A criança que fui chora na estrada (1933)
I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
PESSOA, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.
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12 comentários:
Cicero,
Demais! Meu mestre maior! Salve Pessoa!
Abraços,
Adriano Nunes
Lindo demais, Cícero.
É incrível como além dos poemas mais conhecidos do Pessoa aparecem tantos outros tão bons quanto.
A frase "Hora a hora nosso diverso e sucessivo alguém desce uma vasta escadaria agora" é divina.
Abraço,
JR.
Parece que o scanner comeu os hífens e desarticulou o segundo soneto.
Cícero,
Que lindo!!!
Aproveito para mandar um poema de outro poeta português que adoro.
Um abraço,
Eleonora
GUERRA CIVIL - MIGUEL TORGA
É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço
Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.
João Renato,
obrigado por me alertar. Já corrigi os erros que encontrei.
Abraço
Eleonora,
Obrigado pelo poema do Miguel Torga. É realmente bonito.
Abraço
cicero,
hj na coluna do caligaris, no final do texto, ele cita um agambem bem mais moderno do que sua obra anterior parece nos mostrar:
"Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério"."
Enfim, sempre há tempo... rs
Abçs.
Caro Nobile José,
Quando li o texto do Calligaris, de manhã, pensei exatamente como você sobre o Agamben.
Abraço
Caro Cicero,
brilhante e instigante a palestra que você fez no Museu de Artes e Ofícios em BH, terça passada.
Você é a beleza em superlativo!
Abraços.
Rodrigo Viana
Obrigado, Rodrigo! Ganhei o dia, com suas palavras.
Grande abraço
António Cicero, aqui lhe deixo a musica que fiz com este poema de Pessoa, que consta do meu CD Eterno Regresso. https://youtu.be/h_IVlshJo7Y
Um abraço
Parabéns, Rogério Godinho! Ficou bonito.
Abraço
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