22.10.11
Fernando Brant: depoimento sobre o ECAD
Depoimento do Fernando Brant na audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Ecad realizada no Rio de Janeiro no dia 30 de Setembro de 2011
Tenho em minhas mãos a Constituição do Brasil. Ela é meu livro, a Bíblia do cidadão. Nada falarei aqui que não esteja de acordo com ela.
Sou apenas um compositor brasileiro. É dura a vida de um compositor popular em nosso país. Posso falar de meu caso, pois ele se aplica a muitos que têm algum talento musical ou literário e se aventuram na arte de criar melodias e harmonias, juntá-las às palavras e criar uma canção.
A canção move o mundo. Ao lado do trabalho e da criatividade, o autor necessita de sorte, persistência. Tem de estar disposto a enfrentar muita incompreensão. Precisa ser original no que faz e sagaz na relação com a indústria cultural, com o mercado editorial e de comunicação.
Com 20 anos de idade, estudante ainda, fiz minha primeira letra para uma canção. A obra, em parceria com Milton Nascimento, abriu um deslumbrante horizonte para nós. Ingênuos, no entanto, assinamos um contrato de edição e, sem querer, arranjamos um parceiro indesejado que nos acompanha até hoje. A satisfação do menino letrista assinando o seu primeiro contrato se dissolveria no tempo, permanecendo, porém, um incômodo que ainda me acompanha. Mas que, por não ser irrevogável, pode ser solucionado.
Esse fato serviu, no entanto, para que eu adquirisse a consciência da importância de manter a minha obra sob meu controle. É o que eu fiz, daí em diante. Eu sou o meu editor.
Volto a dizer: é dura a vida de um compositor brasileiro.
Tendo sua obra sob seu controle, nem por isso os problemas estavam resolvidos.
Faltava a solução dos problemas da execução pública das músicas. Em plena ditadura militar, os grandes autores brasileiros se uniram para exigir que a arrecadação e distribuição dos direitos autorais fosse unificada. Como era na maioria dos países. Foi uma bela batalha, coroada pela sensibilidade do Ministro do Supremo, Moreira Alves, que introduziu na primeira lei autoral brasileira, o escritório central de arrecadação e distribuição. Foi o nascimento do ECAD, uma conquista dos autores, músicos e cantores brasileiros.
Donos de emissoras de rádio não queriam pagar direitos autorais, pois estavam, segundo eles, divulgando a obra. Inútil dizer-lhes que divulgação não paga comida, escola, aluguel, taxas e impostos. Ou alertá-los para o fato de que estariam, sem autorização, usando o trabalho alheio.
As emissoras de televisão também não concordavam em pagar pelo uso de música. E os exibidores de cinema. E as prefeituras, os governos em geral.
Depois de muita luta, de muitos anos de esclarecimento sobre o que ocorria em todo mundo, a situação foi melhorando. Nossos direitos passaram a ser reconhecidos. Muitos começaram a observar os direitos dos autores musicais. Mas a cada um que respeita os criadores e as leis, surge um outro disposto a burlar, piratear, usar sem autorização o que não lhe pertence. Brigar pelos direitos autorais é uma batalha sem fim. E é aí que surge a Justiça, interpretando e aplicando a Constituição e a lei autoral do país. Lei nova, de pouco mais de doze anos de existência, uma quase adolescente em termos de legislação, que agora tem entendimento pacificado pelos tribunais superiores e pelos juízes brasileiros. E alguns interesseiros e outros, incautos, querem mudá-la. Aprimorar sim, transformar não.
Estou aqui para falar em nome da UBC- União Brasileira de Compositores, e de milhares de autores, músicos, intérpretes e editoras que dela participam. Falo em nome dos pioneiros que a fundaram – Mário Lago, Braguinha, Ataulfo Alves, Ary Barroso, Lamartine Babo, Dorival Caymmi e tantos outros que, em 1942, se conscientizaram de que somente unidos poderiam defender os seus direitos. União de compositores brasileiros que comemora, no próximo ano, setenta anos de existência.
