27.2.09

Contardo Calligaris: "'Milk', o preço da liberdade"

O seguinte artigo -- com o qual concordo inteiramente -- de Contardo Calligaris foi publicado em sua coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro:



"Milk", o preço da liberdade

ASSISTINDO a "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant (extraordinário Sean Penn no papel de Harvey Milk), lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular de www.boxturtlebulletin.com (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual.

Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça às bruxas "comunistas" se confundia com a caça às bruxas homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.

É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público.

Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo (de polichinelo) é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner).

Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa que valesse: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite".

Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê?

Simples: se meu vizinho, sem violar as leis básicas da cidade, for impedido de ter a vida concreta que ele quer, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito. "Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico". A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.

Um amigo me disse recentemente que eu dou uma importância excessiva à contracultura dos anos 60/70. Acho, de fato, que ela foi a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos. Acho também que suas conquistas só se mantêm pelo esforço cotidiano de muitos. Afinal (quem viu o filme entenderá), surge uma Anita Bryant a cada dia.

Contardo Calligaris

11 comentários:

Anônimo disse...

cícero,
gosto muito do texto, só lamento a palavra "raça". não quero ser chata, nem "politicamente correcta" (conceito que, aliás, me enerva), o que acontece é que a palavra está utrapassada: "raça" não tem fundamento biológico, nem antropológico (além de ter uma história pouco feliz..)
abraço,
filipa.

ADRIANO NUNES disse...

Amado Cicero,

Sou leitor assíduo de Contardo Calligaris, acompanho o blog dele, tenho os seus livros (QUINTA COLUNA E TERRA DE NINGUÉM) e fiquei muito feliz de ver essa postagem em seu blog. Recomendo a todos que não têm acesso à Folha, ler Contardo No blog dele e na VERDESTRIGOS. Parabéns pela excelente postagem!


Abraço forte!
Adriano Nunes.

Alcione disse...

Sem milongas

A escrita não me limita
tão longe
quanto o desejo me lança
é lá que encontro
o sol, a lua e o luar
roçando no mar
Oh, longe das marcas do desamor
Da loucura mais pura
Presa nos teus braços
rodando pela pista
suas ondas
sem milongas.

ADRIANO NUNES disse...

AMADO CICERO,

meu mais novo poema:

"PRA NADA"


Sem forma
Sem trauma
Sem medo
Sem pressa


Entrego-me
Inteiro a
Você


Sem trégua
Sem traço
Sem fuga
Sem nada


Encontro-me
Tão preso a
Meu ser


Sem tédio
Sem drama
Sem pranto
Sem fim


Enfrento-me
Pra à-toa
Viver.



Abraço forte!
Adriano Nunes.

Anônimo disse...

É isso mesmo!
E a contracultura sempre renderá bons frutos, pois não se trata de uma revolução que reivindica a troca de um poder por outro (procedimento que resulta no aparecimento de "novas classes", frequentemente e progressivamente mais obscuras), mas sim de um movimento em direção a uma autêntica experiência humana, que jamais seria possível através de vivências de segunda mão, impostas por hierarquias artificiais.

ADRIANO NUNES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
ADRIANO NUNES disse...

Amado Cicero,

Resolvi atender à sua orientação poética precisa: sempre aprendo contigo e retirei a palavra "meus" para que o verso tivesse dez sílabas tônicas! Eis o poema como está:

"DAS PEDRAS" (PARA MEU AMIGO, O PROFESSOR DOUTOR FRANCISCO PASSOS)

Desprende-se das pedras meu silêncio,
Um silêncio-cimento, construído,
Ecoado, silêncio dos abismos,
Das grutas, das laringes de silício,


Dióxidos de oxímoros, dos gritos,
Das lágrimas, dos lápis, os silêncios-
-Grafites, das ruínas, dos escritos,
Os silêncios perdidos no que penso.


Dentro de todo livro, concebidos
Em horas de tristezas, os silêncios
Concretos, precipícios de sentidos


Dos prédios e prisões, dos meus amigos,
Do que agora me abriga: não me lembro
De ter ouvido a voz do que persigo.


P.s.: O Francisco Passos escreveu um belo poema sobre o silêncio!


Amo-te muito!
Adriano Nunes.

Anônimo disse...

Caro Cícero,

Fico aqui pensando em como seria essa `militância libertária` nos dias de hoje, pós- queda do muro, em que não se há mais lados pra escolher, em que ou se é capitalista, ou se é capitalita, em que tudo é `sistema`, em que o poder age de forma tão mais sorrateira e `microfísica`.

Tenho a sensação de que se falar em liberdade e `militância libertária` hoje é ainda mais complicado e exige recolocarmos alguns termos, mudarmos perspectivas.

Mas é também, mais do que nunca, necessário. Há que se descobrir as novas formas de resistência e sempre` lutar pela tua vida como se fosse a nossa, (porque) aliás, ela é a nossa`.

Adorei o filme, talvez esteja na revolução do olhar que começa numa sala de cinema a forma de resistir.
Obrigada pelo texto!
É sua a minha admiração, é de Van Sant.

Anônimo disse...

Antonio, também gostei do artigo do Calligaris, mas, apesar de ser fã do Gus, achei o filme bem fraquinho. Perto do excelente "Elefante", "Milk" é apenas mais um filme "oscarizável".

Abbracci,

Paulo

Anônimo disse...

que artigo, cicero! na mosca!

e o filme é lindíssimo, saí do cinema apaixonado, como bem escreveu calligaris, com uma energia renovada, sadia, de que temos que bancar as nossas histórias, doe a quem doer, e lutar para que as pessoas também possam bancar as suas histórias.

lembro-me de já ter escrito isto antes: o correto, ao meu ver, é banir dos dicionários a palavra "tolerância", porque ela pressupõe, sempre, uma relação de superioridade de um (o tolerante) para com o outro (tolerado). o respeito maior, verdadeiro, passa longe disso. numa relação de igualdade entre indivíduos, tolerante e tolerado inexistem.

eu não gosto nunca de pensar que "tolero" alguma coisa. minha cuca e energia funcionam em prol do respeito e da aceitação.

enfim: tudo bonito, tudo bacana nas linhas do contardo.

e eu, aqui, sempre, a contar com a sua luz.

um beijo, riqueza!
pra você, os três grandes "s": Saúde, Sorte e Sucesso!

Liberté disse...

Gostei do filme tb!

Nossa vc ;e muito inteligente e pesquisador, parabéns!