Lucas escreveu:
Em 10/04, Lucas deixou um comentário ao artigo que eu havia postado no mesmo dia. Como penso que esse comentário resume as principais objeções que se podem fazer ao que escrevi, resolvi postá-lo aqui, seguido da minha resposta:
"De que forma seria possível a existência de "um ponto de vista exterior a todas as culturas", se a própria formulação de um tal ponto de vista se dá dentro e através de uma cultura? É o ser humano capaz de pensar fora de um complexo de valores e símbolos culturalmente determinado? Ou seria a "modernidade" uma busca, frutífera ou não, da alteridade no seio de cada cultura, uma auto-transcendência da matéria cultural, em vez de uma "supra-cultura"? E não seria mesmo esse conceito de "modernidade" uma construção local, meramente contingente? Não sei, não disponho de ponto de apoio para conhecer tais respostas. Mas talvez possamos sê-las."
Resposta minha:
Caro Lucas,
Proponho pensar nesse assunto a partir dos exemplos que dei, de Montaigne e Descartes. Montaigne pertence a que cultura? Creio que teríamos que situá-lo na cultura européia ocidental: mais precisamente, na cultura judeo-cristã ou, para abreviar, na cultura cristã. Ele escreve em francês, língua que parece fazer parte dessa cultura. Entretanto, Montaigne critica os cristãos. Ora, criticar é separar. A crítica é um momento de separação. Quem critica também separa, de pelo menos dois modos: por um lado, separa, no objeto criticado, o joio do trigo; e, por outro lado, como condição para tanto, quem critica também separa a si próprio do objeto criticado. Quando critica os cristãos e os compara aos índios brasileiros, Montaigne está a se separar dos cristãos, para vê-los de fora e julgá-los. A separação é também abstração. Montaigne abstrai da sua situação de cristão, para ver os cristãos de fora. Mas a questão óbvia é: ele consegue fazê-lo? E a resposta evidente é: como não? Alguém imagina que o que Montaigne diz dos cristãos, comparando-os aos canibais brasileiros, reflete o sentimento geral dos cristãos da sua época? Alguém imagina que o que ele diz pertence à cultura cristã? Nesse caso, também pertenceriam a essa cultura o sistema heliocêntrico de Copérnico, a física galileo-newtoniana, o pan-ateísmo de Spinoza...
Ao abstrair, como Montaigne, da sua cultura particular, Descartes imagina que poderia ter sido outra coisa: que poderia ter sido chinês ou canibal e que, nesse caso, seria diferente do que é, sendo francês. Na mesma linha de raciocínio, Descartes poderia ter sido confuciano ou pagão; poderia não ter sido cristão; poderia ter sido ateu, logo, poderia ter pertencido a outra cultura, que não à cristã. Isso, porém, significa dizer que é contingente que ele pertença à cultura-religião cristã. Ora, esse não é exatamente um sentimento cristão.
Com efeito, Montaigne e Descartes se situam no limiar da modernidade; e a modernidade já não pertence à cultura cristã. Kant chamava a modernidade de “a época da crítica”. A modernidade consiste precisamente no uso pleno dessa capacidade de crítica, separação, abstração, que não é outra coisa senão a razão. Na verdade, ela não é sequer um produto dessa cultura. Ela não surge do Cristianismo. No seu auge, nos séculos XII e XIII, o Cristianismo não produziu nem teria produzido a modernidade, que o critica. Esta se aproveita, para surgir, por um lado, das brechas, das fissuras, das falhas, das fendas do Cristianismo e, por outro lado, da abertura vertical e horizontal do mundo, dada pela redescoberta da antiguidade clássica e pelas descobertas geográficas. Não é à toa que Montaigne fala dos conflitos religiosos do seu tempo.
Eu disse acima que a língua francesa parece fazer parte da cultura cristã. Trata-se de uma ilusão. O francês pode exprimir tanto o mundo cristão quanto o mundo anti-cristão. Pode-se ser ateu ou hinduísta em francês: e assim é com qualquer língua. A crítica – a modernidade – é não só capaz de converter qualquer língua particular em sua língua, mas é capaz de usar qualquer forma de uma cultura particular – música, pintura, escultura, literatura etc. – como seu veículo. E assim tem feito. Amartya Sen já chamou atenção, em seus escritos, para vários momentos de modernidade que romperam, não através do cristianismo, mas através de culturas não-ocidentais, como o próprio Islã. Portanto, longe de ser uma construção local, a modernidade consiste justamente num salto para o universal.
