30.5.21

Giuseppe Ungaretti: "Veglia" / "Vigília": trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti




 Vigília


Cima Quattro, 23 de dezembro de 1915


Uma noite inteira

jogado ao lado

de um companheiro

massacrado

com a boca

arreganhada

voltada para a lua cheia

com a convulsão

de suas mãos

entranhada

no meu silêncio

escrevi

cartas cheias de amor


Nunca estive

tão

aferrado à vida





Veglia


Cima Quattro il 23 dicembre 1915


Un'intera nottata

buttato vicino

a un compagno

massacrato

con la sua bocca

digrignata

volta al plenilunio

con la congestione

delle sue mani

penetrata

nel mio silenzio

ho scritto

lettere piene d'amore


Non sono mai stato

tanto

attaccato alla vita




UNGARETTI, Giuseppe. "Veglia" / "Vigília". In_____. "Il porto sepolto" / "O porto sepulto". In:_____. Poemas. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: edUSP, 2017.


28.5.21

Adriano Nunes: "Sem precisar de uma palavra"

 



Sem precisar de uma palavra



e, além, os fenícios, as fendas

da fala, a ferrugem intacta

do que se foi, do que seria

se existisse mesmo a alegria


de, através de desenhos, signos,

símbolos, letras e caracteres

diversos, entregar-te os sonhos

todos, de uma só vez, pra sempre,


e, pra sempre, ficar-me à tez

da existência, por muito ama-te.

Mas são só sombras e silêncios


de grafite todo o mistério 

de haver amor, de amar o amor,

sem precisar de uma palavra.




NUNES, Adriano. "Sem precisar de uma palavra". In:_____. Laringes de grafite. Porto Alegre: Vidráguas, 2012. 

25.5.21

Michelangelo Buonarroti: "Veggio nel tuo bel viso, signor mio" / "Vejo no teu belo rosto, senhor meu"




Vejo no teu belo rosto, senhor meu 


    Vejo no teu belo rosto, senhor meu,

o que mal posso narrar nesta vida:

a alma, de carne ainda vestida,

com ele muitas vezes subiu a Deus.

    E se o vulgo maldoso, néscio e cruel,

aquilo que sente, em outrem aponta e indica,

não aprecio menos o intenso querer

o amor, a fé e honestos desejos.

    Àquela piedosa fonte, onde nascemos todos,

a olhos cordatos, mais que tudo se parece

tamanha beleza que ao redor se vê.

    Nem outra prova temos nem outros frutos

do céu na terra; e quem te ama com fé

ascende a Deus, e julga bem doce a morte.




Veggio nel tuo bel viso, signor mio


    Veggio nel tuo bel viso, signor mio,

quel che narrar mal puossi in questa vita:

l'anima, della carne ancor vestita,

con esso è già più volte ascesa a Dio.

    E se 'l vulgo malvagio, isciocco e rio,

di quel che sente, altrui segna e addita,

non è l'intensa voglia men gradita,

l'amor, la fede e l'onesto desio.

    A quel pietoso fonte, onde siàn tutti,

s'assembra ogni beltà che qua si vede

più c'altra cosa alle persone accorte;

    né altro saggio abbiàn né altri frutti

del cielo in terra; e chi v'ama con fede

trascende a Dio e fa dolce la morte.






BUONARROTI,  Michelangelo. "Veggio nel tuo bel viso, signor mio" / "Vejo no teu belo rosto, senhor meu". In:_____. Poemas. Trad. por Nilson Moulin. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.





23.5.21

Percy Bysshe Shelley: "A dirge" / "Uma nênia": trad. por Adriano Scandolara

 



Uma nênia



Tufão, que tanto geme,

  luto ao canto mudo;

se, ao vento à noite, freme,

  negro, o céu profundo;

    tormenta em vãos lamentos,

    sarçal curvado aos ventos,

    a furna e mar violentos, ―

urram o error do mundo!





A dirge



Rough wind, that moanest loud

  Grief too sad for song;

Wild wind, when sullen cloud

  Knells all the night long;

    Sad storm whose tears are vain,

    Bare woods, whose branches strain,

    Deep caves and dreary main,

Wail, for the world's wrong!







SHELLEY, Percy Bysshe. "A dirge" / "Uma nênia". In:_____. Prometeu desacorrentado e outros poemas. Trad. por Adriano Scandolara. Belo Horizaonte: Autêntica Editora, 2015. 

20.5.21

Nelson Ascher: "É isto?"

 



É isto?



Estou, mas onde?

Quem é que existo?

