O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo sábado, 22 de setembro de 2007:
O Senado e a democracia
EMBORA tenha sido deplorável a absolvição do senador Renan Calheiros, também são lastimáveis algumas das reações a esse episódio.
Readquiriu força, por exemplo, a idéia, que havia sido proposta no começo do mês pelo presidente do PT, de extinguir o Senado.
Como não pensar em maquiavelismo, à simples descrição do ocorrido? A opinião pública informada pressionava pela condenação de Renan; este não teria sido absolvido sem o beneplácito do presidente Lula; ora, sua absolvição desmoralizou grande parte dos senadores e revigorou, justamente junto à opinião pública informada, a idéia da extinção do Senado; com isso, o Poder Executivo -o presidente Lula- ficou ainda mais forte em relação ao Poder Legislativo.
Nessas circunstâncias, é imperativo que os brasileiros que defendam uma sociedade aberta e democrática conservem o sangue-frio. Devemos resistir à tentativa açodada de convocar uma assembléia constituinte que tenha o objetivo precípuo de dar fim ao sistema bicameral.
Lembremo-nos, por exemplo, que, num país de imensas desigualdades regionais, como o Brasil, um fator importante da unidade nacional é que haja uma Câmara -o Senado- em que todos os Estados da federação tenham o mesmo peso.
Assim como a desmoralização do presidente Collor não significou a desmoralização da instituição da Presidência da República, a desmoralização de vários senadores, no episódio Renan, não pode significar a desmoralização da instituição do Senado.
De todo modo, nada seria pior, neste momento, do que contribuir para desestabilizar o Congresso, de modo a perpetuar ou acentuar o presente desequilíbrio entre os poderes da República.
E, por falar em desestabilizar o Congresso, não será surpreendente se a atual desilusão generalizada, lançando suspeição contra a própria noção de representação política, traga novamente à baila a idéia de "democracia direta".
Esta se manifestaria pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular. Entretanto, o próprio Fábio Konder Comparato, que é, no Brasil, o grande defensor da "democracia direta", reconhece, por exemplo, que as leis raciais de Hitler foram aprovadas por mais de 90% do povo. Alguém duvida que as ditaduras sanguinárias de Hitler, Stálin, Mao Tse-tung e Pol Pot tenham tido o apoio da maioria da população dos respectivos países?
Sugiro, em relação a essa questão da "democracia direta", a leitura do livro recém-lançado do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, "O Paradoxo de Rousseau" (ed. Rocco, 2007, 166 pág., R$ 25).
Ele lembra, por exemplo, que, ao contrário do que ocorre nos Parlamentos, cujas decisões estão sujeitas a serem reconsideradas -pelo próprio Parlamento ou por outras instâncias- "não há como recorrer de decisões plebiscitárias. Os perdedores em tais decisões são perdedores absolutos".
Tudo se passa como se os plebiscitos "fossem a expressão da vontade geral unânime, quando pode ocorrer, inclusive, que não correspondam senão a maiorias obtidas por mínima margem de diferença".
O resultado, segundo o mesmo cientista político, é que "uma sucessão de escolhas plebiscitárias daria lugar à constituição de um contingente de cidadãos condenados ao silêncio por tempo indeterminado. Na verdade, o mecanismo se converteria em uma fábrica de ostracismo ideológico". E assim -agora sou eu que o digo- revela-se a verdade da "democracia direta" como a ditadura plebiscitária.
É para evitar semelhantes desastres que devemos fazer o máximo para preservar as instituições da República. Não nos enganemos: a existência delas ainda é precária.
Enquanto, por um lado, grande parte da direita odeia a sociedade aberta, por outro lado, grande parte da esquerda -principalmente da marxista- a despreza. Seria de esperar que, após a revelação dos massacres, das atrocidades e da repressão ocorridos na União Soviética, na China, no Camboja, em Cuba etc., os marxistas, antes de fazer qualquer outra proposta política, se propusessem a preservar e defender, de modo incondicional, a sociedade aberta, o Estado de Direito, os direitos humanos, a liberdade de expressão, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. É lamentável que não seja assim.
Antonio Cicero
23.9.07
O Senado e a democracia
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18 comentários:
Defender a democracia representativa e as instituições políticas liberais é bastante louvável, porém ligar a democracia direta unilateralmente às ditaduras mais ou menos plebiscitárias, como vem fazendo, parece-me má-fé. Abs
A má fé é de quem defende de as "democracias diretas" sem dar nenhum exemplo de uma "democracia" baseada em plebiscitos que não seja uma ditadura.