12.4.07
Comentário de Lucas e resposta a ele
Labels:
Cultura,
Descartes,
Filosofia,
Lucas Nicolato,
Modernidade,
Montaigne,
Razão,
Religião
Assinar:
Postar comentários (Atom)
4 comentários:
Antonio, de qualquer forma esse salto para o universal dependeria da vontade do observador de se colocar de forma subjetiva (não sei se é o termo correto) perante o fato, ou de forma imparcial, certo?
O que quero dizer é que, de certa forma, a vontade é o imperativo para que esse "distanciamento" aconteça. Algo mais ou menos por aí. E, vixe, que o papo tá esquentando!
Abraço!
caro antonio, concordo contigo plenamente. mas resta uma pergunta: o crítico, ao destacar-se da sua "realidade", não usaria, para isso, além da razão, também seus sentimentos e pré-conceitos e, portanto, a crítica não envolveria sempre um aspecto subjetivo, mesmo que recôndito, inconsciente? então, a razão não seria uma espécie de "ilusão necessária", uma forma de o homem tentar "disfarçar" os seus instintos mais básicos? montaigne, no exemplo dado, não estaria usando a razão como uma forma de escapar de uma espécie de culpa cristã?
abrações
Caro Antônio,
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que aprecio muito a atenção dada ao meu comentário, ainda mais por que sou grande admirador de seu trabalho, embora tenha tido contato com ele apenas recentemente. Não esperava que meu simples questionamento fosse capaz de “resumir as principais objeções que se podem fazer” ao que você escreveu.
Com relação ao conteúdo de sua resposta, acredito que ela esclarece vários aspectos do conceito de modernidade. Com base nesses esclarecimentos, ousarei uma breve crítica de meu próprio comentário anterior, assim poderei verificar minha compreensão do assunto.
Meus questionamentos anteriores concentraram-se na idéia de que, tendo surgido em determinada sociedade, a “modernidade” seria tão local quanto a própria cultura daquela sociedade. Ora, mesmo que a “modernidade” que conhecemos fosse produto da cultura cristã, sua genealogia não a condenaria a ser “mero” aspecto da cultura local. Embora talvez não seja possível sua manifestação em um ambiente em que não haja língua ou cultura, a capacidade humana de crítica nem por isso deixa de ser uma realidade por si só, nem perde suas características. De fato, a modernidade é “um” salto para o universal, e ainda seria, mesmo que só pudesse ser produzida em condições locais muito específicas. Nesse sentido, não apenas concordo com sua resposta, como me arrisco a tomar suas idéias de forma radical.
Não obstante, há ainda algo que julgo fazer sentido na expressão “fundamentalismo iluminista” e que está relacionado à nossa discussão. Se a modernidade, como o pleno uso da razão, não se confunde com uma cultura específica, como o Islã, e se a razão pode se expressar através de quaisquer línguas ou meios culturais, tal fato não exclui sua imagem inversa: a de que as crenças específicas de uma sociedade podem se manifestar através do uso da razão e do valor dado a ela. Mais especificamente, me questiono se o papel preponderante dado ao “salto universal” (ou a esse salto em particular, pois nada garante que não haja outros saltos) em nossa cultura tem algo de universal. Está claro que a capacidade de crítica e abstração pode ser desenvolvida em diversos ambientes culturais, mas isso não significa que o valor dado ao uso dessa razão não seja uma construção cultural particular. Creio que o autor do artigo referia-se a uma suposta atitude arrogante frente ao fato de que outras culturas podem simplesmente não se importar tanto com a modernidade quanto a nossa. Tal atitude não seria propriamente “moderna”, mas fundamentalista, na medida em que toma um julgamento particular (o uso da razão é de importância máxima) em uma verdade presumidamente universal que pode, portanto, ser imposta a outrem. Claro, um “fundamentalismo iluminista” é profundamente contraditório e irracional, mas isso não impede que seja adotado por determinadas pessoas.
Mais uma vez, agradeço pela atenção despendida, e externo o grande prazer que é poder participar desta discussão. Desculpo-me pela extensão do comentário, mas não podia furtar-me à exposição de meus pensamentos.
Um abraço,
Lucas Nicolato
Caro Lucas,
Obrigado pelas suas palavras. Também estou apreciando muito essa discussão, que estimula o pensamento. Novamente, hoje vou postar o seu argumento mais recente e a minha resposta.
Um abraço,
Antonio Cicero
Postar um comentário