Entrei sem visto

e, até que o bonde


chegue imprevisto,

brinco de esconde-

esconde. É isto?

Ninguém responde.


Durmo desperto

e, em desconcerto

quando o consigo,


me desacordo

do desacordo

de um si consigo.




ASCHER, Nelson. "É isto?" In:_____. Parte alguma: poesia (1997-2004). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

18.5.21

Eucanaã Ferraz: "Rápidos e vão embora"

 



Rápidos e vão embora



Dizem nada como um dia após

o outro


como se o dia seguinte viesse

inevitável um remédio


um diamante mas há dias em que

o dia após o outro não é nada


mais que um dia idêntico

ao de ontem


um dado

com todos os lados o mesmo relógio


magro desses que nos devoram

rápidos e vão embora o diabo o dá


o diabo o leva

o dia seguinte


pode ser só a res-

saca ou aquele em que desaba


a catástrofe um dia após o outro dizem

como se nos ensinassem a nadar:


os braços assim, à frente, o outro

agora o outro, isso,


e lá vamos nós adiante braçadas

contra o calendário


até que – às vezes é assim

morremos hoje – um após


o outro virão dias

e dias sem nós


sem que nunca venha

o dia do juízo.






FERRAZ, Eucanaã. "Rápidos e vão embora". In:_____. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

15.5.21

Oswald de Andrade: "Pronominais"

 



Pronominais


Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro








ANDRADE, Oswald. "Pronominais". In: MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

13.5.21

Júlio Castañon Guimarães: "Geografia"

 



Geografia


sombras ancestrais

claras manhãs

em que margem?

ainda que a memória esbata as horas

o que  há são espaços perdidos

uma casa

uma viagem

cabelos soltos em minhas mãos




GUIMARÃES, Júlio Castañon. "Geografia". In: FÉLIX, Moacyr (org.). 41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: Funarte, 1998.


11.5.21

Salgado Maranhão: "Tambores"

 



Tambores

                    Para Elton Medeiros


Sou da terra

dos tambores que falam.

E guardo no corpo a memória

que acorda o silêncio.


Eu vi a lua descer

para assistir minha mãe

dançar.


a camponesa que amava

latim.


eu vi a mão preta açoitar

o tambor; eu ouvi

roncar a madeira sagrada:


o rito da voz ancestral

antes do cogito e da parabólica.






MARANHÃO, Salgado. "Tambores". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris.

8.5.21

Paulo Henriques Britto: "XII". Da série Caderno

 



XII



Confinado num corpo

de dúbia propriedade

provido de um contorno

muito bem delineado,


procura na palavra

(por mais escarnecida)

a possibilidade

de uma quase saída


rumo a um outro eu

novo do cerne à casca

ou então, faute de mieux,

a uma boa máscara.




BRITTO, Paulo Henriques. "XII" da série Caderno. In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

6.5.21

Geraldo Carneiro: "Miragem em abismo"

 



Miragem em abismo


não sei de que tecido é feito o ser.

meus planos sonhos enganos

se tecem na fábrica da vida

e se destecem na arquitetura do caos.

vou criando edifícios em que me

                                           demoro

e de onde salto em busca de não sei.

meu ser é parte dessa miragem

                                           em abismo

um espelho em que me não vejo

e em me não vendo acendo a chama

que se chama desejo.


 talvez do outro lado exista um cais.

sei que sempre existe certa distância

                                          entre mim

e o circo da minha circunstância

 


CARNEIRO, Geraldo. "Miragem em abismo". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

4.5.21

Antonio Carlos Secchin. "Linha de fundo"

 



Linha de fundo


Assim meio jogado pra escanteio,

volto ao poema, este local do crime.

Mas é o desprezo que melhor exprime

aquilo que no verso eu trapaceio.

Se nada do que digo me define,

cópia pirata de um desejo alheio,

revelo a ti, leitor, o que eu anseio:

um abutre no cadáver do sublime.

A matéria é talvez muito indigesta,

me obriga a convocar um mutirão

para acabar com toda aquela festa

de pétalas e plumas de plantão.

Memória derrubada pelo vento,

quero aqui só lembrar o esquecimento.





SECCHIN, Antonio Carlos. "Linha de fundo". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.

2.5.21

Adriano Espínola: "A cebola"

 



A cebola



Cortá-la camada

por camada

até chegar


ao centro.


((Ao bulbo do nada

do eu mais

dentro)).


Não chorar.




ESPÍNOLA,  Adriano. "A cebola". In: SABINO, Paulo (org.). A estante dos poetas. Antologia. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2020.