5.12.11

Sophia de Mello Breyner Andresen: "O Minotauro"




O Minotauro


Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar

Há uma rápida dança que se dança em frente
[de um toiro
Na antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
Só bebi retsina tendo derramado na terra a
[parte que pertence aos deuses

De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo
[vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua

Devastada era eu própria como a cidade em
[ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que
[mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra
[anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega

Pinturas ondas colunas e planícies

Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes
[e vermelhos
palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar da sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e
[terror
Imanentes ao dia –
Caminhei no palácio dual de combate
[e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos [matinais


nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se
[vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde e se desune e
[se reúne
E esta é a dança do ser

Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minóica
São feitos com barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei
[a vaga
De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das [coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que
[percorrem o labirinto,
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra




ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Dual". In:_____. Obra poética. SOUSA, Carlos Mendes de (org.). Alfragide: Caminho, 2001.

2 comentários:

Alcione disse...

Fuzuê

De seda
São os pensamentos feito
Pequenos seres e
Navegantes são
Os sentimentos
E algures a forma
Que Se deforma
Enquanto o ser
Leva-me a ver
Porque a vida é tão bela
E pode ser,
Tal qual a primavera
Declamando
Efemérides
Desse nosso fuzuê.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Belíssimo! Grato por compartilhar!


Um poema meu:


"epílogo"




desafiar o infinito:
despir-se
do íntimo, imergir
no âmago do labirinto
do olvido,
não decifrar sequer isso,
cortar todos os fios,
atirar-se às garras da esfinge,
ficar à espera do touro de minos,

sentir.


Abraço forte,
Adriano Nunes