite”. O episódio de Luciano Huck e Zeca Baleiro mostra o extremo ridículo a que se pode chegar com esse tipo de “sociologia”.
5) Não tenho mais nada a dizer sobre esse assunto. Pode ser que você tenha tempo de ficar a se repetir, mas eu não.
Prezado filósofo,
Também não tenho tempo para ficar me repetindo. E me perdoe se por acaso estou a lhe roubar o tempo com discussões estéreis. Se me permiti outras considerações, é que, com todo respeito, sua resposta me pareceu ainda mais fraca do que o texto. Em suma, em minha visão, a sua crítica é tão ou mais rala do que a demogagia que você pretende fustigar (não vai além de minúcias etimológicas).
Como você pode constatar, em nenhum lugar fui deselegante ou agressivo. Apenas sou franco, porque o pensamento livre exige franqueza.
Peço, porque sei que em nenhum momento fui deselegante (apenas franco), que você publique meu comentário anterior.
Até para que a sua última resposta faça sentido, já que se reporta ao meu comentário que não foi publicado.
E só o que peço, com a promessa de encerrar por aqui minha participação neste espaço de discussão intelectual.
Cristiano.
Fiquei perplexo, inicialmente, mas logo lembrei-me de Raymundo Faoro e me tranquilizei.
Postar um comentário