Acabo de ler, na Revista Pernambuco, Nº 167, de janeiro de 2020, revista que é o suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, um excelente ensaio, escrito por Renato Gonçalves, sobre a canção Fullgás, que fiz em parceria com minha irmã, Marina Lima. Ei-lo:
O verso que quis nos ajudar a fazer um país
Sobre a música Fullgás, de Marina Lima e Antonio Cicero
por Renato Gonçalves
Democracia, há tempos não falávamos nessa palavra que, no início do século XXI, mostrou-se tão cara aos países latino-americanos. Denunciamos o seu fim e até mesmo chegamos a questionar se ela, de fato, um dia existiu entre nós de forma efetiva. Aproveitando o título de um dos melhores sintomas da contemporaneidade, o best seller Como morrem as democracias, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, elaboremos uma pergunta na direção oposta: como nascem as democracias? Explicitar o lugar e o momento de formação dos projetos democráticos nos ajuda a compreender suas trajetórias.
Na experiência brasileira, o (re)nascimento da democracia é recente e se deu nos anos 1980. Uma década tratada de forma equivocada como “perdida” nos anais da História que abraçaram o rótulo designado às sucessivas, e fracassadas, iniciativas econômicas e governamentais. Por estar envolta em uma embalagem de imagens de excesso, efemeridade e nostalgia, parece que nada dela devia ser levado a sério. Diante dos últimos episódios políticos, no entanto, hoje parece que pagamos o preço por não termos compreendido a complexidade do contexto de criação da nossa jovem democracia.
A partir da canção Fullgás, composta por Marina Lima e Antonio Cicero, e lançada durante as campanhas pelas Diretas Já (1983-1984), marco do processo de abertura democrática, tracemos algumas linhas de interpretação dos sentidos envolvidos na criação da democracia brasileira. Se a Música Popular Brasileira (MPB), gestada nas décadas de 1960 e 1970, foi uma das principais expressões de resistência à ditadura militar, a nova e jovem geração de músicos da década posterior, sobretudo aquela alinhada ao rock e ao pop nacional, seria a trilha sonora da redemocratização.
A princípio, Fullgás, de versos como “meu mundo você é quem faz” e “onde quer que você vá, é lá que eu vou estar”, poderia ser lida apenas como uma radiofônica canção de amor. Declarando-se a um objeto de desejo, um eu lírico expressa seus sentimentos em jogo entre um “eu” e um “você”, marcados reiteradamente ao longo dos seus pouco mais de quatro minutos. À mínima suposição da ausência desse outro, o mundo se vê estranho: aquele que se ama lança tudo que há (“música, letra e dança”); é com ele que se faz “tudo de lindo”. Contudo, os versos finais, que são os únicos que se repetem ao longo da corrida canção, apontam para uma dimensão política que ganha sentido à luz da transição democrática pela qual o Brasil passava: “você me abre seus braços / e a gente faz um país”. A adesão política ficava ainda mais clara no seu videoclipe, quando a câmera focava a camiseta de Marina onde se podia ler “Brasil, urgente, diretas pra presidente”.
A democracia, no contexto brasileiro, substituiu os 21 anos de ditadura militar, que começou a ruir oficialmente em 1979 com o anúncio oficial de uma transição “lenta, gradual e segura” e a promulgação da Lei da Anistia “ampla, geral e irrestrita”. No início da década, o atentado frustrado no Riocentro, no Dia do Trabalhador, assinado pela ala conservadora do regime militar, juntamente à deflagração do “milagre econômico” inflamaram a opinião pública contra os militares, que, até então, obtinham apoio de grande parte da classe média e das elites financeiras alheias às violações do Estado.
Das greves gerais na região do ABC (São Paulo), lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva, às manifestações populares pelo retorno das eleições diretas, das quais participaram artistas e políticos de oposição, a movimentação política ganhava os espaços públicos. Após anos de obscurantismo, voltava a ser vislumbrada uma “trilha clara” para o Brasil “apesar da dor” (citando-se Nu com a minha música, lançada por Caetano Veloso em 1981). As fulgurações e as representações do que poderia ser o país eram retomadas por aqueles que outrora foram excluídos do discurso oficial e ufanista da ditadura militar. Entre os entulhos e desmanches do regime autoritário e o que ainda delinear-se-ia como um projeto democrático, havia espaço para se fazer um país, como sugere o derradeiro verso de Fullgás.
Os sentidos de fabulação, elaboração e construção de um país foram sintetizados por Marina Lima e Antonio Cicero no Manifesto Fullgás, veiculado no LP homônimo, cujos ideais seriam retomados pela cantora ao apresentar a música em seus shows, como mostra o registro presente no álbum Todas ao vivo (1986): “não existe caminho, viaduto, túnel, nenhum caminho direto que leve à plena realização de um país. Mas a gente tem que tentar. É preciso tentar. A gente vai ter que inventar o que nenhum outro país inventou”. Itamar Assumpção, que, a partir da canção, elaborou o show Fugaz, em 1984, igualmente explicitou um desejo coletivo de criação: “é isso que que o Brasil está precisando. A gente quer fazer um país. Cada um na sua atividade. O Brasil todo quer fazer um novo país. E isso é possível para todos. Só quem não demonstra essa dedicação ao original são os políticos. Na profissão que eles escolheram, eles não são tão criativos como nós, das outras áreas”. [nota 1]
Em paralelo às ideias de inventividade, a década de 1980 destacou os atravessamentos das forças políticas na constituição das subjetividades. Frutos das discussões pós-1968 – momento de renovação e efervescência intelectual, comportamental e cultural no Ocidente –, correntes filosóficas enxergavam o sujeito e suas singularidades como campos de potência política. Conjugada na primeira pessoa do singular, são o desejo e a individualidade que movem a campanha pelas Diretas Já: “eu quero votar para presidente”, frase de efeito usualmente escrita em uma tipografia manuscrita. O crescimento das discussões feministas, a inserção de pautas sobre as sexualidades e o fortalecimento do movimento negro à ocasião dos 100 anos da Abolição no Brasil mostraram as diferenças que, por anos, foram achatadas em nome de uma coletiva resistência política contra o autoritarismo da ditadura.
