10.1.10

As minorias que estão "por dentro"



O seguinte artigo foi publicado no sábado, 9 de janeiro, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:


ANTONIO CICERO

As minorias que estão por dentro


NO LIVRO "AS ESTRELAS Descem à Terra", o filósofo Theodor Adorno observa que aquele que conhece a astrologia já se considera acima do homem comum, isto é, do homem que aceita acriticamente o senso comum sobre o mundo existente.

"A astrologia", diz Adorno, "à maneira de outras crenças irracionais, como o racismo, oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".

Essa descrição da astrologia aplica-se bem a inúmeras outras ideologias, religiosas e laicas. Como pretendo dizer algo tanto sobre aquelas quanto sobre estas, mas não há espaço para isso tudo numa só coluna, falarei apenas das religiosas neste artigo, deixando as laicas para o próximo.

Lembremo-nos, por exemplo, do cristianismo primitivo. Segundo seu verdadeiro fundador, o apóstolo Paulo, Deus disse: "Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes". Paulo pergunta: "Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?" E explica, adiante: "Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus [...]. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios e sabe como eles são fúteis". No lugar da sabedoria deste mundo, Paulo propõe a fé, que, como diz, não se baseia na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

Com essas penadas são varridas, entre outras coisas, a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas. As obras de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes, Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Demóstenes, Cícero, Homero, Hesíodo, Píndaro, Virgílio e inúmeros outros são cassadas, entre as quais (segundo a sabedoria dos sábios, a inteligência dos inteligentes e a erudição dos eruditos, tanto da época de Paulo quanto da nossa) algumas das maiores preciosidades jamais produzidas pelos seres humanos.

Nesse caso, os que estão "por dentro" da palavra de Deus não apenas se sentem superiores ao homem comum, como diz Adorno, mas também -e sobretudo- aos "sábios", aos "inteligentes" e aos "eruditos". Vingam-se assim -de novo, nas palavras de Adorno- de se sentirem excluídos dos privilégios educacionais.

Foi indignado com as palavras de Paulo acima citadas que Nietzsche afirmou que a religião cristã, sendo "inimiga mortal da sabedoria do mundo, isto é, da ciência, aprovará todos os meios pelos quais a disciplina do espírito, a integridade e o rigor em ciências do espírito puderem ser envenenados, caluniados, desacreditados. A fé como imperativo é o veto contra a ciência -na prática a mentira a todo custo... Paulo compreendeu que a mentira, que a "fé" era necessária; mais tarde a Igreja compreendeu Paulo".

Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, na Idade Média, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica foi assumida- quanto para os que deles eram excluídos.

Isso não quer dizer que não tenha havido seitas que se considerassem acima do senso comum e se rebelassem contra a sabedoria deste mundo, inclusive contra a pretensa sabedoria da doutrina católica. Durante a Idade Média, proliferaram seitas de hereges, milenaristas, salvacionistas etc. a manifestar seu ódio contra toda sabedoria humana e, em particular, contra a razão.

Assim também fizeram os líderes da reforma protestante. Não admira que Martinho Lutero, declarado discípulo de Paulo, tenha chamado a razão de "puta amaldiçoada". "A razão", diz, "tem que ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que pisar toda razão, senso e entendimento".

Em que essas ideologias religiosas são próximas da astrologia, tal como descrita por Adorno? Em se considerarem acima do senso comum e em proporcionarem aos seus adeptos a sensação de pertencerem a uma minoria que está "por dentro".

Mas não é toda ciência assim? A diferença, para Adorno, é que a astrologia consiste numa "crença irracional". Falarei disso no próximo artigo.

E em que são distantes da astrologia? Em desprezarem não só o senso comum, mas toda sabedoria humana, inclusive a razão. Nesse sentido, as ideologias laicas, de que falarei também no próximo artigo desta coluna, estão bem mais próximas da astrologia.

96 comentários:

Amélia disse...

Fico a aguardar, com MUITO interesse, a continuação.Estou a gostar da reflexão produzida.

Angela disse...

No dia a dia, vejo as pessoas levantando alto sua bandeira e tratando a todos como se todos estivéssemos debaixo do mesmo guarda chuva religioso.E o fazem mesmo com esta convicção e com a maior naturalidade.É quase uma afronta, uma ofensa, simplesmente dizer que não compartilhamos desta crença.Por delicadeza intimido-me, mas acho que está mais do que na hora de ter a mesma naturalidade em dizer que não creio.Obrigada pelo artigo maravilhoso.

Anônimo disse...

Aguardo ansiosa este próximo artigo.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


em primeiro lugar: parabéns pelo excelente artigo! Aguardo ansiosamente pelas continuações.

em segundo:"É verdade que até agora a fé não conseguiu mover nenhuma montanha real, embora isso tenha sido afirmado por não sei quem; mas ela consegue pôr montanhas onde não há." (Nietzsche, Friedrich; Aforisma 225; Humano Demasiado Humano; página 106, Companhia das Letras; Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza).

Em terceiro: a citação de Paulo em Coríntios I; 1; 18-31 é extremamente "medieval" e "de aniquilação". É como se estivéssemos desejando a todos os seres humanos o mesmo castigo imposto a Édipo (descrito por Sófocles/ Por favor, não me venham aqui pensar ou creditar apelos psicológicos ou psicanalíticos! Refiro-me à cegueira total da razão!)

Em quarto: "Embora o estudo da filosofia se instaurasse finalmente entre os cristãos, nem sempre produziu efeitos salutares; o saber foi tão amiúde pai da heresia quanto da devoção..." (Gibbon, Edward; Declínio e Queda do Império Romano; página 285;Companhia de Bolso; tradução e notas suplementares de José Paulo Paes) - Eis o que a razão representava para os "bitolados" pela fé "cega"!


Grande abraço,
Adriano Nunes.

Marcone disse...

antonio cicero, que modo mais esnobe de falar sobre o que não se conhece, não acha? mas vc me deixou na dúvida, pq ao questionar tanto a "sabedoria de Deus" quanto ao a da astrologia, não colocaste a ti no pedestal que tentastes criticar? (do Zaratustra subindo ao monte mais alto e rindo de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras?) ora pois... o que é racionalidade nessa história toda? cita Nietzsche pra depois apelar pra esse positivismo de gibi?, também aguardo a continuação da reflexão, esperando que talvez se torne mais humilde ao questionar milênios de tradição, seja religiosa ou laica.

Antonio Cicero disse...

Marcone,

Vou responder suas perguntas uma por uma, pondo-as em itálico:

antonio cicero, que modo mais esnobe de falar sobre o que não se conhece, não acha?

Você se refere às palavras de Paulo sobre a cultura clássica? Sim, são esnobes e arrogantes.

mas vc me deixou na dúvida, pq ao questionar tanto a "sabedoria de Deus" quanto ao a da astrologia, não colocaste a ti no pedestal que tentastes criticar? (do Zaratustra subindo ao monte mais alto e rindo de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras?)

Agora é você que está, de modo esnobe, falando sobre o que não entende. Eu não questionei nada. Apenas citei Adorno, Paulo e Nietzsche. Cada um deles fala por si.

ora pois... o que é racionalidade nessa história toda? cita Nietzsche pra depois apelar pra esse positivismo de gibi?

Onde está o positivismo? Em dizer que “a fé como imperativo é o veto contra a ciência – na prática a mentira a todo custo”? Não vejo onde mais você poderia pensar ter encontrado positivismo. Mas essas palavras são de Nietzsche, não são minhas. Que você se choque com o fato de elas terem sido ditas por Nietzsche apenas prova a minha tese de que a maior parte dos nietzscheanos brasileiros não leem Nietzsche.

também aguardo a continuação da reflexão, esperando que talvez se torne mais humilde ao questionar milênios de tradição, seja religiosa ou laica.

Você está invertendo as coisas. Leia o artigo de novo. Quem questiona – ou melhor, despreza e rejeita – a tradição é Paulo. Eu não: eu amo e cultivo a tradição de Platão, Aristóteles, Epicuro, Lucrécio, Euclides, Arquimedes... que Paulo tentou jogar na lata de lixo.

A humildade cairia melhor em você, que, em primeiro lugar, precisa aprender a ler.

Fernanda Marra disse...

Adorei, Cícero,

Também estou ansiosa pela continuação. Ando quase querendo admitir que, definitivamente, não creio, mas por ignorância e temeridade de não sustentar o discurso digo que só tenho dúvidas. Seu texto aclara e me deixa mais segura do que quero e posso acreditar. Acaso teria alguma bibliografia básica para indicar a uma des-crente potencial?
Obrigada,
Fernanda.

Climacus disse...

ai, não tenho nenhuma intenção de chatear, mas, não tem um pouco do epicurismo em Paulo?

Marcone disse...

Olá Antonio, obrigado por responder o comentário que fiz, permite minha réplica? Com todo respeito, sei que esta acostumado com a babação por aqui, e se ofendi não foi mesmo a minha intenção. Vamos lá:

Não, me referia à citação do Adorno e a generalização que você fez. “à maneira de outras crenças irracionais”, bem, o que é ou não sabedoria ai: a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas, pode? e a astrologia e o cristianismo, não pode? É por ai?

Sim, de fato você não questionou, fez pior, varreu numa penada só qualquer possibilidade de aceitar como válida a fé, a astrologia e o que vc deve ou não entender por crenças “irracionais”.

A diferença é que também para Antonio Cícero, o que vai contra a idéia do que ele acha certo ou errado, razão ou crença, deve ser “desprezado” como coisa de indivíduo excluído dos privilégios educacionais, e nessa penada, vai: santo Agostinho, Tomas de Aquino, Magno, Pascal, a filosofia cristã inteira, estou certo?

p.s: quanto a coisa do Nietzsche, só achei curioso citá-lo para criticar a “irracionalidade” quando sabemos que ele foi um ferrenho critico dessa dita razão, que vc tanto endeusa. E, sobre sua tese, fico feliz por ter ajudo a prová-la, o que prova seu métodos pouco científico de provar o que quer que seja e de tirar conclusões tão apressadas e preconceituosas sobre quem você nem conhece, pode deixar que da próxima vez que eu for ler algo vou te procurar antes pra vc me dizer como devo proceder em minhas leituras, seja de Nietsche, de vc ou de quem quer que seja.

Antonio Cicero disse...

Marcone,

Não tenho tempo para perder com os mal-entendidos de pessoas que não leem com atenção os textos que comentam. Esta é a última resposta que lhe dou. Faça bom uso dela. Seus enunciados estão em itálico:



Não, me referia à citação do Adorno e a generalização que você fez. “à maneira de outras crenças irracionais”, bem, o que é ou não sabedoria ai: a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas, pode? e a astrologia e o cristianismo, não pode? É por ai?

Esse seu texto é simplesmente ininteligível:
“a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássica, pode?”
Quem é o sujeito de “pode”? E “pode” o que?
Igualmente o texto seguinte:
“e a astrologia e o cristianismo, não pode?”
Quem não pode o que?
Seja mais cuidadoso ao tentar exprimir suas opiniões.


Sim, de fato você não questionou, fez pior, varreu numa penada só qualquer possibilidade de aceitar como válida a fé, a astrologia e o que vc deve ou não entender por crenças “irracionais”.

Você está invertendo as coisas. Foi Paulo que rejeitou toda cultura, em nome da fé.
Mas, já que você está interessado na fé de que fala Paulo, vejamos em que consiste ela. Quando uma pessoa sabe ou conhece alguma coisa, não se diz que ela tem fé nessa coisa, mas que a sabe ou conhece. Só se tem fé naquilo que não se sabe nem se conhece. De modo geral, ter fé é crer ardentemente em algo, mesmo sem se ter razão para fazê-lo. Crer em algo, mesmo sem ter razão para tal, é crer irracionalmente em algo.

A diferença é que também para Antonio Cícero, o que vai contra a idéia do que ele acha certo ou errado, razão ou crença, deve ser “desprezado” como coisa de indivíduo excluído dos privilégios educacionais, e nessa penada, vai: santo Agostinho, Tomas de Aquino, Magno, Pascal, a filosofia cristã inteira, estou certo?

Está errado. Sou leitor de todos esses pensadores que você menciona, coisa que pode ser constatada por qualquer um, pois os cito nos meus livros. Agostinho não pensava como Paulo, nesse ponto. Ele admirava Platão, por exemplo. Tomás de Aquino e Alberto Magno admiravam Aristóteles. A Igreja não seguiu inteiramente o caminho irracionalista de Paulo. Aliás, eu digo isso no meu artigo: o que prova que você não sabe ler. Quanto a Pascal, ele era um grande matemático e um escritor admirável.

p.s: quanto a coisa do Nietzsche, só achei curioso citá-lo para criticar a “irracionalidade” quando sabemos que ele foi um ferrenho critico dessa dita razão, que vc tanto endeusa. E, sobre sua tese, fico feliz por ter ajudo a prová-la, o que prova seu métodos pouco científico de provar o que quer que seja e de tirar conclusões tão apressadas e preconceituosas sobre quem você nem conhece, pode deixar que da próxima vez que eu for ler algo vou te procurar antes pra vc me dizer como devo proceder em minhas leituras, seja de Nietsche, de vc ou de quem quer que seja.

Essa sua ideia seletiva de Nietzsche se vulgarizou no Brasil a partir dos nietzscheanos que eu critico. Aposto – não por preconceito, mas a partir da leitura desses seus comentários – que você não a aprendeu no próprio Nietzsche, mas exatamente nessa vulgata. Por isso, no fundo, eu estava certo mesmo.

fred girauta disse...

graças ateus!

Rosana disse...

Li seu artigo na praia e achei o texto fantástico. Senti aquela vontade de sair correndo e compartilhar seu artigo com todos os banhistas. Mas o ambiente não oferecia eco. Agora, no trabalho, encontrei uma amiga que sua admiradora. Foi delicioso poder conversar sobre sua coluna. Aguardamos ansiosas pela próxima.
Rosana Hermann
@rosana

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Não costumo entrar em debates pessoais desde que os que aqui frequentam são citados mesmo que indiretamente. Detesto quando alguém se refere a todos nós, assíduos frequentadores dessa preciosidade cultural que é o seu blog, como bajuladores ou símile, ainda por cima se for dotado de cultura da superficialidade, de falta de leitura, de conhecimento e de razão!

Pois bem: Citar autores sem conhecê-los, sem devorá-los, sem mergulhar em seu cerne e âmago, com intensa soberba, falta de humildade, tentando agredir, atirar para todos os lados, parece-me (no caso, tenho certeza) uma infantilidade à prova e um iniciante na Arte do Saber!

Desconheço no Brasil (não por falta de saber de outros) quem escreva artigos com tanta clareza e razão quanto você! Prefiro ser um "babão" que ter que ir pela tangente do que é grosseiro, ridículo e que nada me acrescente.

Também estou farto desses leitorezinhos de Nietzsche e da Filosofia Cristã que são Ciclopes da Filosofia em si - Gente que vê e entende o que quer e não que é que deve ser entendido, como entendido deve ser. Creio que mesmo Nietzsche, em sua loucura máxima, nos seus últimos momentos de lucidez e vida, seria capaz de discutir melhor que seus próprios fãs soberbos e burros e mais: criticá-los e contestá-los com seu martelo! Descontruí-los... à luz da razão!



Grande abraço,
Adriano Nunes.

Mari Reis disse...

Agradeço essa reflexão...

Acabei de conhecer o seu blog, estou encantada com os textos, esse em especial, que fala de um tema pelo qual me interesso muito, acerca das crenças das pessoas... Espero ansiosa os próximos texto!

Publiquei no meu perfil num site pessoal, para tentar transmitir isso para outros....

=> Clique aqui é vírus: http://antoniocicero.blogspot.com/

Parabéns, não sei o quanto esta é a intenção, mas eu me sinto contagiada!

Abraço!

Aetano disse...

"Começamos por hostilizar os argumentos e acabamos inimigos dos homens"

(Montaigne)

Caro Cicero,

Antes de entrar no mérito do artigo, permita-me um depoimento:

Já frequentei muitos blogs. Hoje, frequento pouquíssimos. A razão está em que estes espaços, em sua imensa maioria, não passam de ambientes onde se prega para convertidos. Ou seja, não adianta divergir, pois o autor do blog ou não publica seu comentário ou, quando o publica, não o leva em consideração, nem mesmo quando ele contém pertinentes questionamentos.

