1.6.08

Ainda a vanguarda

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008:


FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO


Ainda a vanguarda

EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.

Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.

Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.

Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.

Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.

Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.

Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.

Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.

No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.

Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.

5 comentários:

Unknown disse...

Você acaba de lançar luz sobre um interesse, que sempre tive, por textos de diversos artistas de vanguarda, inclusive brasileiros, das décadas de 50 e 60, cuja obra, em si, me parecia menos interessante que seu pensamento, ou seja, que seu conceito criador. Esse conceito estará, também, presente em obras futuras. Obras que não serão tão conceituais, mas que guardarão das vanguardas boa parcela. Por isso, sempre me pareceu falso atacar as vanguardas. Elas eram um bolo do qual todos falavam mal, enquanto comiam uma deliciosa fatia. Por outro lado, A fruição estética das obras geradas por tais artistas era difícil. Seu artigo me explicou um pouco para mim...

Eleonora Marino Duarte disse...

A beleza evidente em sua escrita é principalmente a organização do pensamento.

Arrisco dizer que a filosofia deu-lhe um berço incrível de conforto com as palavras,

A poesia o fez dotado de olhar cuidadoso sobre os detalhes,

Sinais que tornam a leitura de suas considerações, um aprendizado sobre a clareza e a sensibilidade.

São horizontes sinceros! Há sempre coerência no que você diz.

Especialmente nos artigos a respeito do fim da vanguarda, você trouxe bastante recurso para auxiliar em nossas conclusões sobre,

Estão ótimos!

Um abraço!

Antonio Cicero disse...

Agradeço as palavras estimulantes de Betina e de Leo.

Abraços

Anônimo disse...

está vendo, poeta?

não sou eu quem digo, está na boca do povo (rs): depois de palavras tão bem postas pelo leo e pela betina, prefiro, com a licença deles, é claro, fazê-las minhas.

coerência e lucidez, nos seus textos, são os seus grandes aliados. que beleza!, só tenho a agradecer. ;-)

beijo grande nocê!

Pouco ou Demais disse...

Homenagem a Mallarmé

onde a boca que te busca
só te encontra ao estar só
sob os cruéis rouxinóis
dessa batalha em plena fuga

e o jogo em que cada espelho
mentir outra vez o já mentido,
e com os ecos do vazio
tange a música do tempo

para que o olho alienado
veja na flor um mero signo
lá onde qualquer caminho
leva àquele primeiro passo

com o cavalo que adverte
com o terror ante sua sombra
o simulacro dessa forma
que de beleza o homem veste

Julio Cortázar