Nos limites da criação e da autonomia subjetiva, Marina e Cicero inventaram uma nova palavra. Fullgás, junção de “full gas” (expressão em inglês que indica o tanque cheio de um veículo) e “fugaz” (aquilo que é efêmero), alinhava e sintetiza o espírito do tempo dos anos da transição democrática. O termo aponta para a intensidade e a fugacidade das transformações que se davam em diversos níveis, potencializadas pelas incessantes inovações tecnológicas, pelo estabelecimento e fortalecimento dos processos de globalização e pelo discurso homogeneizado do consumo, vetores que atravessam o projeto de construção de um novo país.
Composta a partir de um loop de bateria eletrônica programado por Marina em um sintetizador japonês, uma das novidades do período, Fullgás desenvolve a linguagem internacional do pop, desenraizada de territórios e voltada ao consumo em massa. A linha de baixo, inspirada em Billie Jean, de Michael Jackson, emoldura os sintéticos e elaborados versos de Antonio Cicero, que se assemelham a slogans, formato publicitário que condensa o máximo de significados em sua síntese textual. Na medida em que se volta ao que estava sendo produzido internacionalmente, a canção apaga qualquer tensão entre o local e o global e acaba compartilhando um dos ideais da visão liberal que se estabeleceria fortemente na década.
No mundo de faz de conta conjugado pelas expressões do consumo, da publicidade e do liberalismo, onde “nada de mal nos alcança” e “nada machuca nem cansa”, qualquer possibilidade de desprazer é excluída. Para sustentar a fantasia da soberania do prazer, duas drogas seriam protagonistas da década: a cocaína, substância psicoativa que estimula a produção de serotonina, dopamina e noradrenalina; e a fluoxetina, “pílula da felicidade” comercializada, a partir do final da década, pela empresa farmacêutica Lilly sob o nome comercial Prozac. Nesse sentido, será coincidência a rima entre “feliz” e “país” nos versos finais de Fullgás?
Àquela altura, enfim, parecia chegar a felicidade esperada e profetizada pelas canções políticas das décadas de 1960 e 1970. Em contraposição à sombrias décadas que a antecederam, quando reinaram os “dias de frio” (como sugerido em Fullgás), os anos de transição democrática foram marcados pelos signos da luminosidade. Pro dia nascer feliz (Cazuza/ Frejat), hit da banda Barão Vermelho, uma das pioneiras expressões do rock que representaria parte de uma nova geração jovem que promovia uma revolução comportamental inicialmente alienada a questões políticas, cumpria o anúncio de Apesar de você (1978), de Chico Buarque: “você vai se amargar / quando o dia raiar / sem lhe pedir licença”. Nesta mesma direção, o sol estampado nas camisetas amarelas das manifestações pelas eleições diretas foi pensado pelos publicitários de Curitiba responsáveis pela comunicação visual da campanha. O raiar também surgiria em Pra começar (1986), de Marina e Cicero: ”se tudo caiu / que tudo caia / pois tudo raia”.
Apesar da euforia transbordante da “festa da democracia”, termo-slogan empregado diversas vezes pela cobertura jornalística realizada no período, o processo de redemocratização seria marcado por vários percalços até a promulgação da Constituição, em 1988. Embora tivesse grande força dentro do Congresso, a Emenda Dante de Oliveira, que garantiria o restabelecimento das eleições diretas, não foi aprovada. A eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 – uma alternativa para a retomada do poder popular – foi frustrada pelo seu falecimento nas semanas iniciais de seu mandato E, por fim, as sessões constituintes, entre 1987 e 1988, escancararam os abismos e as fissuras de um Brasil continental.
Passados os anos fullgás de transição democrática, vertiginosamente marcados pela intensidade e pela fugacidade das transformações que tomaram lugar nos campos da política, das subjetividades e do consumo, quem, de fato, ocupou as posições dominantes que possibilitaram a criação de um país? Não se trata de perguntarmos qual o perfil daqueles que foram às ruas pelas eleições diretas ou que torceram pela democracia, mas, sim, indagar sobre aqueles que conduziram o processo político e institucional nas instâncias executivas e legislativas. Um breve levantamento de dados nos dá algumas pistas das extensões da questão. Se olharmos atentamente as sessões de trabalho para a Constituição de 1988, apenas 4% de um quórum superior a 550 constituintes foi composto por mulheres. Quando realizamos um recorte racial, de políticos negros, havia menos de 2%. Diante dessas limitações, que não representam a pluralidade social do Brasil, a gente fez uma democracia a partir de quais bases?
NOTA
1. Declaração publicada na reportagem “Itamar Assumpção, a todo vapor”. Folha de S.Paulo, 29 de agosto de 1984, p. 40.
2 comentários:
Antonio Cicero,
Que felicidade enorme em saber que meu texto chegou até você! E ainda por cima vê-lo aqui compartilhado. Uma honra enorme.
Muito obrigado pela sua generosidade.
Um abraço,
Renato Gonçalves.
Quem agradece pelo seu belo e inteligente texto sou eu! Muito obrigado!
Grande abraço!
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