Nesse blog, ao contrário, eu já presenciei vários debates entre o dono e o(s) leitor(es) - quem quiser comprovar essa afirmação basta ver os interessantíssimos debates entre Cicero e Edson Dognaldo Gil.

Aqui eu me sinto livre para discordar - e já discordei algumas vezes - porque sei que Cicero além de publicar e responder - quando é o caso -, não me tomará como um "inimigo". E acho que é assim que deve ser, pois, citando novamente Montaigne, "a contradição das opiniões não me ofende nem me exalta, apenas me fornece oportunidades de me exercitar".

Ocorre que essa não é a visão corrente. Para muitos, a contradição equivale à emissão de uma ofensa - e parece-me que, ironicamente, quanto mais aquela for polida mais esta será doída. Enfim, como já observou outro generoso intelectual - Contardo Calligaris - o diálogo é uma coisa rara.

Quanto ao mérito do artigo, com efeito a Igreja Católica hoje censura o fideísmo (vide a Encíclica "Fides et Ratio", de João Paulo II), mas ao mesmo tempo entende que "os mistérios da fé" transcendem e precedem "as conclusões filosóficas"...

Grato pelo espaço e pelo excelente artigo, Cicero.

Abcs

Antonio Cicero disse...

Caro Aetano,

Obrigado pelo seu apoio. Concordo com as palavras de Montaigne. Contudo, confesso que o comentário de Marcone irritou-me um pouco, pois, sem argumento nenhum, foi, desde o início, prepotente e grosseiro.

A primeira frase refere-se a mim (o que fingi não entender, para não dar o braço a torcer) de modo debochado: “Que modo mais esnobe de falar sobre o que não se conhece, não acha?”

Ou seja, acusa-me de falar, de modo muito esnobe, de coisas que não conheço, logo, de coisas de que, por ignorar, não tenho o direito de falar.

Ainda que isso fosse verdade, ele teria que demonstrar que não sei do que estou falando; não basta simplesmente afirmar isso; ora, ele não demonstrou coisa nenhuma. Longe disso, passou a outra acusação: eu, -- como Zaratustra e qualquer ser humano que pretenda saber alguma coisa -- estaria pretendendo usurpar o lugar de Deus. É a clássica acusação religiosa contra os homens modernos.

Além dessas acusações sem fundamento, fez outra: a de que cito Nietzsche “para depois apelar pra esse positivismo de gibi”. Isso também é dito sem nenhuma demonstração de nada. Onde foi que defendi “positivismo de gibi”? E o que é “positivismo de gibi”? Com isso, ele evidentemente está a me acusar de ser superficial e vulgar. Pois bem, é o “Nietzsche” dele que é de gibi.

Finalmente, pretende que fui arrogante “ao questionar milênios de tradição”, quando meu artigo mostra que foi exatamente o fundador do cristianismo que varreu a tradição.

Estou chegando à conclusão de que meu erro foi ter respondido. Em casos como esse, o melhor é não responder: deixar para responder apenas os comentários que, de boa fé, querem discutir as coisas, e não apenas manifestar rancor.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Fernanda,

infelizmente, não tenho nenhuma bibliografia pronta sobre esse assunto, e não posso nem pensar em fazer uma, pois ando com meu tempo completamente tomado.

Abraço

Jefferson Bessa disse...

O rancor das minorias que se julgam excluídas dos privilégios educacionais pode surgir a todo instante. É só aplicar o conteúdo do seu artigo aos ataques - sem fundamento e, portanto, acríticos -de uma "minoria" que inveja e odeia a inteligência.

Sempre me lembro de que se justificar pela humildade - que se mescla ao ódio (mesmo quando não há no outro nenhuma arrogância) - é sempre a arma doente de uma minoria que desta forma tenta subjugar as energias vitais da inteligência.

Parabéns pelo artigo, Cicero!
Por isso, devemos nos voltar ao que importa de verdade: esperar o seu próximo artigo que dará continuidade ao assunto.

Um abraço.

Jefferson.

Fernanda Marra disse...

Sem problemas, Cícero, é evidente que compreendo. Em todo caso, sem querer ser abusada e já sabendo que estou sendo, se se lembrar de alguma coisa, por favor, estarei aguardando.

Abraço.

Aetano disse...

Caro Cicero,

Você tem razão. Ataques pessoais apenas demonstram falta de educação, insegurança e ignorância, ou seja, muita grosseria e nenhuma substância.

Uma coisa é contraditar os argumentos, outra é hostilizar o autor. A primeira - de que eu tratei no meu comentário - tem recebido aqui uma atenção pouco comum - basta ver outros blogs. A segunda merece a mais fria indiferença, posto que revelam mais o agressor que o agredido.

Abraços

wilson luques costa disse...

Prezado Antonio Cicero,

Não podemos dizer que o catolicismo tenha aceitado os postulados de Paulo. Haja vista a participação das ideias aristotélicas tomadas pala igreja na Idade média, mais notadamente no que concerne a T. AQUINO -- isso sem considerarmos outras vertentes, poderíamos ainda dizer que o próprio santo Agostinho faz um discurso tangenciando uma tal lógica em confronto com o pelegianismo -- isso sem nos afastarmos muito e irmos à Teologia da Libertação com as suas pitadas de Marx, Adorno etc - que aliás eram de ascendência judaica. Portanto, falar que a religião católica está na contramão da racionalidade é colocar-se numa outra contradição. Aliás, a fé advém da impossibilidade da certeza aleatória. O que é um axioma na matemática? Se se coloca com tal? Aliás, mostre-me a certeza da física e da matemática, que eu lhe mostrarei quantas contradições houver. Falo isso, e não sou católico há tempos. Todavia, percebo a irritação do mundo laico com a ideia de fé. Repare: até para atravessarmos a avenida Ipiranga temos que ter fé; porquanto a ciência seria lenta em nossa caminhada... Desculpe-me, porque talvez eu não tenha também entendido o seu texto como o colega Marcone.
GRATO...

Anônimo disse...

É, no mínimo, curioso como alguém que escreve tão mal seja tão desinibido. Isso sem falar na grosseria, que, por si, já mereceria a mais completa indiferença.

Cícero, frequento seu blog como uma forma de manter contato com uma pessoa que sempre representou para mim elegância e generosidade, ou melhor dizendo, a elegância da generosidade. Aproveito seus textos paras as minhas aulas e, sobretudo, para o meu esclarecimento.

Gostaria de fazer coro ao repúdio contra a a ignorância desinibida e, particularmente, contra o que parece sempre acompanhar esse tipo de ignorância, ou seja, a grosseria.

Marcelo Diniz

Antonio Cicero disse...

Wilson,

No que diz respeito à igreja católica e Paulo, acho que você não leu ou não prestou atenção ao que escrevi. Do contrário, você não teria afirmado, como se fosse uma objeção ao que escrevi que “Não podemos dizer que o catolicismo tenha aceitado os postulados de Paulo. Haja vista a participação das ideias aristotélicas tomadas pala igreja na Idade média, mais notadamente no que concerne a T. AQUINO -- isso sem considerarmos outras vertentes, poderíamos ainda dizer que o próprio santo Agostinho faz um discurso tangenciando uma tal lógica em confronto com o pelegianismo”.

Como poderia ser isso uma objeção ao meu artigo, se nele digo, em relação a Paulo, que “Na verdade, com o triunfo e a consolidação do cristianismo, na Idade Média, as coisas mudaram. De maneira geral, a doutrina da Igreja Católica se tornou senso comum, em diferentes níveis de sofisticação, tanto para os que se beneficiavam de privilégios educacionais -nas universidades, por exemplo, onde parte da herança clássica foi assumida- quanto para os que deles eram excluídos”? E na discussão com o seu colega Marcone, que você cita, afirmo explicitamente que “A Igreja não seguiu inteiramente o caminho irracionalista de Paulo”. O que você diz confirma, não obsta, ao que digo. Ergo, você não prestou atenção ao que eu disse.

Quanto ao seu, digamos, fideísmo, acho que vem de uma confusão entre vários sentidos da palavra “fé”. Eu não chamaria de “fé” a complexa interação dos vários sentidos entre si e com a intuição, a experiência acumulada pessoal e coletiva, a razão etc. que nos assistem quando atravessamos a avenida Ipiranga.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Muito obrigado, Marcelo.

Grande abraço

Climacus disse...

o que é encantador na preocupação de A. Cícero em reponder é, justamente, a preocupação. acho que são duas maneiras de pensar o amor, aqueles que gostam de serem correspondidos e aqueles que gostam de esperar por uma resposta que não vem.

wilson luques costa disse...

Prezado Antonio Cicero,
Antes de tudo, grato pelo retorno. Infelizmente não conheço o Marcone, apenas foi uma forma de inseri-lo no contexto -- não obstante as ressalvas feitas por ele e a ele, por discordar de seu artigo. Sim, eu compreendi o seu texto. Todavia o tempo é exíguo tão quanto o espaço para adentrarmos os posicionamentos alocados aqui. O que quero focar é que as religiões fazem o uso da fé, pois este é o postulado de todas as religiões, se não me engano; indo do judaísmo, passando pelo catolicismo e varando tantas outras religiões. Na verdade, o fato de se acreditar em coisas tidas como absurdas credo quia absurdum não seria a meu ver o que mais irrita os ateus ou agnósticos laicos, mas sim as suas externalidades, se pudéssemos usar assim um conceito mais afeito à oiconomia. Eu mesmo já tive oportunidade de rabiscar coisas nesse sentido -- que essas audições ou aparições para um mortal qualquer seriam denominadas de paranoia, esquizofrenia etc. Veja: aquilo que se fala de Deus ou tantas outras assertivas, se não podem ser provadas, tampouco podem ser denegadas e a denegação portanto teria que vir a la popper de quem contesta as absurdidades havidas. Mas o que incomoda então que Paulo tenha dito isso e aquilo? Agora eu pergunto: onde há a verdade incontestável, digo no plano da lógica/razão - em Sócrates, Aristóteles, Platão, Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio, Nietzsche, Salomé, Nerval, Cioran, Noica, Tales, Heráclito, Parmênides, Anaxímenes, Anaximandro, Kant, Hume, Foucault, Fichte, Hegel, Wittgenstein, Russel... Já no que tange ao meu fideísmo, veja, há as intuições, evidente que há - todavia gignestai mais complexa toda intuição ou razão à medida que o sistema amplia-se. Por exemplo: há que se ter fé no motorista que brigou com sua esposa e she está disposto a atropelar o primeiro que lhe atravessar a Rebouças e mais fé ainda em não sermos esse pedestre azarão e esmoler de um atropelamento inaudito. Nesse sentido, toda nossa intuição e razão viriam por água abaixo, sobretudo se um insulfilm tolhesse o relance de um dos nossos sentidos para abstrairmos rapidamente em nossa tomada de decisão. Ou seja: não sei o que se passa na cabeça dese suposto motorista tresloucado enquanto mero pedestre. Nesse sentido, ainda, aponho o conceito de fideísmo no sentido de acreditarmos naquilo em que não dominamos num determinado sistema, no qual os elementos movem-se numa forma similar ao mundo quântico. Grato mais uma vez e o respeito por todos que aqui leem e aqui estão.

Amélia disse...

O que é curioso é como o seu artigo - de que, repito. gostei porque a meu ver claro (o pior cego é aquele que não quer ver)provocou tanta celeuma. Quem se terá sentido ofendido com ele ainda não aprendeu que«se sou diferente de ti, isso, longe de me diminuir, acrescenta-me»(creio ser de Saint-Exupéry) ou que«não penso comno tu, mas era capaz de dar a minha vida para teres o direito de poensar comn0 pensas»- que é, a meu ver, a melhor definição de tolerância e do estar atento ao outro que conheço. E é, somo sabemos, de Voltaire...
Continuo a aguardar a sequ~encia deste seu imoprtante artigo.Abraço

Anônimo disse...

"Perguntarão então qual é o papel da filosofia, se ela não tem de nos libertar da ignorância e nos elevar ao saber. É que só ela nos traz o entendimento da aparência como aparência. Porque vivemos na aparência, mas não sabemos, uma vez que, ao contrário, deixamo-nos levar continuamente a absolutizar aquilo que nos aparece, e, em vez de deixá-lo valer unicamente nos limites da aparência, nós o supomos valendo pelo "ser" mesmo, e pela essência das coisas, o que nos conduz a rejeitar, a "refutar", a abolir as outras versões, que, no entanto, são sentidas, vividas por outros. A filosofia da aparência deve conduzir a uma absoluta benevolência: se "sabemos" que tudo o que dizem sobre a Virgem, mãe de Jesus, não passa de um tecido de absurdos, só podemos lançar um olhar de piedade e de condescendência sobre a pobre velha que acende uma vela numa capela da Virgem, mas, então, não estamos fazendo mais do que adotar outro aspecto da ilusão de reificação de que é vítima a velha senhora -- como se a Virgem tivesse de ter um ser, um estatuto ontológico; se, ao contrário, estivermos atentos àquilo que se mostra à mulher devota em seu gesto de adoração, à Virgem como valor inspirador de atitudes e de vida, como centro de radiação que ilumina e inspira certa esfera de existência, então, longe de nos sentirmos levados à condescendência ou ao desdém, adquirimos um tipo de respeito indireto por essa "Virgem" poderosa e ativa (dentro dos limites de uma esfera de existência), mesmo não sendo nada. Os homens da ciência, os filósofos são levados a conceber uma hierarquia em cujo pico se colocam, e o currículo da educação e da instrução lhes parece dever conduzir, de grau em grau, até esse pico: ser "ignorante" ou ser "erudito" faz, para eles, enorme diferença... Mas, a sua existência é realmente mais rica do que a de uma velha ignorante, se eles perderam o poder de adorar (ou um outro poder: por exemplo, aquela forma de generosidade, aquela humildade etc.)? Mas, por outro lado, não são eles também vítimas da mesma ilusão de reificação? Porque pensam ter de ir para além da aparência, para o "ser-verdade" e para a "essência" das coisas -- enquanto estão vivendo como toda gente, na aparência, em que o que conta, no desenrolar cotidiano da vida, é uma multiplicidade de coisas singulares que o tempo arrasta consigo. Certamente eles teriam, contudo, razão se existisse esse "ser-verdade" -- ou "essência" -- das coisas (ou qualquer coisa daquilo que hipostasiam acima da vida em seu curso cotidiano), mas para a filosofia da aparência, ao ignorar que a aparência é o todo, não fazem mais do que substituir a aparência pela ilusão." [CONCHE, Marcel. Orientação filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 380-382]

Anônimo disse...

Caro ACicero,
Caros comentadores,

"Quando uma pessoa sabe ou conhece alguma coisa, não se diz que ela tem fé nessa coisa, mas que a sabe ou conhece. Só se tem fé naquilo que não se sabe nem se conhece. De modo geral, ter fé é crer ardentemente em algo, mesmo sem se ter razão para fazê-lo. Crer em algo, mesmo sem ter razão para tal, é crer irracionalmente em algo."

Fazendo abstração dos operadores ou das modulações que você precavidamente utiliza ["se diz"; "de modo geral"], gostaria de problematizar a distinção entre "fé e saber". Parece-me que não há uma diferença específica entre uma e outro, mas apenas uma diferença de grau. De grau de justificação. A maior parte do que chamamos de conhecimento, e até de saber, consiste de informações de segunda mão. A quase totalidade do conhecimento de que fazemos uso no dia a dia se baseia, na verdade, em argumentos de autoridade. Temos fé em alguma autoridade, na do técnico em geladeira, na do professor, dos pais, do padre, do âncora do telejornal etc. Mas o problema não acaba aí. Tais autoridades, por sua vez, apenas repetiram para nós o que aprenderam de outra autoridade... Vamos então diretamente para o fim, ou melhor, para o início da série, para a autoridade originária, por exemplo, a do cientista, o "sábio". O que diferencia o conhecimento do cientista do conhecimento do senso comum? Apenas a sofisticação, ou seja, o método e as justificações empíricas e racionais. Não há uma diferença substancial entre o conhecimento científico e o ordinário. Mas apenas de grau. O conhecimento científico, como qualquer outro, é uma crença. Apenas mais bem justificada que os demais conhecimentos. Muitos cientistas acreditaram ardentemente que a Terra era o centro do universo. Eles "sabiam" o geocentrismo. Se depois esse saber se revelou falso, a rigor, uma crença falsa, isso em nada altera a certeza dos geocentristas. A certeza é um sentimento, ou melhor, um assentimento da nossa vontade a uma proposição apresentada a nossa razão, representada por esta. Se estou certo, então, as crenças do senso comum e as religiosas, místicas, astrológicas etc. não são necessariamente irracionais. A ideia de Deus, assim como a de alma, por exemplo, não tem nada de irracional. E por que a astrologia seria mais irracional do que a física quântica? Porque não pode ser testada empiricamente? Mas o que a razão tem que ver com a empiria? A razão opera com base em pressupostos, em axiomas, que em última instância não podem ser demonstrados. Claro que não estou defendendo aqui nem o criacionismo nem a cientificidade da astrologia... Estou defendendo a tese segundo a qual a razão não se reduz à ciência. E que, portanto, ser religioso não significa necessariamente [agora sou eu que uso operadores modais...] ser irracional. Paulo aliás poderia alegar que a sua crença é tão racional quanto o tombo de um cavalo é real. -- Essas minhas observações problematizadoras valem mais para o Adorno do que para você, Cicero. O falibilista só sabe o que as coisas não são.