Falo com o orgulho de ocupar hoje o lugar do primeiro presidente, Ary Barroso. Falo em nome dos que, hoje, consolidam a música popular brasileira como o que ela sempre foi, a melhor do mundo, a arte brasileira mais reconhecida e aplaudida em todos os pontos do planeta.
E me lembro do que me disse Mário Lago, esse gigante da cultura brasileira, narrando os primeiros tempos em que os próprios compositores saíam para cobrar os seus direitos. Eram ameaçados de agressão e até prisão. Não mudou muito a realidade. Enquanto os civilizados reconhecem o direito dos criadores em receber pelo que criam, sempre existem organizações desinformadas e mal intencionadas que tudo fazem para tumultuar o ambiente e fugir à obrigação de reconhecer os direitos autorais.
A única maneira de se defender o direito autoral musical é pela gestão coletiva. São milhões de canções e milhares os compositores, músicos e intérpretes. É vasto o mundo.
A gestão coletiva surgiu da necessidade de se organizar a autorização, o controle, a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais da obra. A impossibilidade de cada autor controlar a utilização de sua obra, em todos os cantos do país e do mundo, faz com que eles se reúnam em sociedades para gerir seus direitos. A gestão coletiva garante os direitos dos autores e preserva os usuários, pois eles recebem uma autorização ampla e única. E o autor, segundo a lei brasileira, pode, se quiser, não se associar e administrar por conta própria a sua obra. A possibilidade de êxito dessa iniciativa é pequena, mas o autor possui essa liberdade.
Vacinados contra o vírus do autoritarismo, por tê-lo vivido nos tempos da ditadura, não somos daqueles que, a qualquer obstáculo, buscam a proteção do Estado, essa mão, dúbia,
que “ afaga e apedreja”. Os problemas dos cidadãos devem ser resolvidos por eles. A função do Estado, que vive dos impostos que lhe pagamos, é cuidar das grandes questões da coletividade: educação, saúde e segurança públicas, infra-estrutura. Resistimos por não querer, como Prometeu, viver acorrentados.
Recusamos o paternalismo estatal, e mais ainda a intervenção, porque temos, essa sim a nos defender, a Constituição Brasileira.
Está lá, no artigo 5º, inciso XVIII, de nossa Carta Magna: “ a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas, independe de autorização, sendo vedada a intervenção estatal em seu funcionamento.” Essa é uma cláusula pétrea, não pode ser modificada, de acordo com o artigo 60 da Lei Maior: “ não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir… os direitos e garantias individuais”.
O ECAD é fiscalizado, como qualquer empresa privada, pela Receita Federal, INSS, Ministério do Trabalho. Tem auditoria interna e externa, independente. Publica seus balanços na internet. Mas o verdadeiro fiscal do ECAD, que é apenas o braço arrecadador dos autores, é o autor, que é a razão de sua existência, o seu dono.
Vou falar sobre acontecimentos de que fui participante e testemunha.
Com a redemocratização do País, em 1985, o novo Governo criou o Ministério da Cultura e vinculou a ele o CNDA- Conselho Nacional de Direitos Autorais, criado pela lei 5988, de 73. Os novos ventos levaram os primeiros Ministros da Nova República a arejar a composição daquele Conselho, trazendo autores para trabalhar junto com os juristas e advogados que dele faziam parte.
Autores como Gonzaguinha, Maurício Tapajós, Joyce, José Carlos Capinam, Marcos Vinicius Mororó e eu – da área musical- escritores como José Louzeiro, Francisco Alvim, Alberto da Costa e Silva, Ivan Ângelo e Jota Dângelo e o fotógrafo Walter Firmo foram convocados para aliar sua experiência prática de criadores aos conhecimentos jurídicos dos especialistas.
Com a Constituinte, o novo CNDA desempenhou papel importante na afirmação da importância dos direitos autorais, influindo para que a redação do artigo 5º, “ Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, cláusula pétrea de nossa Constituição, protegesse de fato os autores e suas obras.
Está lá no inciso XXVII: “ aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.”
Esse meu interesse em entender o mundo autoral me levou a dedicar grande parte do meu precioso tempo de compositor e pai de família pela causa que é nobre, missão a que mais autores deveriam se dedicar.