Abs.
Antonio Cicero
Olá Antônio Cícero, para compreender melhor seu artigo, se possiível, gostaria que definisse o que é entendido por "opinião pública informada". Uma outra pergunta: existe sociedade sem ideologia, ou seja, neutra? Não estou querendo colocar um olhar maquiavélico, ou até mesmo marxista, mas somente colocar algumas possibilidades. Abraços, admiro e acompanho seu trabalho.
Irineu B.
Irineu,
no caso em questão, a opinião pública informada é, evidentemente, a que acompanhou os acontecimentos que culminaram no processo em que Renan Calheiros foi absolvido.
Penso que há muitas ideologias, muitas maneiras diferentes de pensar em qualquer sociedade. Penso, ademais, que -- seja quem eu for -- não tenho o direito de querer que os outros adotem a minha ideologia. Mas também -- seja quem eu for -- tenho o direito de não querer que ninguém me imponha a sua ideologia. Como tenho esse direito, seja quem eu for, e seja lá qual for a minha ideologia, trata-se de um direito universal, de um direito independende de qualquer ideologia. As sociedades abertas são, entre outras coisas, as que conseguem garanti-lo.
Abraços,
Antonio Cicero
Cicero, fugindo do tema principal postado, sou apaixonada pela música "Inverno". Vc poderia me contar como ela foi feita? bjos :)
Dani,
não sei dizer. Adriana me mandou a melodia sem letra, e a melodia me inspirou a letra.
Beijo,
Antonio Cicero
Caro Antônio,
Considero muito apropriada sua defesa do sistema democrático representativo. Parece que há certa recorrência na história de nosso país de movimentos reformadores da ordem constitucional, especialmente em momentos de grande comoção ou incredulidade. Acredito, contudo, que justamente tais momentos é que são os menos apropriados à reforma.
É claro que há falhas no sistema vigente, mas isso não significa que, modificando-o, não acabemos introduzindo novos problemas. Há muitos países com sistema unicameral sem problemas. Mas a questão principal não é essa. Nossas instituições democráticas não estão suficientemente estabelecidas para que sejam reformadas de maneira tão drástica. Precisamos primeiro ter um sistema solidamente democrático, para depois pensarmos em reformá-lo, de maneira também democrática.
Uma constituinte agora seria tão ou menos representativa do interesse popular do que a anterior. E ainda correriamos o risco de perder as (já poucas) garantias de direitos que conquistamos.
Acho que o momento é de trabalhar pela garantia do funcionamento da lei, e não de pensar em revoluções.
um abraço,
Lucas Nicolato
Caro Lucas,
Concordo inteiramente.
Um abraço,
Antonio Cicero
Tudo o que está acontecendo fica muito claro com a leitura de Da Revolução, Hannah Arendt. Bem, desde a antiguidade os maiores tiranos foram colocados no poder e mantidos lá com o apoio da maioria da população q almejava a igualdade de condições.
Isso não mudou muito.
Parabéns pelo artigo. Seus escritos, há algum tempo, passou a ser leitura obrigatória para mim. Você transita, com segurança, de assuntos do cotidiano para a filosofia, filosofia da arte e política com desenvoltura. Poucos, hoje, tem esse capacidade. Abraços.
É possível expandir os instrumentos da democracia direta no seio da democracia representativa, foi nisso que pensava quando falei que talvez fosse unilateral, mas desculpe-me pelo má-fé, foi sem pensar. Abs
liberdade (in)democrática...síndrome expressa da (falta de) comunicação...(?)
PREZADO ANTONIO CICERO,
LI O SEU ARTIGO NO SÁBADO INDO DE METRÔ AO CENTRO. E ONTEM O RELI EM CASA. ENTENDO, PARECE-ME, O QUE PENSA. TEME ALGO INUSITADO. TODAVIA NÃO SERIA DESCONSIDERAR O POVO, MESMO DIANTE DESSES PERIGOS? SE BEM ENTENDI, O POVO NUNCA ESTARÁ PREPARADO. MAS O QUE SERIA ENTÃO DEMOCRACIA? O INTERESSANTE É QUE LI MUITO RAPIDAMENTE UM ARTIGO DE RENAN CALHEIROS ABORDANDO ALGO ASSIM TAMBÉM. DESCULPE-ME POR QUESTIONAR DESSA MANEIRA. ALIÁS ESTOU COMO SÓCRATES EM SUA APOLOGIA, QUANDO SE REFERE À POLÍTICA. AO MESMO TEMPO EU PENSO QUE O POVO NÃO É TÃO IGNORANTE COMO OS INTELECTUAIS JULGAM. O INTELECTUAL QUE É INOCENTE, QUANDO JULGA O POVO DESPREPARADO. O INTELECTUAL PRECISA FREQÜENTAR UM POUCO MAIS A PERIFERIA. O MAU DO INTELECTUAL É QUE NÃO FREQUENTA OS BOTCHES DA CIDADE. NÃO ESTOU DIZENDO SE ESTÁ CERTO OU ERRADO. MAS A DEMOCRACIA NÃO PODE SER ESTRITAMENTE BURGUESA. ISSO ATÉ ME LEMBRA OS PETISTAS NA DÉCADA DE 70: AGORA VOU DIRECIONAR O SEU PENSAMENTO E VAMOS TROCAR UMA IDÉIA´ -- AO QUE RESPONDI: COM VOCÊ EU NÃO TROCO IDÉIAS, COM VOCÊ EU FORNEÇO IDÉIAS...´ GRATO.