Blanco disse...

Adorno coloca irracionalidade como algo que está fora da esfera da comprovação lógica cartesiana e equivale a astrologia a uma crença irracional em oposição à racionalidade da ciência, embora ambas coloquem o homem acima do senso comum. Essa comparação possui algum critério de valoração, do tipo isso é melhor do que aquilo ou é apenas a constatação que, á exemplo do cristianismo primitivo, a astrologia, como crença irracional, teria varrido a filosofia, a ciência, a medicina, a história, a retórica, a literatura clássicas e por aí vai? A Ciência não é uma maneira de emprestar racionalidade a fenômenos da natureza humana, assim como é a religião, qualquer que seja? Ambas não são o resultado da mesma vontade de dar forma ao mundo, de fazê-lo compreensível? A religião talvez encontre sua força porque apele para uma compreensão que não pode ser contestada por força de estatísticas, mas que bebe em narrativas e se alimente de uma vontade de poder encontrada também na ciência e na filosofia. Tanto uma como a outra sempre disputaram espaço dentro da sociedade e ambas foram igualmente importantes para erigir a pedra de igrejas e universidades. Onde está a a verdadeira diferença? Me parece que antagonismos entre racionalidade e irracionalidade não são suficientes para justificar uma ou outra, religião e ciência, a não ser por um gosto meramente estético.

Felipe Vasconcelos disse...

Sempre gosto dos seus artigos, Antonio, mas esse tema me é caro. Vejo pouca gente combatendo essa onda (ou permanência) obscurantista.
Abraço!

Climacus disse...

ótimo artigo de Marcelo Coelho sobre a fé, hoje na FOLHA DE SÃO PAULO.

Catatau disse...

Bom texto!

Mas aí talvez seja importante mostrar a idéia de "senso comum" que regula esses critérios empregados, mais ou menos na linha do Kant: não o senso comum oposto ao bom senso, mas o senso comum enquanto espécie de espaço público no qual os enunciados são expostos ao entendimento alheio e compartilhados, senso comum correlato à universalidade da razão.

Esse uso do Adorno parece bem próximo da crítica do Kant ao Schwarmer.

wilson luques costa disse...

Adendo,

Eu gostaria de deixar claro que quando interfiro na questão, eu não tenho o escopo de debater o aspecto religioso ou laico ou posicionamentos de autoridade ou doxa - mas sim o escopo de aclarar o sentido estrito, universal e necessário de ratio. De fato, ´cego é aquele que não quer ver´ ou - melhor - ´que não possui ainda a capacidade para ver.´
grato!

Anônimo disse...

Cicero,

eu pertenço ao grupo de leitores teus pouco informados nesta matéria.

tenho só uma pergunta principal - e várias subperguntas que podes ignorar:

- Paulo excluía a criação artística como um dos frutos da razão?

E, nesse caso o que é que, no entender dele, sobrava da nossa "humanidade"?

Que diferença existiria, para Paulo, entre nós e uma mosca? E como afirmar (sem recorrer directamente à razão, ou, pelo menos, sem recorrer a uma das suas expressões mais sublimes, a criação artística) que não somos todos moscas? (Paulo pregava às moscas?)

sinto-me verdadeiramente no meio da maioria que anda por fora... -

abraço,
F.

Fernanda Marra disse...

Peço licença só para dizer que adorei esse último comentário anônimo, divertido o tom!

Antonio Cicero disse...

Filipa,

Não sou especialista em Paulo, de modo que não posso dizer com certeza; mas creio que ele não devia gostar muito de arte, não tanto por considerá-la fruto da razão quanto por considerá-la sensual. A diferença entre nós e as moscas, no entanto, era grande para ele, pois não só o ser humano é feito à imagem de Deus, segundo a Bíblia, mas Deus se fez humano, em Cristo, e não mosca.

Beijo

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Desculpe a demora a lhe responder. Como estou com muito trabalho, e você dizia estar discutindo mais com Adorno do que comigo, achei, inicialmente, que não precisava responder. Contudo, relendo hoje de manhã o que você diz, não resisto ao impulso de responder. Vou ter que fazê-lo em dois comentários consecutivos.

A verdade é que discordo de quase tudo que você diz aqui. É certo que grande parte do conhecimento de que fazemos uso no dia a dia se baseia em argumentos de autoridade. Mas, quando você diz que, no dia a dia, “temos fé em alguma autoridade, na do técnico em geladeira, na do professor [...]”, para justificar a fé religiosa, já extrapola para afirmações inadmissíveis. Aí você comete um erro – uma falácia de equivocação – comum: o sentido de “fé” não é o mesmo, quando falamos de ter fé na autoridade do técnico, do professor etc., e de termos fé em Deus ou na doutrina religiosa.

Ter fé na autoridade do técnico quer dizer: crer que o técnico é capaz de consertar geladeiras bem. Em que se baseia essa fé? Na experiência. Primeiro, a experiência me ensina que, em geral, os técnicos em geladeira consertam geladeiras melhor do que os leigos em geladeiras; do que, por exemplo, o zelador do prédio em que moro. O técnico que contrato me foi recomendado por um amigo, cuja geladeira ele conserta; ou trabalha numa loja conhecida; etc. Confio na competência nele; mas confio desconfiando. Se ele não conseguir consertar a geladeira, perderá imediatamente a minha confiança. É portanto a experiência, a prática, que vão ter a última palavra. Coisas análogas podem ser ditas sobre o meu professor de matemática, por exemplo. Se eu for reprovado no vestibular, tendo seriamente me empenhado nas aulas dele, desconfiarei da sua autoridade: não só eu, mas ele será reprovado pelo teste. E assim por diante. Em princípio, esse tipo de “fé” – que deveria antes ser chamada de “crença” ou “opinião” tem fundamentos que podem ser examinados, criticados, revistos.

A fé religiosa nada tem a ver com isso. Religioso nenhum aceitaria que pudesse haver alguma experiência que desmentisse a sua fé. Aliás, jamais as autoridades religiosas supuseram que a palavra “fé” tivesse o mesmo sentido, quando aplicada à autoridade do técnico que quando aplicada à existência de Deus. A fé em Deus nada tem a ver com razões. Trata-se de um dom sobrenatural. O próprio Tomás de Aquino que, por ser influenciado por Aristóteles, é relativamente racionalista, citando Hebreus 11:1, segundo o qual a fé é a “substantia rerum sperandarum, argumentum non apparentium”, isto é, “a substância das coisas esperadas e a prova das coisas não vistas”, afirma (Qu. disp. de veritate, qu.XIV, ar.II) que

“fides est habitus mentis, qua inchoatur vita aeterna in nobis, faciens intellectum non apparentibus assentire.”

Ou seja:

“a fé é um hábito da mente pelo qual a vida eterna começa em nós e que faz nosso intelecto consentir com coisas que não aparecem.”

Mas o que mais interessa é a sua explicação:

“per hoc enim quod dicitur non apparentium, distinguitur fides a scientia et intellectu.”

Ou seja:

“pelo fato de que é dita ‘das coisas que não aparecem’, a fé se distingue da ciência e do intelecto”.

E mais ainda:

“per hoc autem quod dicit substantia rerum sperandarum, distinguitur a fide communiter accepta, secundum quam dicimur credere id quod vehementer opinamur vel testimonio alicuius hominis.”

Ou seja:

“PELO FATO DE QUE É DITA A SUBSTÂNCIA DAS COISAS ESPERADAS, DISTINGUE-SE DA ACEPÇÃO COMUM DE “FÉ”, SEGUNDO A QUAL DIZEMOS CRER NAQUILO EM QUE VEEMENTEMENTE ACREDITAMOS OU NO TESTEMUNHO DE ALGUM HOMEM”.

Climacus disse...

e disse um filósofo tomista: “Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe” (Heidegger, “Que é metafísica?”, p. 257).

Antonio Cicero disse...

Continuando:

Tomás pensava, é claro, que também podia apresentar provas racionais para a existência de Deus; mas elas são outra coisa, que não fé. Além disso, elas, quando muito, provariam o “Dieu des philosophes”, como dizia Pascal; e este é, no fundo, o Deus dos deístas ou dos panteístas, que nada tem a ver com o “Dieu d’Abraham, Dieu d’Isaac, Dieu de Jacob, non des philosophes et savants”.

E que diz Agostinho sobre a fé? Na Epístola CXCIV, por exemplo, ele explica que

“ipsam fidem non humano, quod isti extollunt, tribuamus arbitrio nec ullis praecedentibus meritis, quoniam inde incipiunt bona, quaecumque sunt, merita, sed gratuitum dei donum esse fateamur, si gratiam ueram, id est sine meritis cogitemus, quia, sicut in eadem epistula legitur, deus unicuique partitur mensuram fidei.”

Ou seja,

“a própria fé não pode ser atribuída ao arbítrio humano, que essa gente exalta, nem a qualquer mérito precedente – pois é depois que começam todos os méritos, sejam quais forem. CONFESSEMOS SER ELA UM DOM GRATUITO DE DEUS, TOMANDO-O COMO VERDADEIRA GRAÇA, ISTO É, NÃO MERECIDO, POIS, COMO SE LÊ NA MESMA CARTA [ele se refere aqui à Carta aos Romanos, de Paulo de Tarso], DEUS A CADA UM REPARTE A MEDIDA DA FÉ.”

Creio que essas citações já demonstram que a fé religiosa nada tem a ver com a pressuposição – baseada na experiência social e pessoal – de que é racional acreditar na ciência. E para os próprios religiosos, ao contrário do que você diz, a fé religiosa nada tem de racional; ela é, ao contrário, profundamente irracionalista. Como diz Paulo (2 Coríntios 10:4):

“As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. DESTRUÍMOS ARGUMENTOS e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus e LEVAMOS CATIVO TODO PENSAMENTO, PARA TORNÁ-LO OBEDIENTE A CRISTO. E ESTAREMOS PRONTOS PARA PUNIR TODO ATO DE DESOBEDIÊNCIA, UMA VEZ ESTANDO COMPLETA A OBEIDÊNCIA DE VOCÊS.”

Quanto ao meu falibilismo, penso que é exatamente a partir do falibilismo difuso, porém eficaz, da modernidade que foi estabelecida a produção do conhecimento científico moderno como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. Isso é o oposto da fé. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.

POR OUTRO LADO, O FALIBILISMO REVELA O CARÁTER FICTÍCIO DE TODO PRETENSO CONHECIMENTO QUE SE SUBTRAIA À RAZÃO CRÍTICA OU À INSPEÇÃO PÚBLICA, QUE SE BASEIE EM PREMISSAS TRANSCENDENTES, OU CUJAS DOUTRINAS SEJAM IMPERMEÁVEIS A REVISÕES OU REFUTAÇÕES.

Abraço

Anônimo disse...

Caro Antonio,

AC: É certo que grande parte do conhecimento de que fazemos uso no dia a dia se baseia em argumentos de autoridade. Mas, quando você diz que, no dia a dia, “temos fé em alguma autoridade, na do técnico em geladeira, na do professor [...]”, para justificar a fé religiosa, já extrapola para afirmações inadmissíveis. Aí você comete um erro – uma falácia de equivocação – comum: o sentido de “fé” não é o mesmo, quando falamos de ter fé na autoridade do técnico, do professor etc., e de termos fé em Deus ou na doutrina religiosa.

EG: Sim, o sentido não é exatamente o mesmo, mas, como todo conhecimento é uma crença mais ou menos justificada, a diferença de sentido é apenas de grau. A fé no técnico de geladeira se baseia na experiência, tanto quanto a fé de Paulo no Cristo se baseia na experiência.

AC: Em princípio, esse tipo de “fé” – que deveria antes ser chamada de “crença” ou “opinião” tem fundamentos que podem ser examinados, criticados, revistos. A fé religiosa nada tem a ver com isso. Religioso nenhum aceitaria que pudesse haver alguma experiência que desmentisse a sua fé.

EG: A doutrina católica – já que você se concentrou nela — não nasceu pronta. Ela se desenvolveu ao longo dos séculos. Com exceção dos cerca de 40 dogmas existentes, tudo o mais pode ser revisto. E até mesmo os dogmas podem ser reinterpretados. O religioso experimenta a fé na sua vida diária; a religião tem uma dimensão prática fundamental. A fé religiosa ajuda o crente a resolver e superar problemas e desafios que, sem ela, pareciam insolúveis e insuperáveis. Os protestantes, sobretudo, reservam parte dos serviços religiosos para os testemunhos acerca da eficácia da fé na vida cotidiana.

AC: Aliás, jamais as autoridades religiosas supuseram que a palavra “fé” tivesse o mesmo sentido, quando aplicada à autoridade do técnico que quando aplicada à existência de Deus. A fé em Deus nada tem a ver com razões. Trata-se de um dom sobrenatural.

EG: Sim, um dom, como a própria vida e tudo o mais. E, novamente, sim: a ideia de Deus não é irracional, pois não implica contradição. Kant, o Aristóteles moderno, achava que não só temos muito boas razões para crer em Deus, como precisamos crer nEle. É que ele não reduzia a razão à razão teórica, científica.

AC: O próprio Tomás de Aquino [...] afirma [... que] “a fé é um hábito da mente pelo qual a vida eterna começa em nós e que faz nosso intelecto consentir com coisas que não aparecem.”

EG: E o que ele entende por hábito da mente? Não se trata do conhecimento suprarracional dos primeiros princípios? Para os escolásticos, o conhecimento habitual não é irracional, no sentido de infrarracional.

AC: Mas o que mais interessa é a sua explicação: ... “pelo fato de que é dita ‘das coisas que não aparecem’, a fé se distingue da ciência e do intelecto”.

EG: Em nenhum momento defendi que a fé é científica ou que poderia ser explicada. Eu disse que alguns artigos de fé não são necessariamente irracionais. De resto, é preciso saber o que o aquinatense está subentendendo aí por intelecto.

AC: E mais ainda: ... “PELO FATO DE QUE É DITA A SUBSTÂNCIA DAS COISAS ESPERADAS, DISTINGUE-SE DA ACEPÇÃO COMUM DE “FÉ”, SEGUNDO A QUAL DIZEMOS CRER NAQUILO EM QUE VEEMENTEMENTE ACREDITAMOS OU NO TESTEMUNHO DE ALGUM HOMEM”.

EG: Sim, claro que há uma diferença, mas, na prática, ela não é tão grande quanto parece, como tentei dizer mais acima. O homem religioso tem a experiência subjetiva da verdade da sua fé, que, embora subjetiva, é compartilhada por toda uma comunidade.

Abraço do seu admirador,
edgil

Anônimo disse...

"Mas, tratando-se da natureza em seu conjunto, o irracional maravilhoso sempre estará presente, pois o infinito excede a razão. No seio da enormidade do tempo e do espaço, num ponto da natureza infinita, ou talvez infinitamente infinita, como quer Espinosa, o homem tem o sentimento do Englobante e do sem limites como de um mistério insondável, diante do qual a razão se detém.