Fui, durante esses anos, membro do Bureau Executivo da CISAC (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores) e presidente do Comitê Ibero-americano da mesma CISAC. Conheci de perto como funcionam as grandes sociedades autorais do mundo. A PRS, da Inglaterra; a GEMA, da Alemanha; a SACEM, da França; a JASRAC, do Japão e a SGAE, da Espanha. E fui associado da norte-americana ASCAP.
Abandonei minha relação com a sociedade norte-americana e sou hoje representado pela UBC em todo mundo, pois acredito que em meu país, em minha língua e com a nossa legislação, eu estou mais bem protegido.
Todo esse conhecimento me faz afirmar que a gestão coletiva praticada no Brasil é tão boa ou melhor do que a que existe nos demais países do mundo.
Pode-se ver que estou nessa batalha há muito tempo. Tenho em mim um sentimento coletivo que não enxergo em muitos dos meus companheiros de profissão. Por inocência ou ignorância da realidade do direito autoral no Brasil, declaram publicamente idéias que agridem os seus próprios interesses. Falam mal do prato e do cozinheiro que os alimenta. Com isso, dão força a quem não os respeita e os quer como pedintes. Aderem aos que não querem pagar pelos seus direitos. Coitados, abdicam do direito e responsabilidade de gerir o que é deles e clamam pela proteção do Estado. Que artistas são esses, que cidadãos são esses que, no palco da mídia, confessam sua incapacidade de solucionar seus problemas? As portas da gestão de seus direitos estão abertas, porque são deles. Venham ajudar o imperfeito a melhorar.
O Estado não foi feito para isso. Ele é uma criação do homem para cuidar do bem comum. O particular é questão para ser resolvida pelo particular. Seriam essas pessoas capazes de delegar ao Estado à criação de seus filhos? A resolução de seus problemas conjugais?
De uma fraude cometida por um estelionatário, e que era caso para a polícia investigar, e ela o fez, cria-se uma sórdida campanha na imprensa para esconder interesses escusos.
Os Senadores certamente não conheciam o lado oculto da lua. Espero que essa CPI possa iluminar a verdade e esclarecer as mentiras e os interesses obscuros que estão por trás de tudo isso.
Termino com a leitura de uma carta de princípios assinada por quase mil autores brasileiros.
O AUTOR EXISTE.
o direito autoral é uma conquista da civilização, o contrário é a barbárie.
o direito autoral é um dos direitos humanos (carta da ONU).
ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar sua obra (cláusula pétrea de nossa Constituição).
o direito autoral é um direito privado.
somos capazes de criar e administrar o que nos pertence. para isso, não precisamos da mão do Estado.
há dois lados na questão: o criador que quer receber e empresas que não querem pagar.
para resolver isso, a Justiça e o Estado podem e devem colaborar.
a lei atual protege os criadores no mundo real e no virtual. ela pode ser melhorada e aprimorada.
o que se passa na internet em relação ao direito autoral é transitório: a tecnologia que cria supostos conflitos os resolverá.
todos os autores têm de ter à sua disposição todas as informações sobre o que se arrecada e se distribui.
essa comunicação tem de ser pública e oferecida, também, ao Ministério da Cultura.
a função social da arte é espalhar beleza e prazer estético para a humanidade.
a obrigação de tornar a cultura acessível a todos é do Estado, sem prejudicar o autor.
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Fernando Brant
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3 comentários:
Acontece que o ECAD, como funciona hoje, promove a manutenção do paradigma artístico e não sua renovação. A opção obscura pela "amostragem" não faz o menor sentido caso queiramos promover a divulgação de novos artistas!
A função do ECAD não pode ser divulgar novos artistas, mas sim arrecadar e distribuir os direitos autorais das canções efetivamente executadas, tanto de novos quanto de velhos artistas.
Não quis dizer que a função do ECAD é a divulgação, mas que o método atual acaba por ter esse efeito negativo que eu citei. O que não me faz ser contrário ao direito autoral, é claro. Se há mercado, não há um porquê do autor ser o único fora dessa lógica. Como disse o próprio Brant, porém, ainda há muito a ser melhorado. Acho preocupante a polarização que essa discussão vem mostrando no Brasil...
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