WILSON
Prezado Wilson,
De fato, tenho em comum com Renan Calheiros ser contra a extinção do Senado. Mas é só. Fora isso, acho que ele devia ter sido condenado, expulso do Senado e julgado como corrupto.
Eu jamais disse que o povo está despreparado. Não se trata disso. A questão é que as únicas democracias que existem são as democracias representativas. Não há outras. As democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes executivo, legislativo e judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia ditatorial do executivo. Ora, penso que exatamente isso voltaria a ocorrer, caso se enfraquecesse o legislativo, transferindo suas atribuições a plebiscitos.
Não é que o “povo” (quem exatamente é o povo? Quem exatamente não é povo?) esteja despreparado. Mas, a esta altura, não podemos mais ser ingênuos. Já devíamos saber que a romantização do "povo" convém precisamente aos ditadores que pretendem liderá-lo.
Você diz que “a democracia não pode ser estritamente burguesa”. Mas quem diz que, no Brasil, ela é “estritamente burguesa”, senão aqueles que a querem desmoralizar e destruir? Acaso Lula é burguês? Acaso o PT é um partido burguês? Não, pois nem eles nem a burguesia os consideram como tais. Mas então, como falar de democracia “estritamente burguesa”? E quem garante que uma "democracia" plebiscitária não seria, no fundo, controlada pelo pior da burguesia? No último plebiscito ocorrido no Brasil, quem ganhou foi, a meu ver, exatamente a pior burguesia: a que fabrica armas.
Antonio Cicero
Inverno é uma música que toca meu coração. Obrigada pela resposta, Cicero. Já vi que simpatia é de família! Também sou fã da sua irmã, e, por tabela, sua.
Bjos
Dani
Prezado Antonio Cicero,
Grato pelo retorno. Observe, eu entendo o momento pelo qual passamos, com o pu-lula(r) de Evos, Chávez etc. Ou seja: já vimos esse filme também antes. O cara começa querendo 2 anos e fica 50. E o momento é perigoso. Mas acerca do que aborda, não haveria uma possibilidade de o povo estar plesbiscitando de tempos em tempos os nossos governantes? E o que pensa sobre um grupo de republicanos à la Helvétia? O que me preocupa, e torno a firmar que compreendo a sua temeridade que é também a minha, é que justamente aquilo que chamamos de povo, passa pelo preconceito da cultura. Mas há nas favelas, por exemplo, pessoas fenomenais, com pensamentos lídimos acerca da política. Sem falar que a democracia há que ser praticada pelo povo. Que se faça como os que estão aprendendo a pedalar. Primeiro, com quatro rodinhas e depois vai tirando até aprender. Penso que deve até ser bicameral, mas com plebiscitos constantes em nossa República. Mas muito obrigado pelo seu retorno. Aliás, jamais confundiria você com RC e vice-versa.
Em comentário ao escrito por Wilson:
O maior temor não é que o povo, por ser supostamente desinformado ou inculto, escolha mal. Todos somos humanos e temos a capacidade do raciocínio, independentemente da origem social ou étnica.
O perigo é que os governantes, que já não são tão representativos da vontade popular assim, tenham a possibilidade de escolher quais perguntas serão feitas ao povo, e abusar da confiança popular para obter uma aprovação, pretensamente absoluta, por ser popular, para quaisquer de seus desmandos. O temor não é que o povo não saiba escolher, mas que seja posto na injusta posição de ter que escolher entre a ditadura ou a barbárie.
um abraço,
Lucas
Um pensamento:´que as democracias perpetuem-se no poder, e não os chamados ´democratas´.
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