"Decerto a filosofia é obra da razão, do “bom senso”, como diz
Descartes. Mas ao contrário da razão científica que passa ao lado do maravilhoso e do mistério sem o ver, a razão filosófica reconhece,
identifica o irracional, o maravilhoso, o mistério. Seu fracasso, sua impotência em apreender os arcanos das coisas lhe revelam mistérios impossíveis de desvendar: o mistério da natureza insondável e infinita, o mistério da morte e do sentido, ou do não-sentido, do homem. Não há, aqui, "problemas" que o filósofo poderia resolver. A filosofia não resolve nenhum problema. Não existe, a bem da verdade, problema filosófico. O papel da filosofia é, para além do racional nos fazer tomar consciência do demônico que age na natureza, do mistério que envolve todas as coisas, e revelar o homem a si mesmo como enigma: enigma do qual resulta a liberdade radical da escolha filosófica. Pois a filosofia repousa não numa "revelação" qualquer, ou em alguma
necessidade demonstrativa, mas na liberdade.

"Abstração feita da experiência religiosa que, dizem, revela-lhe o
sagrado e o coloca em relação com o Tu absoluto, o homem está sozinho.
Não há ninguém para escutar suas questões e sua queixa. A "luz
natural" serve principalmente para acentuar, de todos os lados, as
sombras. Resta-lhe, tendo abandonado o sagrado no caminho, assumir sua solidão. Filosofar é isso." [Marcel Conche]

Antonio Cicero disse...

Édson,

Também admiro você, mas sei que há assuntos sobre os quais parecemos falar línguas diferentes, incomensuráveis. Essa questão religiosa é uma.

A diferença entre a minha “fé” no técnico e a fé de Paulo no Cristo é infinita. Aliás, enquanto a minha “fé” no técnico é finita e desconfiada, para dizer o mínimo, a fé de Paulo no Cristo é infinita. A minha sim, se baseia na experiência, alheia e própria, e pode ser testada e abalada; a de Paulo se baseia segundo ele mesmo, num milagre, e nada do que acontecer no mundo a abalará.

Vou dar um exemplo. Se o técnico de televisão, no lugar de conseguir consertar a minha, queimá-la, deixarei de ter “fé” nele.

Algo equivalente seria concebível em relação à fé em Deus? À onipotência, onisciência e bondade infinita de Deus? Não creio.

Se pudesse, então ela seria abalada, por exemplo, pelo terremoto que acaba de ocorrer no Haiti, que causou e está a causar imenso sofrimento a milhares de inocentes. Digamos que alguém mencione o sofrimento da pobre menina de quatro anos que acaba de perder os pais, os irmãos e a perna, e pergunte que Deus onipotente, onisciente e boníssimo é esse, que é capaz de permitir esse tipo de coisa?

Você acha que isso abalaria a fé de quem quer que fosse? É claro que não. Por que? Porque essa fé não se baseia em experiência nenhuma, mas numa necessidade psicológica – de comunidade, de vingança contra o mundo real etc. – do crente.

Quanto a mim, penso como Stendhal: num caso desses, la seule excuse de Dieu, c’est qu’il n’existe pas.
Por essa e outras razões, não creio que esta discussão possa ir adiante.

Abraço

Anônimo disse...

Caro ACicero,

É claro que a sua discussão com Paulo não pode ir adiante... Infelizmente eu não sou Paulo. Você está refutando teses que não são as minhas. O Deus pessoal de Paulo e de muitos religiosos não é o Divino de todos os religiosos. O que você teria a dizer, nesse sentido, contra o budismo, por exemplo?

E o meu ponto nem era a religião, muito menos uma religião monoteísta institucionalizada. O meu ponto era a diferença entre fé e saber.

E eu continuo achando a diferença entre uma e outro bastante finita. O milagre, bem entendido, não tem nada de irracional.

Você precisa explicar melhor o que entende por razão e racional. Às vezes me parece que, de tanto combater as ideologias em nome da razão, você acaba caindo na ideologia do racionalismo cientificista.

Kant concebia uma religião nos limites da mera razão. Cassirer como forma simbólica. Os perenialistas como perspectiva imanente e particular do transcendente universal. Etc.

Nada disso tem muito que ver com a sua concepção de religião, como fenômeno social e cultural essencialmente retrógrado e totalitário.

Você tem razão quanto ao mal radical, absoluto: o sofrimento de inocentes. E do inocente por definição, a criança. É o único argumento contra a existência do Deus do monoteísmo paulino. Mas nem esse argumento é irrefutável, nem esse Deus é o único.

Abraço do seu
edgil

fred girauta disse...

cícero,
tanto pano pra manga... e encalhamos em aporias?

ser ateu, fazer parte dessa minoria que, segundo Décio Pignatari, é a minoria mais discriminada do mundo, requer um certo jogo de cintura.
mesmo os mais precisos e certeiros argumentos são insuficientes para transformar um crente.
De minha parte, desenvolvi um discurso pronto, que tiro da manga para encerrar a discussão.
Digo simplesmente que esse deus que joga escombros sobre pessoas inocentes, que assiste a guerras, que é indiferente à fome, à dor, ao preconceito etc., digo que esse deus não me interessa, e estamos conversados.

abraço!

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

reproduzo e respondo às suas observações (em itálico):

É claro que a sua discussão com Paulo não pode ir adiante... Infelizmente eu não sou Paulo. Você está refutando teses que não são as minhas. O Deus pessoal de Paulo e de muitos religiosos não é o Divino de todos os religiosos. O que você teria a dizer, nesse sentido, contra o budismo, por exemplo?

Édson, no artigo que iniciou esta discussão eu falava das ideologias religiosas, não da existência de Deus. Durante a discussão, eu mesmo usei a distinção pascaliana entre os Dieu des philosophes e o Dieu d’Abraham. Mas não foi nem propriamente deste último que o artigo tratava, e sim da oposição entre a fé e a sabedoria deste mundo, inclusive a razão. Com isso em mente, para mim não é nem correto chamar de “fé” a confiança que temos no técnico. Para você, a diferença entre tal confiança e a fé religiosa é uma diferença apenas de grau. Creio já ter mostrado que não é assim para Paulo, Agostinho ou Lutero; e que não é assim nem mesmo para Tomás de Aquino. Ora, são eles alguns dos genitores das principais ideologias religiosas do Ocidente. Para eles, a fé é algo completamente diferente da sabedoria mundana e oposto a esta. É um erro pensar que a fé tenha a ver com a experiência ou o saber. Aquele que Deus escolhe – por “razões” que nos são em princípio incognoscíveis e que nada têm a ver com boas ações, por exemplo (isto é, do nosso ponto de vista, sem razão nenhuma que possamos identificar; isto é, do nosso ponto de vista, irracionalmente) – determinadas pessoas para serem salvas e lhes concede a graça da fé. Em outras palavras, NÃO É POR ABSOLUTAMENTE NENHUMA CONSIDERAÇÃO RACIONAL – POR MAIS REMOTA QUE SEJA -- QUE TEMOS FÉ, MAS POR UMA GRAÇA DE DEUS; QUEM NÃO RECEBE ESSA GRAÇA NÃO TEM FÉ. Ou seja, como diz Agostinho: Não é porque entendamos alguma coisa que temos fé; não é o entendimento que nos faz ter fé; ao contrário, o entendimento é a recompensa da fé. E a fé? “A fé é uma graça verdadeira, que recebemos sem termos qualquer mérito”.

[a segunda questão foi respondida acima]

E eu continuo achando a diferença entre uma e outro bastante finita. O milagre, bem entendido, não tem nada de irracional.

O "milagre" que Paulo experimentou foi a "graça" que o converteu.

Você precisa explicar melhor o que entende por razão e racional. Às vezes me parece que, de tanto combater as ideologias em nome da razão, você acaba caindo na ideologia do racionalismo cientificista.

Explicar o que é racionalidade é tarefa grande demais para um comentário de blog. Mas, simplificando extremamente as coisas, direi que a razão é a crítica; e o racional é o que é capaz de se submeter à crítica e permanecer de pé; e o irracional é o que, pelas mais diversas manobras, subtrai-se a toda crítica.

Kant concebia uma religião nos limites da mera razão. Cassirer como forma simbólica. Os perenialistas como perspectiva imanente e particular do transcendente universal. Etc.
Nada disso tem muito que ver com a sua concepção de religião, como fenômeno social e cultural essencialmente retrógrado e totalitário.


A discussão sobre o que vem a ser a religião nos limites da razão foge inteiramente do tema em discussão.

Você tem razão quanto ao mal radical, absoluto: o sofrimento de inocentes. E do inocente por definição, a criança. É o único argumento contra a existência do Deus do monoteísmo paulino. Mas nem esse argumento é irrefutável, nem esse Deus é o único.

Como eu já disse, não pretendo tratar da existência de Deus. Falei do argumento de Stendhal en passant. Entretanto, ele é, de fato, irrefutável, no que diz respeito ao Deus pessoal de Abraão. Não só não creio na existência de um Deus pessoal onipotente e onisciente, mas acho melhor que não exista, pois, se Ele existisse, sendo as coisas como são, Ele não estaria à altura dos meus padrões éticos.
Quanto ao Deus dos filósofos, está além do escopo desta discussão.

Anônimo disse...

Caro ACicero,
Se as coisas fossem como você diz, como se explica que muitos crentes perdem a fé? E como se explicam as cruzadas, a catequese etc.? Afinal, para que tentar converter o "infiel" se a fé é exclusivamente uma questão de graça?
Você cita várias autoridades para sustentar o seu ponto de vista. Mas todas elas estão lá no passado de apenas uma religião organizada. E quanto às demais tradições espirituais do mundo, como o budismo ou o vedanta advaita?
Mas, tudo bem, vou citar eu mesmo outra autoridade importante do catolicismo --do presente. No trecho abaixo, o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, compara a posição do crente com a do incrédulo, mostrando que a dúvida é o elemento comum a AMBOS, ou seja, que a diferença entre as crenças de um e de outro não é tão abissal, "infinita", como você acha que é:

“... o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé. Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente certo – jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo. Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé.
... Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.” [RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970. p. 12-15]

Abraço,
edgil

Anônimo disse...

Caro Fred,

Acho que você e o Pignatari estão enganados quanto ao ateísmo. Pelo menos no ocidente, a maioria das pessoas é sem dúvida atéia. Crer em Deus não se resume a declarar essa crença e frequentar cerimônias religiosas. A maioria dos ocidentais pode até declarar acreditar em Deus, mas vive como se não acreditasse.

E você não acha que não está exagerando, não, quando diz que Deus "joga escombros sobre pessoas inocentes"?

Desse jeito você não vai entender mesmo a posição dos crentes. Você precisa levar em consideração que o crente não pensa apenas em termos desta vida, que para ele é de certa forma insignificante diante da eternidade. O sofrimento dos inocentes, que para o ateu parece uma coisa absurda, para dizer o mínimo, para o crente pode significar até mesmo uma graça, em vista da recompensa que lhe espera na outra vida, junto de Deus.

Você pode achar isso tudo uma loucura --e é mesmo, até para o próprio Paulo--, mas penso que se devem levar em conta essas coisas antes de descer um juízo moral sobre o crente e seu Deus. Afinal, um louco como o crente --num julgamento justo-- não pode ser responsabilizado do mesmo modo como um lúcido ateu, não é mesmo?

Abraço,
edgil

paulinho (paulo sabino) disse...

caramba! deus é um troço doido mesmo... 46 comentários(!)...

indiscutivelmente (rs), o artigo é MARAVILHOSO!!

mais uma vez, as suas clareza e lucidez deram-nos prova do grande intelectual que você é.

estou de acordo com TUDO, sem tirar nem pôr.

gostei tanto tanto tanto, que desejo ler o próximo o mais breve possível!

você é um ARRASO!

beijú!

wilson luques costa disse...

Prezados colegas,

Fílax philosophiae

Caímos numa retórica, onde o que menos se presentifica é a razão; o que se vê é menos um discurso analógos e sim um discurso anakrático. Se x tivesse -- ao menos -- a razão, a pinimba não se estenderia ad infinitum -- criando uma discussão -- parece-me - inodora, inútil e insalubre -- sobretudo philosophiae. Agora eu pergunto: onde está o problema? Filosofia é problematizar. pe: é dizer que o princípio da indentidade não é universal e necessário e lhe colocar uma ressalva a tempo; é dizer que uma verdade universal e necessária é afirmar que nenhum homem poderá comprovar a Premissa tida como irrefutável: TODO HOMEM É MORTAL - aliás a única verdade em contrapelo seria dizer que nenhum homem poderá comprovar tal assertiva; ou é criticar o cogito cartesiano reduzindo-o a um plano lógico, demonstrativo e irrefutável. O resto é conversa de botequim! E haja cerveja et patientia!!!
GRATO

wilson luques costa disse...

Palvras de Schopenhauer,

Sobre a erudição e os eruditos

´...A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo o passado. É com esse objetivo que tal geração freqüenta a universidade e se aferra aos livros, sempre aos mais recentes, os de sua época e próprios para sua idade...`



´Para a imensa maioria dos eruditos, sua ciência é um meio e não um fim. Desse modo, nunca chegarão a realizar nada de grandioso, porque para tanto seria preciso que tivessem o saber como meta, e que todo o resto, mesmo sua própria existência, fosse apenas um meio. Pois tudo o que se realiza em função de outra coisa é feito apenas de maneira parcial, e a verdadeira excelência só pode ser alcançada, em obras de todos os gêneros, quando elas foram produzidas em função de si mesmas e não como meios para fins ulteriores. Da mesma maneira, só chegará a elaborar novas e grandes concepções fundamentais aquele que tenha suas próprias idéias com o objetivo direto de seus estudos, sem se importar com as idéias dos outros. Entretanto os eruditos, em sua maioria, estudam exclusivamente com o objetivo de um dia poderem ensinar e escrever. Assim, sua cabeça é semelhante a um estômago e a um intestino dos quais a comida sai sem ser digerida. Justamente por isso, seu ensino e seus escritos têm pouca utilidade. Não é possível alimentar os outros com restos não digeridos, mas só com o leite que se formou a partir do próprio sangue.´



´Assim os que exercem uma ciência ou uma arte por amor a ela, por alegria, per il loro diletto, são chamados com desprezo por aqueles que se consagram a tais coisas com vistas ao que que ganham, porque seu objeto dileto é o dinheiro que têm a receber. Esse desdém se baseia na sua convicção desprezível de que ninguém se dedicaria seriamente a um assunto se não fosse impelido pela necessidade, pela fome ou por uma aridez semelhante. O público possui o mesmo espírito e, por conseguinte, a mesma opinião: daí provém seu respeito habitual pelas ´pessoas da área´ e sua desconfiança em relação aos diletantes. Na verdade, para o diletante, ao contrário, o assunto é o fim, e para o homem da área como tal, apenas um meio. No entanto, só se dedicará a um assunto com toda a seriedade alguém que esteja envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor, con amore. É sempre de tais pessoas, e não dos assalariados, que vêm as grandes descobertas.´

Antonio Cicero disse...

Edson,

Acho que Paulo está certo, nesse ponto. Quem usa a razão, TENDE a perder a fé. Como a razão não é totalmente alienável, o que o papa diz na sua citação não está totalmente errado. Mesmo aquele que foi agraciado com a fé tem dúvidas, quando usa a razão. O problema é que a maior parte não a usa por vários motivos, entre os quais: (1) precisa da fé por motivos psicológicos (e, às vezes, materiais) conscientes e inconscientes; (2) tem medo de que a razão seja realmente coisa do demônio; (3) acha que a própria dúvida já significa estar perdido; (4) faz força para acreditar nas autoridades tradicionais.

Já a evangelização, o missionarismo, o proselitismo, o apostolado são promovidos precisamente por aqueles que acreditam que a fé seja uma questão de graça. É que aquele que recebe um dom tem que estar disposto a aceitá-lo. O evangelismo o prepara para isso. E um dos maiores sinais de ter sido agraciado por Deus e de ter aceito essa graça, logo, de ter sido salvo por Deus, é exatamente o apostolado.

Quanto à atitude dos crentes que você cita no seu segundo e-mail, para os quais “o sofrimento dos inocentes, que para o ateu parece uma coisa absurda, para dizer o mínimo, para o crente pode significar até mesmo uma graça, em vista a recompensa que lhe espera na outra vida, junto de Deus”, considero-a absolutamente imoral. Deve ser combatida com máxima energia, pois é a partir de tal raciocínio que sempre se justificou o pior. Que importa supliciar nesta vida um herege, afogá-lo, esfolá-lo, queimá-lo lentamente na fogueira, se isso é feito para livrar, se não a ele próprio, a outros do pecado que os levaria ao inferno, e não ao céu eterno? Não é ainda tal raciocínio que impele os homens-bomba a explodir inocentes? Que são o sofrimento e a morte desses inocentes e dele mesmo, perto da recompensa que o espera na outra vida, junto de Deus?

Abraço

Anônimo disse...

Antônio Cícero,
Nunca entendi que Paulo (e estou me intrometendo nos comentários e nas respostas desferidas pelo Marcone e por você, peço desculpas até) estivesse renegando toda a cultura quando enalteceu os ignorantes. É sempre bom lembrar que ele não elogia a ignorância, e sim os ignorantes que, por serem tais, estão abertos às idéias novas. Além do mais, o próprio Paulo possuía alta instrução, segundo conceitos de sua época e de seu povo.
Contextualizando com outras cartas e passagens bíblicas que abordam o mesmo assunto, sempre pensei nesta fala de Paulo, a respeito de “toda” a sabedoria do mundo ser vã, como uma hipérbole que está onde está para persuadir os ouvintes/leitores. Mas acho que, da mesma forma como acontece com Nietzsche, a Bíblia costuma ser largamente citada por pessoas que nunca a leram. Não que seja este o caso.
Quanto à tradição, sim. Era até muito óbvio que os cristãos renegassem à tradição judaica, uma vez que ela se mantinha pela lei mosaica e mais um monte de práticas criadas para protegê-la. E era justamente para destruí-la que o Cristo dizia ter vindo a terra.
No mais, encaro sua generalização, sua negação pura e simplesmente, da mesma forma como encaro Paulo renegando a instrução mundana – hipérboles não me incomodam. E não escrevo um comentário comprido assim há anos, o que pode querer dizer que até gosto de ser provocada na minha fé.
Espero o outro artigo, como já disse.
Renata.

Antonio Cicero disse...

Renata,

ficaremos todos gratos se você nos indicar os trechos em que Paulo manifesta apreço pela cultura clássica.

Anônimo disse...

Gostaria de fazer apenas uma consideração referente ao último comentário do Edson Gil e a resposta do autor deste blog. Bem, é verdade que no ocidente quase todo mundo é "ateu prático" ou "crente light", e é isto que torna tão difícil a relação de nós modernos com o oriente. Não gostamos de "tradição" nem de restrições. Não queremos abrir mão de nossos vícios, paixões e de tudo que nos torna humanos (ainda bem). As religiões dizem que estamos aqui p/ renegar a isso, p/ q assim possamos desfrutar de um paraíso no pós-morte. Quanto mais racionais nos tornamos, mais tais crenças nos soam ridículas. Porém, somos humanos, isto é, medrosos. Queremos resposta às nossas preces nos momentos de dificuldade, tememos a morte e, não raro, invocamos a ideia de deus p/ justificar nossos preconceitos (como no caso recente do cônsul brasileiro no Haiti, que despreza as religiões africanas). Agora, se os "crentes light" podem se apoiar na religião p/ justificar ideias torpes, imaginem do que os fundamentalistas seriam capazes...Portanto, concordo com Cícero: devemos combater qualquer crença ou atitude que estimule o ódio, a segregação e/ou limite a liberdade individual. Não deixemos que as supostas "verdades universais" da religião sejam postas acima da crítica.

Zan

Anônimo disse...

Caro ACicero,
Por enquanto vou responder a apenas um ponto do seu último comentário. O que você diz lá no final, sobre a imoralidade de quem aceita a desgraça por motivos religiosos e sobre esse tipo de crença estar por trás de atos de intolerância e até, no limite, de terrorismo -- isso que você diz é um total absurdo.
Você só pode chegar a essa conclusão porque leva em consideração apenas uma parte ou um aspecto da doutrina e da prática religiosas, no caso cristã ou islâmica. Todos os atos de intolerância são praticados CONTRA a ortodoxia religiosa. Nenhuma religião prega a violência. [Sugiro a todos a leitura do livro Homens de um livro só, de Mateus Soares de Souza.]
É particularmente absurda a sua tese segundo a qual se pode praticar a violência contra alguém para corrigi-lo nesta ou noutra vida.
Se esse tipo de coisa aconteceu e acontece, isso só demonstra que os humanos somos seres muito precários. Os religiosos não são melhores do que os ateus. E a violência está longe de ser apanágio da religião.
Que a religião possa ter levado gente ignorante e má a entender as coisas dessa forma bisonha é compreensível, uma vez que é inevitável, mas disso não se segue que se trate de uma consequência necessária ou natural da religião.
Por fim, a crença na sobrevivência da alma não tem nada de irracional. Kant aliás a considerava uma necessidade da razão prática. Os ateus podem achá-la absurda, mas não podem saber se é mesmo falsa. Apenas desejam que seja falsa. E por razões semelhantes às que você menciona no seu último comentário.
O filósofo racionalista tem todo o direito de suspender o juízo a respeito, ou de dispensar essa hipótese, mas, para ser honesto, tem de admitir que "talvez" seja verdade.
Mas se for, meu caro, então aquela crença sobre a qual falo acima pode ser interpretada de um modo muito mais caridoso do que você o faz.
Grande abraço do edgil

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Confesso ter ficado estarrecido com a sua idealização da religião.

Como pode dizer que “Todos os atos de intolerância são praticados CONTRA a ortodoxia religiosa" e que "nenhuma religião prega a violência”?

O que é, para você, uma religião “pregar a violência”?

Só posso imaginar as seguintes possibilidades:

1) Que a violência se encontre nos textos sagrados da religião, praticada ou ordenada aos fiéis pelo próprio Deus;

2) Que os líderes supremos da religião ordenem a violência por motivos religiosos.

Tanto uma coisa quanto a outra ocorrem no cristianismo, por exemplo. Pense nas punições que Deus ordena para alguns pecados, em Levítico 20:

1 Disse mais o Senhor a Moisés:
2 Também dirás aos filhos de Israel: Qualquer dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros peregrinos em Israel, que der de seus filhos a Moloque, certamente será morto; o povo da terra o apedrejará.
[...]
7 Portanto santificai-vos, e sede santos, pois eu sou o Senhor vosso Deus.
8 Guardai os meus estatutos, e cumpri-os. Eu sou o Senhor, que vos santifico.
9 Qualquer que AMALDIÇOAR A SEU PAI OU A SUA MÃE, certamente será morto; amaldiçoou a seu pai ou a sua mãe; o seu sangue será sobre ele.
10 O HOMEM QUE ADULTERAR COM A MULHER DE OUTRO, SIM, AQUELE QUE ADULTERAR COM A MULHER DO SEU PRÓXIMO, CERTAMENTE SERÁ MORTO, TANTO O ADÚLTERO, COMO A ADÚLTERA.
11 O HOMEM QUE SE DEITAR COM A MULHER DE SEU PAI TERÁ DESCOBERTO A NUDEZ DE SEU PAI; AMBOS OS ADÚLTEROS CERTAMENTE SERÃO MORTOS; O SEU SANGUE SERÁ SOBRE ELES.
12 SE UM HOMEM SE DEITAR COM A SUA NORA, AMBOS CERTAMENTE SERÃO MORTOS; COMETERAM UMA CONFUSÃO; O SEU SANGUE SERÁ SOBRE ELES.
13 SE UM HOMEM SE DEITAR COM OUTRO HOMEM, COMO SE FOSSE COM MULHER, AMBOS TERÃO PRATICADO ABOMINAÇÃO; CERTAMENTE SERÃO MORTOS; O SEU SANGUE SERÁ SOBRE ELES.
14 SE UM HOMEM TOMAR UMA MULHER E A MÃE DELA, É MALDADE; SERÃO QUEIMADOS NO FOGO, TANTO ELE QUANTO ELAS, PARA QUE NÃO HAJA MALDADE NO MEIO DE VÓS.
15 SE UM HOMEM SE AJUNTAR COM UM ANIMAL, CERTAMENTE SERÁ MORTO; TAMBÉM MATAREIS O ANIMAL.
16 SE UMA MULHER SE CHEGAR A ALGUM ANIMAL, PARA AJUNTAR-SE COM ELE, MATARÁS A MULHER E BEM ASSIM O ANIMAL; CERTAMENTE SERÃO MORTOS; O SEU SANGUE SERÁ SOBRE ELES:

E a violência praticamente genocida que Deus às vezes ordena, como em Josué 8, em que, a mando de Deus, os soldados de Josué mataram todos os habitantes de Ai, sem deixar sobrevivente algum? Leia em 8:25: “Doze mil homens e mulheres caíram mortos naquele dia. Era toda a população de Ai. Pois José não recuou a lança até exterminar todos os habitantes de Ai.”

Quanto à violência ordenada pelos líderes das religiões – como os papas – nem se fala. Tenho aqui os nove volumes que já saíram do livro Karlheiz Dreschner, Kriminalgeschichte des Chiristentums, sobre as monstruosidades, fartamente documentadas, do cristianismo, mas acho desnecessário e de mal gosto citar qualquer uma delas.

Mas tudo se explica. Você mesmo não dizia que, para o crente, o sofrimento dos inocentes “pode significar até mesmo uma graça, em vista da recompensa que lhe espera na outra vida, junto de Deus”?

Não admira que tão frequentemente na história do cristianismo (ou do islamismo) essa maneira de pensar tenha tornado possível a tanta gente o horror que só a religião proporciona, que é, nas palavras de Bertrand Russell, o de INFLIGIR SOFRIMENTO COM BOA CONSCIÊNCIA.

Abraço

Anônimo disse...

Caríssimo ACicero,
Estarrecido fico eu quando leio tais coisas escritas por um intelectual brilhante como você...
O religioso, em geral, aceita a desgraça --a doença, a morte, a catástrofe etc.--, porque tudo, para ele, vem de Deus. Aceita-a, pois, se vem de Deus, não é, na realidade, desgraça, mas Graça.
Para o crente, portanto, o sofrimento "infligido" por Deus é aceitável. Mas disso não se segue que o próprio crente, seja ele uma velhinha devota da Virgem seja o próprio papa, tenha o direito de infligir sofrimento a quem quer que seja.
Com esse tipo de "raciocínio" está pavimentado o caminho para o inferno... E por isso Dante pôs lá não só príncipes mas também papas.
Eu não idealizo a religião, assim como não idealizo o Estado, a República, a democracia, a ciência, a Verdade etc., em nome dos quais se inflige sofrimento a crentes e ateus todo santo dia.
Russell escreveu uma história da filosofia em que não há lugar para Tomás de Aquino. Para ser honesto, ele devia limitar-se a discorrer apenas sobre os filósofos antirreligiosos. Assim ficariam de fora virtualmente TODOS os clássicos. De Platão a seu aluno e colega Wiittgenstein.
A religião é um fenômeno muito mais complexo do que a sua leitura fundamentalista [baseada no Velho Testamento, e que deixa de lado outras grandes tradições espirituais da humanidade] pode fazer crer.
Na minha santa ingenuidade ou estupidez, encontro apoio na obra de estudiosos sérios, que devotaram a vida à compreensão da religião, tais como Eliade, Girard, Guénon, Huston Smith, o próprio Weber et al.
Mas é claro que você sabe disso, assim como certamente deve apreciar os frutos culturais do cristianismo e de outras religiões, como uma catedral gótica ou uma peça de Bach, p.ex.
Decerto vivemos depois da religião, como diz Ferry e outros "novos filósofos". Mas a morte da religião não implica que devamos renegar sua herança. Sem o cristianismo não seríamos nada. Não haveria nem direitos humanos nem a própria Europa. Para dizer o mínimo...
Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Caro Edson Gil,

É exatamente por dizer coisas como essas que afirmo que você idealiza as religiões. O homem-bomba muçulmano acha que é ele que está interpretando corretamente os textos sagrados, assim como Josué estava obedecendo a Deus, quando exterminou os Ai. Os papas não tinham dúvida de que estavam sendo fidelíssimos ao catolicismo, quando convocaram cruzadas. Os inquisidores eram homens de Deus. Mas você acha que o que vale é a sua concepção de religião, não a deles. Eliade, Girard e Huston Smith são exatamente modelos de idealistas religiosos, a buscar arquétipos religiosos.
Não aceito a tese de que “Sem o cristianismo não seríamos nada. Não haveria nem direitos humanos nem a própria Europa”. Penso o oposto. Os direitos humanos foram uma conquista do Iluminismo CONTRA o cristianismo. A cultura clássica foi muito mais brilhante do que a medieval. Foi lá que a Renascença buscou inspiração e modelos. A grande arte barroca não poderia ter sido feita sem a passagem pela Renascença. Mas sobre isso também sei que jamais concordaremos, e esta discussão já está longa demais.

Anônimo disse...

Caro ACicero,
O que pretendia discutir inicialmente é a relação entre a crença religiosa e a crença científica. Uma vez que não temos certeza de coisa alguma, a não ser de nós mesmos como seres pensantes --o que me permite fazer essa afirmação aparentemente autocontraditória--, as crenças científicas não são essencialmente diferentes das crenças religiosas.

De resto, você interpreta os fatos da história da religião cristã --e da islâmica, deixando de fora todas as demais tradições espirituais da humanidade-- fora do seu contexto. A própria ICAR tem reconhecido muitos erros cometidos no passado. Mas então, quando cometidos, não pareciam erros não só aos líderes da Igreja como à maioria das pessoas. Embora estivessem todos em contradição com o espírito religioso, em geral, e do cristianismo, em particular, uma religião do amor. Claro que, depois que os príncipes trocaram as espadas pelas raquetes de tênis, uma iniciativa como as cruzadas parecerá uma barbaridade. O escravismo, hoje em geral também considerado como uma barbaridade --embora ainda existente, mesmo no ocidente!--, era aceito pelo clássico Aristóteles e pelo iluminista Locke, por exemplo.
Além disso, se a história do cristianismo é cheia de violência, diante da história geral da humanidade, ou seja, de TODAS as demais intituições, antes e depois do Renascimento, do Iluminismo e da Revolução Francesa, ela não se reduz ao show de horrores que você descreve.
Você está certo quando afirma que algumas conquistas da sociedade aberta foram obtidas contra a religião. Mas não contra a religião como um todo e como tal. Você está jogando fora o bebê juntamente com a água do banho...
Por fim, não faço ideia de como você consegue considerar a antiguidade greco-romana como uma época não religiosa. Um dia vocÊ vai ter de explicar essa mágica.
A última palavra é sua; claro, se quiser. Aguardarei o seu próximo artigo.
Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Edson,

Direi apenas duas coisas:

A primeira é que não consigo acreditar que você seriamente pense que “as crenças científicas não são essencialmente diferentes das crenças religiosas”. E observo que, além de absurda, tal tese seria considerada ofensiva não apenas pelos verdadeiros cientistas, mas pelos verdadeiros religiosos. Mircea Eliade e René Guénon devem estar a se revirar nos respectivos túmulos.

A segunda é que eu jamais disse que a antiguidade greco-romana não tinha religião; apenas citei o brilhantismo da cultura clássica contra sua afirmação absurda de que “sem o cristianismo não seríamos nada”.

Abraço

Anônimo disse...

Antônio Cícero,
Talvez você tenha me entendido mal, e provavelmente a culpa seja minha, por ter me expressado mal também. Mas o fato é que a "sabedoria deste mundo" foi muitas vezes chamada de vã, pelos apóstolos e por Jesus. Ou, pelo menos, é o que está escrito por todo o Novo Testamento. Não existem, em toda bíblia (até onde eu sei, mas eu sempre posso estar enganada) elogios à sabedoria que hoje chamamos de clássica, embora haja um incentivo à sabedoria prática e eu possa pesquisar para citar exatamente onde está depois.
O que eu entendo é que o raciocínio dos primeiros cristãos busca coerência interna. E se o foco da fé, segundo os ensinamentos de Cristo, devia se deslocar da tradição para o amor ao próximo, era muito coerente que os apóstolos valorizassem os considerados ignorantes pelos “grandes sábios” da época, não acha? Lembrando que estes “grandes sábios”, das palavras de Paulo, não eram somente os filósofos gregos e romanos, mas também os próprios sacerdotes judaicos.
Você sabe mais do que eu que não só Paulo, mas também outros discípulos, como Marcos e Timóteo, eram pessoas instruídas. E justo estas pessoas instruídas, em união com os ignorantes, pregavam as palavras que você usa como primeiro argumento de comprovação da ideia inicial do seu texto.
A questão para mim é que, se você usa Paulo para argumentar que o cristianismo primitivo foi, assim como a astrologia, um movimento de inclusão dos que se consideravam “por fora” dos privilégios educacionais, isto destrói a coerência interna da sua idéia. Porque com uma observação histórica um pouco mais profunda do cristianismo primitivo, e mesmo de suas questões teológicas como a do amor ao próximo que derruba a necessidade de uma tradição religiosa como a lei mosaica, sua linha de raciocínio se embola. Afinal, se o fundador do pensamento cristão, conforme você mesmo coloca, é Paulo, e ele estava “por dentro” dos privilégios educacionais de seu tempo, como pode o cristianismo ser o movimento dos excluídos destes privilégios educacionais? É tão difícil considerar que a motivação tenha sido realmente a fé? Neste caso, torna-se necessário outro argumento para comprovar a afirmação inicial do seu texto. Porque as palavras de Paulo não servem a este fim, a não ser para pessoas que estejam predispostas a concordar com você. Mas aí, na minha opinião, a coisa perde toda a graça.
Eu realmente gostei do seu artigo, não estou sendo irônica. Mas tantos comentários, iniciando pelo do Marcone (que utilizou de recursos da oralidade e foi, por isto, prontamente ridicularizado por você – membro do grupo dos que estão “por dentro” dos privilégios educacionais de nosso tempo) fez com que eu percebesse estas falhas.

Abraços,
Renata.

João Renato disse...

Prezados Cícero e Comentaristas,

Um poema que fiz há muito tempo atrás:

Se existir algo após a morte,
acho um absurdo que o destino
da minha alma dependa
de um julgamento divino.
Portanto, que nenhum deus
se meta a ser juiz,
com o direito de indagar
sobre o que fui ou o que fiz.
Se ele diz que me deu a vida,
não lhe devo mais satisfações;
agora, ela me pertence.

E se vier com interrogações,
não respondo e ainda lhe despejo
todas reclamações
que tenho do seu presente,
além de acusá-lo criminalmente
por incitação dolosa
e responsabilidade culposa
pelas matanças cometidas
nas guerras religiosas.

Antonio Cicero disse...

Renata,

O astrólogo não precisa ser excluído dos privilégios educacionais para explorar os ressentimentos dos que foram excluídos desses privilégios. Paulo teve talento para explorar esses e outros ressentimentos.

O que me indispôs com o Marcone não foi a ignorância, mas a grosseria e a prepotência dele.

Abraço

Sidartha Silva disse...

Caros Antonio Cicero e demais,

Se me permitirem, darei um palpite neste ótimo debate que se desenrola, particularmente entre Cicero e Edson.

No texto original, Cicero menciona "ideologias religiosas" (sem precisar quais seriam), e "seitas" diversas que atacariam a sabedoria e a razão em nome da fé ou da crença irracional. Não critica, deste modo, a religião em geral (ou todas as religiões). Portanto, deve distinguir religião em geral de determinadas seitas religiosas. Se as últimas são de fato as disseminadoras de "crenças irracionais" e tendencialmente inimigas da sabedoria racional, e se elas se distinguem da religião em geral, então é razoável concluir que nem toda religião consiste em irracionalismo, obscurantismo, aversão ao bom senso etc. Porque, se consistisse, então toda e qualquer religião seria uma seita fundamentalista, e a crítica de Cicero seria à religião em geral (o que penso não ser objetivo ou pretensão dele).

E se nem toda religião consiste em irracionalismo (e sim somente determinadas seitas etc), nem toda crença religiosa é irracional, ao que Edson estaria correto, então. No debate, por irônico que pudesse parecer, a razão estaria com o Edson.

Contudo, no decorrer do debate, não sei se por questão de economia, o Cicero passou a se referir ao seu objeto de crítica como "fé religiosa''. Estaria, então, generalizando sua crítica (de seitas específicas a toda e qualquer religião)?

No decorrer do debate, não me pareceu que Cicero conseguiu distinguir de modo convincente a fé religiosa ("crença irracional") da fé no técnico ("crença racional"). Ao menos não com o argumento que utilizou: que a fé religiosa não se baseia na experiência, e que religioso nenhum aceitaria uma experiência que desmentisse a sua fé.

Porque a experiência constantemente leva indivíduos crentes a perderem sua fé. Eu mesmo sou um deles. Criado, como quase todo mundo, à sombra da religiosidade cristã, lá pelas tantas fatos da minha vida cotidiana me levaram a duvidar da crença em Deus, alma etc.
Assim como a experiência constantemente leva indivíduos a adquirirem fé, a verem sentido em ter determinada fé etc.

Ou seja, em princípio, o indivíduo religioso, tanto quanto o ateu, dispõe de uma determinada postura filosófica e moral com a qual vive sua realidade. O que diferenciaria, em termos essenciais, a crença dele e a minha descrença? Minha descrença não seria também uma crença? E quem ou o que poderia provar ou demonstrar qual crença é racional e qual é irracional?


E creio ser neste sentido que o Edson quis argumentar. Seria tolo separarmos absolutamente razão e fé, até por que não raro vemos indivíduos de razão manifestando crenças, bem como indivíduos de fé manifestando dúvidas. Talvez, entre os críticos da noção de fé neste debate, esteja havendo uma identificação indevida entre fé e fundamentalismo. É certo que todo fundamentalismo envolve o componente da fé, mas não é verdade que a fé se reduza ao fundamentalismo.

No que diz respeito à razão, acho que também já foi esclarecido que a razão não se resume à razão científica. E a razão filosófica, me corrijam os filósofos, também lida e opera com crenças. E, se a filosofia origina (até onde sabemos) a sabedoria calcada na razão, e se a razão filosófica envolve também componentes de fé/crença, então a linha que separa fé e razão seria mais tênue do que supõem alguns ateístas ou racionalistas militantes.

Abraços a todos,
Sidartha

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

No decorrer do debate, não sei se por questão de economia, o Cicero passou a se referir ao seu objeto de crítica como "fé religiosa''. Estaria, então, generalizando sua crítica (de seitas específicas a toda e qualquer religião)?

Não houve mudança. Falo de fé porque é em relação à fé que as ideologias religiosas desvalorizam a “sabedoria deste mundo” (Paulo) e a razão (Lutero). Falo de Paulo porque foi o fundador do Cristianismo. Não me refiro a toda e qualquer religião.

No decorrer do debate, não me pareceu que Cicero conseguiu distinguir de modo convincente a fé religiosa ("crença irracional") da fé no técnico ("crença racional"). Ao menos não com o argumento que utilizou: que a fé religiosa não se baseia na experiência, e que religioso nenhum aceitaria uma experiência que desmentisse a sua fé.

A fé, na tradição inaugurada por Paulo, é, como eu disse, um dom de Deus,um dom sobrenatural; logo, não se baseia na experiência. Não estou inventando isso. Lembro o que diz Agostinho: “a própria fé não pode ser atribuída ao arbítrio humano, que essa gente exalta, nem a qualquer mérito precedente – pois é depois que começam todos os méritos, sejam quais forem. CONFESSEMOS SER ELA UM DOM GRATUITO DE DEUS, TOMANDO-O COMO VERDADEIRA GRAÇA, ISTO É, NÃO MERECIDO, POIS, COMO SE LÊ NA MESMA CARTA [ele se refere aqui à Carta aos Romanos, de Paulo de Tarso], DEUS A CADA UM REPARTE A MEDIDA DA FÉ.” Lembro também o que diz o próprio Paulo: “As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. DESTRUÍMOS ARGUMENTOS e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus e LEVAMOS CATIVO TODO PENSAMENTO, PARA TORNÁ-LO OBEDIENTE A CRISTO”.
É simplesmente ridículo confundir a fé concebida dessa maneira com a “fé”, isto é, a expectativa, de que um técnico consertará minha geladeira.

Porque a experiência constantemente leva indivíduos crentes a perderem sua fé. Eu mesmo sou um deles. Criado, como quase todo mundo, à sombra da religiosidade cristã, lá pelas tantas fatos da minha vida cotidiana me levaram a duvidar da crença em Deus, alma etc.

Quem usa a razão, TENDE a perder a fé. Ora, o animal racional não consegue alienar totalmente a sua razão. Mesmo aquele que quer pensar que foi agraciado com a fé – pois isso o salvaria – tem dúvidas, quando usa a razão. Mas a tendência dele é, então, duvidar de si próprio: duvidar de que tenha sido agraciado com a fé. E isso é um forte estímulo a cessar de duvidar, e a considerar o uso da razão como uma tentação enviada pelo diabo.

Se você não experimentou a perda de fé desse modo, provavelmente foi criado no catolicismo. A Igreja Católica, de fato, se afastou historicamente do cristianismo primitivo. A restauração se deu a partir, principalmente, a partir de Lutero. Se você ler o meu artigo, verá que falo de Paulo como exemplo do cristianismo primitivo, e que explico que houve uma mudança com o triunfo da Igreja Católica, na Idade Média.

Assim como a experiência constantemente leva indivíduos a adquirirem fé, a verem sentido em ter determinada fé etc.

Isso está simplesmente errado, de acordo com os pais do cristianismo. É o contrário: a graça os leva a verem sentido religioso na experiência.

Ou seja, em princípio, o indivíduo religioso, tanto quanto o ateu, dispõe de uma determinada postura filosófica e moral com a qual vive sua realidade. O que diferenciaria, em termos essenciais, a crença dele e a minha descrença? Minha descrença não seria também uma crença? E quem ou o que poderia provar ou demonstrar qual crença é racional e qual é irracional?

Daqui até o fim do seu comentário, meu amigo, você está caindo no irracionalismo. Minha posição sobre esses assuntos se encontra exposta neste blog, em alguns alguns artigos sobre o falibilismo. Se você tiver paciência, recomendo que os leia: http://antoniocicero.blogspot.com/search/label/Falibilismo.

Aetano disse...

Caros Senhores,

Permitam-me uma intervenção:

Um dos pontos do debate é a possível distinção entre razão e fé. Parece-me que, nesse ponto, a discussão gira em torno de saber se a fé e a razão são ou não diferentes expressões de uma mesma (e até agora inominada) faculdade humana.
Penso que a razão tem por traço fundamental o exercício da crítica ("se duvido, penso"). A dúvida é a expressão peculiar da razão, o seu traço distintivo, a sua, digamos, "diferença específica". Nenhuma outra faculdade humana duvida, senão a razão. De tal modo é assim, que a razão duvida até de si mesma e já exerceu a sua própria crítica.
A fé, por sua vez, considerada em si mesma, nada tem de crítica. A fé não duvida nem pode duvidar. Ao contrário, nasce da nossa disposição para a crença. Aquilo que faz o crente duvidar é outra coisa, mas não sua fé. Tanto que essa é "forte" ou "fraca" na medida em que resiste à dúvida que lhe é contrária.
Assim, penso que razão e fé são coisas bem distintas. Claro, a possibilidade de acumular conhecimento necessita de uma espécie de crença. Mas nem por isso razão e fé são coisas próximas. Se todas as pessoas fossem acometidas por um dúvida que duvidasse de tudo, de tudo mesmo, a razão aniquilar-se-ia. Não por ter perdido a sua característica fundamental - sempre duvidante -, mas por ter perdido o freio que a equilibrava: a imprescindível disposição para crer em algo.

Abraços

Antonio Cicero disse...

Aetano,

concordo inteiramente.

Abraço

Anônimo disse...

Caro Aetano, pelo menos de minha parte, a questão não versava sobre a diferença entre fé e razão, mas entre fé [crença religiosa] e saber [conhecimento]. Justamente problematizo a identidade entre conhecimento científico e razão, e vice-versa. A ciência não é totalmente racional, longe disso. E a razão não é apenas científica [Kant, Weber et al.]. A idealização da ciência, que a interpreta como empreendimento totalmente racional, é um fenômeno ideológico, que, segundo penso, foi desmascarado por Kuhn, Feyerabend, Myrdal, Polanyi entre outros. Abraço, edgil

Antonio Cicero disse...

Edson,

não vou comentar seu comentário aqui porque estou escrevendo um artigo em que falo de Kuhn.

Abraço

Aetano disse...

Caro Edson,

1. Penso que, a partir do meu comentário anterior, é possível vislumbrar uma diferença fundamental entre fé e saber: "credo quia absurdum", nisso consiste, para mim, a fé. O conhecimento, por sua vez, é crível porque é razoável (ou seja, não é absurdo). A crença no Deus dos filósofos, por exemplo, está mais para ciência do que para fé - repito: essa é a minha opinião, que emito com todo respeito;

2. Concordo com você, ciência e razão não são coisas idênticas - e justamente por isso é que o conhecimento é razoável, pois pode ser estabelecido diante da dúvida duvidante;

3. Você não vê nenhum movimento ideológico na aproximação entre fé e racionalismo? Se a fé é um absurdo, então por que eu tenho de crer no seu absurdo e não no meu? Mas se a fé é uma espécie de conhecimento, então podemos submetê-la à dúvida duvidante, a fim de sabermos se ela - especialmente se for alheia - é ou não razoável. E aí?

Abraços

Sidartha Silva disse...

Caros Cicero e demais, farei apenas mais um questionamento.

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2010/1/18 Antonio Cicero
" A fé, na tradição inaugurada por Paulo, é, como eu disse, um dom de Deus,um dom sobrenatural; logo, não se baseia na experiência.
É simplesmente ridículo confundir a fé concebida dessa maneira com a “fé”, isto é, a expectativa, de que um técnico consertará minha geladeira."
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E se raciocinarmos da seguinte forma: digamos que, até prova em contrário, simplesmente não existe Deus ou sobrenatural. E que na verdade são os seres humanos que criam deuses, e não o contrário.

Neste sentido, para uma compreensão racional ou "científica" do fenômeno da fé entre os indivíduos, ou das ideologias religiosas, não poderíamos utilizar o argumento elaborado por Paulo para esgotar a compreensão do fenômeno da fé. Porque, para qualquer indivíduo de razão, também Paulo partiu da experiência para elaborar sua teologia e respectivas crenças etc, e não interessa se nesta elaboração ele afirma que a fé seja um dom sobrenatural, uma graça divina ou uma revelação feita a ele por Deus e, portanto, não-mundana, livre da experiência ou avessa à razão diabólica.

Pelo simples fato de existir, nenhum animal racional escapa ao plano da experiência, vivenciada diretamente ou indiretamente, na forma de ensinamentos, normas, valores etc, elaborados por outros animais racionais igualmente submetidos à experiência. Todas as formas de expressão humana derivaram, em algum momento, de alguma experiência (embora não se reduzam a ela), incluindo-se, é claro, a expressão religiosa. Do contrário, e para usar um exemplo mais visualmente eloqüente, seria como considerar que a figura do deus-trovão pudesse ser possível sem a experiência humana de um determinado fenômeno da natureza (o relâmpago e o trovão etc).

O crente pode acreditar piamente que sua fé não tem nada a ver com a experiência, com o mundano, mas nós sabemos que isso não é verdade - a não ser que passemos a considerar seriamente a hipótese da existência do sobrenatural etc. Logo, a fé dele teve origem em alguma experiência, dele ou de outros.

Isso tudo apenas para insistir no argumento de que a distância entre a fé do religioso e a fé do técnico não residem em pontos tão infinitamente distantes assim um do outro. Ambas nascem de fato da experiência, e assim sendo não poderíamos desqualificar peremptoriamente uma em relação à outra.

Você afirma que quem usa a razão tende a perder a fé. Será mesmo? Não existirão cientistas que usam continuamente a razão e, nem por isso, deixam de ter fé na existência do sobrenatural, de Deus etc.? Acho difícil acreditar nisso, bem como na "regra" de que a razão, quando mais utilizada, mais exclui a presença da fé no pensamento de um indivíduo.

Finalmente, ao Aetano, para quem "A fé, por sua vez, considerada em si mesma, nada tem de crítica. A fé não duvida nem pode duvidar. Ao contrário, nasce da nossa disposição para a crença". Ora, mas a ciência também tem isso. O que são os aprendizes de cientistas, comos nos lembra Kuhn? Doutrinação, acriticismo, etc.

abs
Sidartha

Antonio Cicero disse...

Caro Sidartha,

Seu argumento se reduz ao seguinte:

Tudo o que pensamos vem da experiência, logo, nada está infinitamente distante de nada.

Se é assim, segundo o seu raciocínio, a distância entre a tese do meu vizinho que diz ser Napoleão, imperador da França, ou a tese de que a Terra está em cima de um jabuti que está em cima de um elefante que está em cima de um jacaré etc., e as teses da teoria da relatividade e as da trigonometria, por outro, não residem em pontos tão infinitamente distantes assim uns do outro. Todas nascem da experiência e, assim sendo, não poderíamos desqualificar peremptoriamente umas em relação às outras.

É: quem pensa desse modo não pode, de fato, achar a fé tão distante assim da ciência.

Abraço

Sidartha Silva disse...

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Antonio Cicero:

Caro Sidartha, Seu argumento se reduz ao seguinte:
Tudo o que pensamos vem da experiência, logo, nada está infinitamente distante de nada.
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Não exatamente. Esclarecendo: o "meu" argumento é que todo conhecimento tem início na experiência, do maluco do seu vizinho ao maluco do Paulo, cientistas malucos etc. E, se fosse olhar de modo "científico" para o argumento de Paulo não poderia levá-lo a sério (imagine, dizer que a fé vem de Papai Noel, de Vishnu ou de qualquer deus/entidade sobrenatural). Uma explicação racional e razoável para a fé de Paulo começaria por esclarecer que ela teve início em uma experiência. Não pode ter vindo de Deus, porque isso não existe, ora pois.

Mas não é porque a crença em Deus ou em determinadas verdades de fé não resiste à crítica da razão que ela "merece cair". Esse radicalismo não me parece tão menos obtuso do que o dos religiosos em seus piores momentos. Como já me disse alguém, pode haver crenças que não resistam à crítica racional mas que, mesmo assim, são necessárias à nossa sobrevivência. Essa arrogância diante da fé e de crenças religiosas, tidas como ridículas, não parece lá muito sábia. Parece até ojeriza, ou ódio.

abs
Sidartha

Anônimo disse...

Caro Aetano,

AETANO: ... "credo quia absurdum", nisso consiste, para mim, a fé.

EG: Mas o que vc entende por isso, ou seja, por crer que p, porque p é absurdo? Que vc crê em p, porque p é irracional; ou que crê em p, porque p não pode ser conhecido ou demonstrado?

Note que 1) nem tudo que é racional é cognoscível ou demonstrável, e 2) se os artigos de fé fossem cognoscíveis e demonstráveis, então a fé seria desnecessária.

Mas o que vc entende por irracional? Para mim, p é irracional ou absurdo sse p for contraditório, ou seja, se p não puder nem ser pensado. Nesse caso, exatamente o quê, na religião cristã, para ficarmos no exemplo elegido pelo ACicero, é irracional ou absurdo?

AETANO: O conhecimento, por sua vez, é crível porque é razoável (ou seja, não é absurdo).

EG: Que conhecimento? Todo conhecimento, ou o conhecimento científico? [Vamos deixar de lado a questão de se se pode falar de conhecimento religioso.) Não me parece que, para o senso comum, todas as teorias e hipóteses científicas sejam razoáveis. Pense, por exemplo, nos princípios de complementaridade e de incerteza, da física quântica, ou na teoria da evolução [sistemas complexos constituídos por acaso], ou no big bang [matéria eterna que se contrai e se expande recorrentemente] etc. E quanto ao irracional matemático?

Segundo Kant, Deus e alma são ideias da RAZÃO: não são, portanto, contraditórias. Não têm função cognitiva, mas não são irracionais.

Abraço,
edgil
PS: A frase que você cita jamais foi dita por Tertuliano.

Antonio Cicero disse...

Sidartha,

O nome do que não resiste à crítica da razão mas finge que está de pé, ou tenta se pôr de pé à força é precisamente "irracional".

Abraço

Anônimo disse...

Caros,

Decerto o Sidartha se refere à seguinte afirmação feita pelo Cicero, no artigo sobre o falibilismo: "Naturalmente, a crença que não resiste à crítica da razão merece cair."

Lembra-me a afirmação de Sócrates, e repetida por Popper, de que uma vida não examinada racionalmente, não refletida, não merece ser vivida. Confesso que nunca gostei dessa tese... Sabe-me a orgulho intelectual.

Fico a pensar nas pessoas simples, ingênuas, cheias de fé, fé no próximo, na vida, no santinho padroeiro, em Deus etc. O que elas devem fazer, cometer suicídio?

Ultimamente, tem sido publicada muita matéria sobre o poder da fé, da oração, do pensamento positivo, da música, sobre o efeito placebo etc. Está mais que comprovado que essas coisas funcionam, pelo menos em alguns casos. Não se sabe como, mas funcionam.

Muitas vidas foram salvas desse modo, salvas do crime, do vício, e, não por último, de uma doença considerada fatal. O meu convênio médico, soube há pouco, cobre tratamento de acupuntura. O meu ortopedista me receitou dez sessões... embora ele não faça ideia de como essa técnica funcione. E a homeopatia?

Não sei, talvez tenha --de novo-- compreendido mal o Cicero, mas esse racionalismo não implica um empobrecimento da vida?

E quanto à arte? Não existem crenças estéticas? A arte sobrevive à crítica racional? A beleza? Mesmo a feiúra... o kitsch às vezes não faz bem à alma? O que enfim resta de um poema depois de uma análise racional?

Ah, isto me lembra Goethe, salvo engano no Fausto, quando diz que o cientista, o analítico, tem “as partes nas mãos – mas, ai!, falta-lhe o laço espiritual”.

Abraços písticos!
edgil

Antonio Cicero disse...

Edson,

Você comete um equívoco e mesmo uma injustiça grave, para mim.

Vou citar um trecho de “O mundo desde o fim” que explica o sentido da razão para mim. É um trecho “difícil”, mas você o compreende: apenas, creio que já não se lembra dele.

“O caráter absoluto da razão que, em última análise, consiste na atividade da negação negante, significa a negação absoluta da possibilidade de que qualquer positividade seja absoluta.

“Se houvesse uma positividade absoluta [como, por exemplo, uma religião absoluta ou um Deus absoluto], ela excluiria ou degradaria outras positividades, pois estaria, por assim dizer, no lugar delas [do mesmo modo que o vermelho, por exemplo, está no lugar do verde ou do azul etc.; ou que a letra “a” está no lugar da “e” ou “i” etc.]. A negatividade do absoluto significa, ao contrário, que nenhuma positividade pode por princípio excluir ou degradar a realidade ou a possibilidade de outras positividades. Por isso, a exigência racional do reconhecimento do caráter negativo do absoluto é a exigência de uma garantia absoluta de abertura para que se manifestem todas as possibilidades positivas, todas as conjecturas, todos os projetos, todas as obras.

A razão é certamente prosaica porque não pretende tomar o lugar da poesia. Trata-se do mínimo de prosa necessário para garantir como seu avesso, por assim dizer, o máximo de realidades e possibilidades criativas, isto é, poéticas.”

Abraço

Aetano disse...

Caro Edson,

segue a nossa conversa:

AETANO: ... "credo quia absurdum", nisso consiste, para mim, a fé.

EG: Mas o que vc entende por isso, ou seja, por crer que p, porque p é absurdo? Que vc crê em p, porque p é irracional; ou que crê em p, porque p não pode ser conhecido ou demonstrado?

AETANO: Que eu tenho FÉ em "p", porque "p" é irracional.

EG: Mas o que vc entende por irracional? Para mim, p é irracional ou absurdo sse p for contraditório, ou seja, se p não puder nem ser pensado. Nesse caso, exatamente o quê, na religião cristã, para ficarmos no exemplo elegido pelo ACicero, é irracional ou absurdo?

AETANO: O Deus pessoal, histórico, "que se fez homem e habitou entre nós". Você dirá que isso é racional?

IDEM: O conhecimento, por sua vez, é crível porque é razoável (ou seja, não é absurdo).

EG: Que conhecimento? Todo conhecimento, ou o conhecimento científico? [Vamos deixar de lado a questão de se se pode falar de conhecimento religioso.) Não me parece que, para o senso comum, todas as teorias e hipóteses científicas sejam razoáveis. Pense, por exemplo, nos princípios de complementaridade e de incerteza, da física quântica, ou na teoria da evolução [sistemas complexos constituídos por acaso], ou no big bang [matéria eterna que se contrai e se expande recorrentemente] etc. E quanto ao irracional matemático?

AETANO: Ora, o tema da nossa conversa é o conhecimento científico, mas poderia dizer que o conhecimento de que falo é todo aquele que, sendo submetido à mais severa e impiedosa crítica, ainda assim subsiste - é isso que chamo de razoável. Parece-me que a teoria da evolução tem resistido bem, não?
Quanto ao "irracional matemático", é interessante notar que essa denominação, relativa aos números, esteve associada ao "escândalo" provocado por aquela conhecida proposição de Pitágoras ("o quadrado da hipotenusa...), assim como o "credo quia absurdum", dizem, está associado ao "escândalo" da ressurreição de Cristo. Nesse ponto, quero observar que em NENHUM MOMENTO eu disse que o "credo..." era de autoria de Tertuliano. Mais: sequer disse que a frase era ATRIBUÍDA a ele - embora várias fontes o façam. De todo modo, fiquei deveras intrigado com a sua afirmação, peremptória, de que a frase JAMAIS foi dita por Tertuliano. Você se importa em me fornecer a sua fonte?

EG: Segundo Kant, Deus e alma são ideias da RAZÃO: não são, portanto, contraditórias.

AETANO: O Deus "que se fez homem e habitou entre nós é uma ideia contraditória".

***

P.S.: Edson, nada do que disse e do que li abala a minha fé cristã. A minha fé, que, já disse, é dirigida ao irracional, não precisa ser - e nunca poderá ser - justificada pela razão. Acho inclusive que apenas os inseguros precisam de tal justificação - é como se a fé deles fosse manca, a precisar da muleta racional. Certa feita, Antonio Cicero disse-me algo que, para mim, equacionou tudo, "verbis":

“Aetano,

O que você chama de meu "racionalismo" é, na minha cabeça, o mínimo de racionalidade necessária para garantir o máximo de espaço para o irracional: para que a viagem irracional de fulano não tolha a viagem irracional de sicrano. Por isso, eu falhei, se acabei por tolher o seu direito ao irracional.”

É isso, Edson! Uma fé justificada pela razão talvez possa ser imposta, não? A propósito, essa foi a pergunta que lhe fiz (item 3, do meu comentário anterior) e que vc, infelizmente, não respondeu.

Abraço!

Anônimo disse...

Caríssimo Cicero,

O trecho foi escolhido a dedo...

É exatamente por isso, pela abertura prosaica da razão à riqueza da vida, que tenho dificuldade em entender a sua repulsa à religião.

Note que em nenhum momento eu defendi as religiões institucionalizadas na sua intolerância e mesmo tirania. Eu defendo a religião como autêntica forma simbólica de vida, a qual, para muita, mas muita gente mesmo, é a única opção -- a poesia sempre foi coisa das elites.

A religião -- tal como a ciência, a ideologia, o mito, a cosmovisão e a própria filosofia -- só é perniciosa quando se torna intolerante e, portanto, irracional. Mas ela não tem necessariamente de ser assim. Não é difícil encontrar exemplos de pura tolerância religiosa... sei lá, um Francisco de Assis, um Rumi, um Dalai Lama et al. O próprio Jesus não tinha nada de intolerante; muitos até acham que ele nem pretendia fundar uma igreja.

Abraço,
edg

Anônimo disse...

Caro Aetano,

Eu também não disse que você havia atribuído o dito "credo... " ao Tertuliano. Eu só fiz a observação, aliás como postscriptum, porque essa atribuição é muito comum. É claro que me fio numa autoridade para afirmar que Tertuliano jamais escreveu isso: “Em qualquer hipótese, a fórmula 'credo
quia absurdum' jamais foi empregada por Tertuliano” [GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 109].

Na minha opinião, quando diz --sem mais-- que tem fé em p porque p é irracional, vc está a dar flanco para o irracionalismo. Como disse, irracional é apenas o absurdo, o que não pode ser pensado por ser contraditório. Um Deus uno e trino que se faz homem não é um absurdo. O princípio de contradição diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Ora, o Deus-Filho não é o mesmo aspecto que o Deus-Pai.

Mas é verdade que nas religiões há muita coisa aparentemente absurda.

Depois volto à sua pergunta.

Abraço,
edg

Aetano disse...

Caro Edson,

"[...], afirmo que todas as tentativas de um uso meramente especulativo da razão na Teologia, são totalmente INFECUNDAS e, pela sua natureza íntima, NULAS e VÃS; que, porém, os princípios do seu uso natural de modo algum levam a uma Teologia, conseqüentemente, se não se põem como fundamento princípios morais ou não se os usa como fio condutor, não pode haver em parte alguma uma teologia da razão. Com efeito, todos os princípios sintéticos do entendimento concernem a um uso imanente, ao passo que o conhecimento de um ente supremo requer um uso transcendente dos mesmos, para o qual o nosso entendimento não está absolutamente equipado. Se a lei empiricamente válida de causalidade devesse conduzir ao ente originário, então este teria que copertencer à cadeia dos objetos da experiência; em tal caso, porém, seria por sua vez condicionado tal como todos os fenômenos. Se além disso, se permitisse saltar para além dos limites da experiência mediante a lei dinâmica da referência dos efeitos às suas causas, que conceito poderia nos ser proporcionado por um tal procedimento? Nem de longe um conceito de um ente supremo, pois a experiência jamais nos apresenta o maior de todos os seus efeitos possíveis (que deve dar testemunho da sua causa). Se apenas para não deixar lugar vazio em nossa razão nos for permitido preencher essa deficiência de determinação plena mediante uma simples idéia da perfeição suprema e da necessidade originária, então isso pode na verdade ser concedido com um favor, mas não exigido a partir do direito de uma prova irresistível. [...].

Disso resulta claro que as questões transcendentais permitem só respostas transcendentais, isto é, a partir de puros conceitos a priori sem a mínima interferência empírica. O problema é aqui evidentemente sintético, e requer uma ampliação do nosso conhecimento para além de todos os limites da experiência, a saber, até a existência de UM ENTE QUE DEVE CORRESPONDER À NOSSA SIMPLES IDÉIA, À QUAL NENHUMA EXPERIÊNCIA PODE IGUALAR-SE. Ora, de acordo com as nossas demonstrações precedentes, TODO CONHECIMENTO SINTÉTICO A PRIORI É POSSÍVEL SÓ ENQUANTO EXPRESSA AS CONDIÇÕES FORMAIS DE UMA EXPERIÊNCIA POSSÍVEL, e todos os princípios possuem por isso apenas validade imanente, isto é, referem-se unicamente a objetos do conhecimento empírico ou fenômenos. Logo, tampouco se consegue algum resultado mediante o procedimento transcendental com vistas à teologia de uma razão meramente especulativa.”

(Kant, I. "Crítica da razão pura". Tradução de Valério Roden e Udo Baldur Moosburger. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. 316/317. Grifei).

Como visto, Segundo Kant, Deus não passa de uma ideia. Racional, sim, mas uma "simples ideia", nada se podendo dizer sobre a sua realidade objetiva, sobre a sua existência.

Ao contrário, o Deus da fé cristã - que é o que está em discussão - é um Deus vivo, existente, pessoal e - por tudo isso - irracional.

Abraço.

Anônimo disse...

Cicero,

estou a adorar esta discussão (e a aprender imenso).

Se entendo a posição de Aetano é,

- a ideia de deus(es) é gerada pela razão (contemplação + reflexão);

- tomar essa ideia como verdadeira, no sentido de real ("o(s) deus(es) existe(m)") - é uma questão de fé;

no que respeita ao conhecimento científico,

- tal como a ideia de "deus", o conhecimento científico é gerado pela razão (contemplação + reflexão) que produz ideias (a que chamamos hipóteses) que depois são testadas e rejeitadas ou não utilizando, mais uma vez, a razão;

- diferentemente disto, acreditar, por exemplo, que "a ciência vai resolver todos os problemas do mundo" é uma questão de fé.

gostava de saber se concordam com isto -- parece-me que o edson vai discordar dizendo que acreditar naquilo que é tido como conhecimento científico também é uma questão de fé e é essa posição que ainda não consigo perceber.

abraço,
F.

Anônimo disse...

Aetano,

É preciso tomar cuidado com os termos "mero" e "simples" nos textos de Kant. Em geral, não têm um sentido pejorativo. Quando diz, por exemplo, "mero fenômeno", Kant não quer dizer que se trata de mera aparência de uma realidade substancial subjacente: não, o fenômeno é a realidade. Do mesmo modo, quando diz "mera ideia", Kant não pretende dizer com isso que a ideia da razão como tal seja menos importante que o conceito do entendimento ou a intuição da sensibilidade. Do ponto de vista [Kant altera sua perspectiva constantemente] teórico-cognitivo, a "mera" razão só tem mesmo uma função regulativa. Mas do ponto de vista prático-moral, a razão desempenha um papel determinante. A revolução copernicana de Kant não consiste apenas em inverter as posições de sujeito e objeto, mas também e sobretudo em tirar a primazia da metafísica relativamente à moral. A metafísica kantiana é fundada na ética, e não ao contrário, como era o caso ao longo da tradição. Isso significa, meu caro, que toda a moral se funda nas "meras" ideias racionais de Deus, [imortalidade da] alma e de mudo [liberdade].

Mais uma última observação: o método transcendental tem muita semelhança com a analogia dos escolásticos. Você não pode perder de vista, que as propriedades --existência, vida e personalidade-- que você atribui a Deus têm um valor "meramente" analógico.

Abraço,
edgil

Aetano disse...

Caro Edson,

Como o seu último comentário nem de longe consiste numa refutação ao meu comentário anterior, agradeço pela conversa.

Agradeço também pela recomendação: prometo que terei cuidado com o termo "simples" no texto de Kant - embora, na ocasião em que o transcrevi, o tenha feito EXATAMENTE como Kant o fez (atente para as aspas).

Obrigado mais uma vez e um forte abraço!

Aeta

P.S. Caro(a) "F", o seu resumo da minha posição está corretíssimo. Abraço.

wilson luques costa disse...

Prezado Antonio Cicero e debatedores,

Fica claro que o ensaio suscitou uma digressão interessante. Todos de uma maneira ou outra puderam argumentar embasando-se em várias razões que não seriam a própria razão -- como eu a compreendo no sentido lógico; aliás, nem sei se há ou haveria essa tal razão. De modo que a ideia de razão universal e necessária seria apenas uma norteadora, um leitmotiv dialético -- e nisso é uma colaboradora essencial. Tomo como exemplo a fórmula de Einstein e = mc 2 -- seria uma fórmla racional ou metafísica? -- porquanto sabemos que a velocidade da luz ao quadrado seria implausível para este nosso mundo. Nesse sentido, eu pergunto: deveríamos acreditar que Einstein supõe um outro mundo onde a velocidade da luz atinge os píncaros da sua própria multiplicação? se admitirmos isso, poderíamos então admitir que quando a matéria atinge ou suplanta a velocidade da luz ao quadrado, torna-se energia? poderíamos então admitir, dessa maneira, então, que toda energia abaixo da velocidade da luz ao quadrado transforma-se em matéria? se admitirmos a genialidade de Einstein, poderímaos dessa mesma maneira ainda admitir que a nossa razão é em muitos aspectos insuficiente? poderíamos ainda dar credibilidade às teses religiosas que acreditam na metempsicose? e que a fé nesse sentido não seria uma antípoda da razão nem vice-versa, mas que ambas juntas muito poderiam contribuir para o progresso da humanidade? um abraço a todos os debatedores...
escrevi currente calamo

Anônimo disse...

Aetano,

Eu notei as aspas, tanto que fui consultar o original: "...dem Dasein eines Wesens, das/was unserer blossen Idee entsprechen soll..." "Bloss", comumente traduzido por "simples", "mero", também significa "só", "unicamente", "como tal", "em si", além de nu etc. "Simples" não é uma má tradução, mas pode levar a mal-entendidos. Daí a minha observação. Como vc disse que, para Kant, "Deus não passa de uma ideia", pensei que talvez valesse a advertência --se não para você, para outro eventual leitor.

Kant não diz que Deus é APENAS uma ideia. Em nenhum lugar, ele nega a existência de Deus. Kant apenas diz que não temos como saber se à nossa ideia de Deus corresponde um ente real. Pois, para sabermos isso, teríamos de dispor de uma intuição não apenas sensível, como a nossa, mas intelectual, como a do próprio Deus.

Segundo Kant, nós temos boas razões para crer em Deus. Aliás, nós necessitamos crer nEle. E vai mais longe, ao dizer que, para o homem, ter uma religião é uma obrigação moral diante de si mesmo.

Abraço,
edgil

Anônimo disse...

A fé como "falha" moral:

http://www.butterfliesandwheels.com/printer_friendly.php?num=166

Anônimo disse...

Caros,
O link a seguir dá acesso a um interessante texto sobre a relação entre fé e crença:

http://edsongil.wordpress.com/2010/01/22/fe-e-crenca/

Abaixo, título, autor e subtítulos desse texto:

Fé e crença

por JACQUES ELLUL

Toda crença é um obstáculo à fé. As crenças atrapalham porque satisfazem a nossa necessidade de religião.
A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida.

Os crentes encontram encorajamento e certeza na presença de outros, e têm o seu vazio existencial preenchido pela vida comunitária.

A crença é confortadora.

Pertencer à Cristandade e a uma das suas igrejas é o principal obstáculo para alguém tornar-se um cristão verdadeiro.

Se você crê em Deus para ser protegido, coberto, curado ou salvo, então não é fé, porque a fé é gratuita.

A fé é o ponto de ruptura, não com os nossos companheiros humanos, mas com as religiões.

Ab.,
edgil

Antonio Cicero disse...

Edson,
Não concordo com sua tese sobre Kant. Desculpe-me, mas acho que você está sendo dogmático, afirmando como se fosse ponto pacífico uma tese extremamente controversa, que é a da relação de Kant com a ideia de Deus.

É preciso lembrar, em primeiro lugar, que o ateísmo era perseguido na Alemanha até não somente o fim do século XVIII, mas até o fim da primeira metade do éculo XIX.

No começo do século XVIII, Christian Wolff, o mais importante filósofo alemão durante os anos de formação de Kant, tendo sido acusado de ateísmo, foi demitido de suas funções e expulso da Prussia sob ameaça de pena de morte.

No final do mesmo século, Fichte, discípulo de Kant, foi demitido da Universidade de Jena, acusado do mesmo “crime”, por ter publicado anonimamente, no espírito da filosofia de Kant, uma “Versuch einer Kritik aller Offenbarung” (“Tentativa de crítica de toda revelação”), desencadeando o famoso Atheismusstreit.

Ainda em 1853 o mundialmente famoso historiador da filosofia Kuno Fischer foi, também acusado de ateísmo, demitido da Universidade de Heidelberg.

Ou seja, parodiando a frase de Oscar Wilde sobre a homossexualidade, o ateísmo era, na época de Kant, “the conviction that dared not speak its name”.

Não admira que os filósofos muitas vezes abrissem em seus sistemas um espaço teoricamente supérfluo, mas politicamente expediente, para Deus...

A verdade é que a filosofia teórica de Kant não deixa lugar para Deus; e a filosofia prática dele não precisa de Deus, pois, ao contrário, fundamenta exatamente a autonomia ética. Não se cumpre o dever por esperar recompensas em futuras vidas, mas por ser o dever.

Heinrich Heine tem razão ao dizer – como, aliás, Jacobi – que Kant introduz o ateísmo na filosofia alemã ao declarar numenal o divino, pois assim o lança na irrelevância.

E por que, então, Kant reintroduz Deus em sua filosofia? Não posso deixar de me lembrar da palavra do próprio Heine: para consolar seu pobre, fiel e idoso servente...

Heine está brincando, mas quer dizer algo de sério com essa brincadeira: não é para os filósofos que Kant reintroduz a ideia de Deus na sua filosofia.

Abraço,
ACicero

Anônimo disse...

Caro ACicero,
Desculpe-me, mas a sua posição, bem como as frases citadas, é que me parecem dogmáticas.
A minha interpretação está baseada em Kant, e não em intérpretes e na história das ideias. Se vc quiser, podemos discutir isso, mas este espaço não me parece ser o mais adequado.
Muitos intérpretes de fato DESEJAM que Kant tenha sido ateu. Claro que tanto ele quanto Fichte eram, sim, ateus relativamente ao Deus da esclerosada igreja oficial. Mas ambos foram pessoas religiosas até o fim da vida.
Acho muitíssimo improvável que Kant tenha despendido tanto tempo e energia --logo ele!-- a fim de criar um lugar no seu sistema para um Deus ex machina politicamente correto.
Quando foi admoestado pelo príncipe, Kant declarou que nunca mais --enquanto o príncipe vivesse-- falaria de religião. Mas confidenciou a amigos que ele, temporariamente (ou seja, até a morte do governante), podia deixar de dizer o que pensava, mas jamais diria o que não pensava.
Abraço,
edgil

Anônimo disse...

KANT, I. Crítica da razão pura. 5. ed. Lisboa: Caloute Gulbenkian, 2001.

"A simples fé doutrinal tem em si, contudo, alguma coisa de vacilante: alguns têm-se afastado dela pelas dificuldades que se apresentam na especulação, [B 855/856] embora de novo a ela regressem inevitavelmente.

"De todo diferente é o caso da fé moral, pois agora é absolutamente necessário que alguma coisa aconteça, a saber, que eu obedeça, em todos os pontos, à lei moral. O fim está inevitavelmente fixado e só há uma condição possível, no meu
ponto de vista, que permite a este fim concordar com todos os outros fins e lhe dá assim um valor prático: é que há um Deus e um
mundo futuro; sei também, com toda a certeza, que ninguém conhece outras condições que conduzam à mesma unidade dos fins sob a lei moral. Mas, como o preceito moral é ao mesmo tempo a minha máxima (como a razão ordena que seja), acreditarei infalivelmente na existência de Deus e numa vida futura e estou seguro de que nada pode tornar essa fé vacilante, porque assim seriam derrubados os meus próprios princípios morais, a que não posso renunciar sem aos meus próprios olhos me tornar digno de desprezo.

"Desta maneira, apesar da ruína de todas as intenções ambiciosas de uma razão que se perde para além dos limites de toda a experiência, resta-nos ainda bastante para termos motivos para estar tranqüilos do ponto de vista prático. Certamente, ninguém se poderá gabar de saber que há um Deus e uma vida [B 856/857] futura, pois se o soubesse seria precisamente o homem que desde há muito procuro. Todo o saber (quando diz respeito a um objeto da simples razão) pode comunicar-se e, portanto, pelos seus ensinamentos, poderia também esperar ver a minha ciência maravilhosamente ampliada. Mas não, a convicção não é certeza lógica, é certeza moral e, como repousa sobre princípios subjetivos (o sentimento moral), não devo dizer nunca: é moralmente certo que há um Deus, etc., mas estou moralmente certo, etc. Quer dizer, a fé em Deus e num outro mundo encontra-se de tal modo
entretecida com o meu sentimento moral que tão-pouco corro o risco de perder esta fé, [A 829 B 857] como não temo poder ser algum dia despojado deste sentimento."

Antonio Cicero disse...

Edson,

Esse texto mesmo deixa claro que Kant pensa que Deus não existe. Ninguém tem o direito de dizer que ele existe. Deus, para Kant, aparece como um ponto de fuga – logo, imaginário – da lei moral. Repousa sobre princípios subjetivos. E aqui deve dizer-se: não se trata de princípios transcendental-subjetivos, mas empírico-subjetivos. Não só não se trata de uma certeza lógica, mas Kant não se permite nem “dizer nunca que É moralmente certo que há um Deus, mas ESTOU moralmente certo, etc.”

A posição de Kant é clara em outros textos (aqui, da "Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft"):

“A moral, na medida em que é baseada no conceito do homem como de um ente livre e, por isso mesmo, atado por si próprio pela sua razão a leis incondicionadas, não precisa, para reconhecer o seu dever, nem da ideia de outro ser acima de si, nem de outro estímulo senão a própria lei. Pelo menos é culpa dele próprio se tal necessidade se encontra nele, pois então não lhe pode ser aliviada por nada que não seja ele mesmo; pois o que não vem dele mesmo e de sua liberdade não fornece substituto para a falta de sua moralidade. Esta, para si própria (tanto objetiva, no que diz respeito à vontade, quanto subjetivamente, no que diz respeito à capacidade), não precisa de modo algum da religião, mas, em virtude da pura razão prática, basta a si própria. Pois, já que suas leis obrigam pela pura forma da legalidade universal das máximas que lhe correspondem, como as condições supremas (elas mesmas incondicionadas) de todos os fins, a moralidade não precisa de absolutamente nenhum fundamento determinante material do livre arbítrio, isto é, de nenhum fim, nem para saber o que é o dever nem para impelir a exercitá-lo: ao contrário, no que diz respeito ao dever, a moral pode e deve abstrair de todos os fins”.

Depois disso, não se pode levar a sério que a ideia de Deus seja realmente necessária para coisa alguma. A culpa então é do ser humano empírico, se ele se encontra insatisfeito, e só dele mesmo pode vir o alívio para essa insatisfação, na forma do Fluchtpunkt que é Deus. Muitos seres humanos, como eu mesmo, não sentimos essa insatisfação. Os equívocos a que a ideia do Fluchtpunkt pode dar margem incomodam mais.
Abraço

P.s. Vou viajar a trabalho, de modo que não poderei responder a nenhum comentário durante alguns dias.

Anônimo disse...

Caros,

Discordo totalmente do Cicero. Como ele não está, vou dizer o mínimo.

É claro que Kant não acredita que Deus da metafísica dogmática EXISTA. A existência só é dada na intuição sensível. Nem tem Deus Realidade para ele. Pois realidade --assim como existência-- é uma categoria, que, como tal, só pode ser aplicada ao fenômeno.

Daí Heidegger, p.ex, considerar que a obra toda de Kant consistir numa meditação acerca da questão de se Deus é. Daí também E. Weil considerar que quando diz, no começo da Crítica da RP, que teve de suspender o saber para dar lugar à fé, Kant está-se referindo ao pensar puro --a "fé" racional--, por meio do qual se tem um acesso não cognitivo à coisa em si, Deus.

Abraço a todos,
edgil

wilson luques costa disse...

Prezado Antonio Cicero e debatedores,

Tento ler na medida do possível os textos postados aqui. Mas teclo de uma lan house e não é possível estender-me. Mas eu gostaria de destacar que se usa, a meu ver, muito indevidamente o conceito ateu -- posto que ἄθεος (atheós),seria em meu entender a negação pela anteposição da vogal álpha em theós; e nesse sentido só pode ser negado o que está posto e acreditado, portanto o ateu teria uma dupla função: primeiro provar o que seria a posteriori negado. Estou me fundamentando na partícula de negação helena e numa lógica bem particular. É evidente que se fizermos uma varredura pelo conceito, vamos ler algo como aquele que não crê -- então esse ´não crer` seria mais análogo também a um bloss tipo de fé -- por não comportar uma razão lógica. Por isso, temos de ter cuidado ao afirmarmos que x ou z é ateu ou ateia. Nun, se Kant era cristão ou não, não julgo relevante saber. Mas ontem eu estava folheando um livro da Vozes e Kant parece-me não ser tão incoveniente com o Cristianismo. Hoje, procurarei ler e cotejar com o meu parco alemão. A tradução é bem chata para ler. Dei só uma folheada. Mas Kant com o seu imperativo categórico parece-me ter herdado algo do cristianismo. Não estou dizendo com isso que x ou y está certo ou errado, é só uma opinião sobre a carolice kantiana. O próprio imperativo é um tipo de axiologia que não comporta uma explicação racional. Eu já tive um aluno que me perguntou assim: professor, prove-me porque devo acreditar nesse imperativo categórico... e eu cofesso que tartamudeei...
grato a todos vocês...

23 de janeiro de 2010 11:35

Anônimo disse...

Oi Wilson,

Não se trata de se Kant era ou não cristão, ou mesmo se o seu pensamento é compatível com o cristianismo.

Trata-se antes do papel que Kant atribui à fé e, por conseguinte, às ideias da razão (entre elas, Deus), na economia do sistema das nossas faculdades teórico-práticas.

O amigo Cicero, a fim de cooptar Kant para sua causa ateísta, reduz o idealismo transcendental do chinesinho de Koenigsberg a uma filosofia do entendimento.

Nisso ele perde de vista, entre outras coisas, que, embora não tenha realidade ou substância, o ponto de fuga (ou foco imaginário) é fundamental para a construção do mundo objetivo.

Aliás, que seria da modernidade sem a perspectiva?

Abraço,
edgil