25.8.07

A busca do novo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 25/08/2007:


A BUSCA DO NOVO

O POETA Ezra Pound inventou inúmeros slogans, máximas, esquemas classificatórios etc. O problema de tais gnomas e traçados é que, retirados dos contextos -muitas vezes polêmicos- em que foram enunciados, eles tendem a esclerosar, tornando-se dogmas que empobrecem as questões a que se referem.
Assim foi, por exemplo, a classificação dos poetas em inventores, mestres e diluidores. Com base nela, Mário Faustino, por exemplo -que, entretanto, em outras ocasiões, mostrou-se um crítico perspicaz-, foi capaz de declarar que Carlos Drummond de Andrade era, "quando muito, um "master". Não é um "inventor" [...]. Nunca seria um Pound, nem mesmo um Eliot".
A meu ver, vários equívocos se manifestam nessas proposições, todos devidos à aplicação rígida das classificações de Pound. Elas pressupõem, por exemplo, que Ezra Pound seja indiscutivelmente melhor do que T.S. Eliot. Por quê? Porque Pound se aproximaria mais do paradigma do inventor. Ora, 50 anos depois de Faustino ter feito esse juízo, nada indica que o valor relativo desses dois poetas venha algum dia a ser um ponto pacífico. Eu mesmo, se tivesse que escolher entre os dois, ficaria com Eliot.
Outra pressuposição inaceitável é a de que Drummond jamais estaria à altura de "um Pound" ou de "um Eliot". Como pode Faustino pensar isso? É que Drummond, segundo ele, é um mestre, não um inventor. Mas, para mim, é claro que Drummond era um inventor, um mestre e, às vezes, até um diluidor: e que era capaz de ser tudo isso num só poema. Que grande poema não é simultaneamente uma obra de mestria e de invenção? Drummond foi um dos maiores acontecimentos da poesia do século 20 e, enquanto poeta, não é em nada inferior a Pound ou a Eliot ou a quem quer que seja.
Mas o culto ao inventor é freqüentemente associado ao slogan "make it new", que pode literalmente ser traduzido por "faça-o novo" e, menos literalmente, por "faça o novo". A própria idéia da valorização da novidade não é nova; nem é nova a rejeição a essa idéia. Na Atenas clássica, Isócrates já dizia que o importante não é fazer o mais novo, mas o melhor. Mas hoje ouço ou leio freqüentemente jovens poetas, influenciados por essas idéias, falando em "buscar o novo". Evidentemente, a intenção deles não é, por exemplo, achar alguma obra de arte que acabe de ser feita (logo, que seja nova) e copiá-la. Não: o que querem é achar alguma idéia nova (no sentido de que jamais tenha sido pensada). Ora, não há como buscar uma idéia de que não se tenha idéia nenhuma, e não se pode ter idéia nenhuma de uma idéia que não exista. Não há como buscá-la: uma idéia nova aparece ou não. Por isso, Picasso dizia, com razão: "Não busco, encontro".
No fundo, o problema está na descontextualização do slogan "make it new". Recontextualizando-o, o poeta Haroldo de Campos o interpreta como uma exortação a "remastigar a herança cultural universal para "nutrir o impulso': renovar".
A injunção de Pound também deve ser entendida a partir da definição que ele próprio dá da literatura como "news that stays news": novas que permanecem novas; novidades que permanecem novidades. O novo que permanece novo não é simplesmente "o novo", mas aquilo que não envelhece. "Um clássico é um clássico", afirma Pound, com toda razão, "porque possui um certo eterno e irreprimível frescor".
Já os poetas líricos gregos pensavam desse modo. Os poetas épicos haviam considerado as Musas -as deusas que inspiram os poetas- como filhas da Memória. Supõe-se, às vezes, que isso representasse o reconhecimento da importância da memória e da memorização para a poesia oral. Outra hipótese é que esse mito refletisse o fato de que os poemas épicos preservavam a memória de feitos originários da comunidade.
Os poetas líricos, porém, compreenderam que o que preservava a memória dos feitos da comunidade era a memorabilidade dos próprios poemas que cantavam tais feitos. Para eles, o feito mais memorável de todos era, portanto, o próprio poema. A memória da Guerra de Tróia era preservada, não tanto porque fosse, ela mesma, memorável, mas em virtude da memorabilidade do poema que a cantava, a "Ilíada".
Nesse sentido, as Musas eram filhas da Memória porque representavam a fonte da qualidade (divina) que tornava os poemas deles -mesmo quando não tratavam dos "grandes temas", mas apenas, por exemplo, dos seus amores- inesquecíveis, memoráveis, dotados de "eterno e irreprimível frescor".

9 comentários:

Anônimo disse...

Octavio Paz já dizia que, em nossos dias, a ruptura formava uma tradição. Nessa 'tradição da ruptura', vamos vivendo; nessa 'aceleração do tempo histórico', vamos perdendo contato com nossas Musas.

Leo Gonçalves disse...

eu gosto tanto desta discussão! a necessidade do novo tem levado não só quem faz arte (mas principalmente) a uma esterilidade desnecessária. não existe poesia sem tradição e o próprio pound, como poeta era um grande plagiador. talvez o grande achado dele tenha sido este: saber plagiar de um jeito novo. o make it new (é o próprio pound que lembra) já era um costume entre os trovadores provençais - que só consideravam plágio a imitação da forma (não se preocupando tanto assim com o conteúdo).
o "abc da literatura" é um dos livros mais didáticos que já li. e, sobre este assunto, ele afirmava: não há como conhecer algo sem lê-lo.
abraço,

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Essa é uma discussão muito interessante, e acho importante sua colocação de contextualização e relativização do esquema poundiano. Não é raro o uso desse tipo de esquema como pretexto para desqualificar determinadas obras ou autores. É mais fácil partir de noções pré-concebidas que exercitar efetivavemente nossa sensibilidade estética e raciocinar sobre as experiências dessa sensibilidade.

Já tive a oportunidade de externar, em outros comentários, minhas reservas em relação a comparações de valor entre obras e ainda mais entre autores. Isso tem um sentido prático: minha preocupação é, principalmente, conseguir escrever bons poemas (o que já tem sido bastante dificil). Assim, não me arrisco desnecessáriamente a tais avaliações. Não me interessa saber quem é o melhor poeta, mas apenas apreciar e saber identificar recursos interessantes usados por cada um. Nesse sentido, acho o livro de Poud extremamente significativo, como uma caixa (entre outras) de ferramentas para o poeta, não como um dogma.

grande abraço,
Lucas Nicolato

sandro so disse...

Caro Cícero, me parece que a sua citação de Isócrates marca a diferença entre a mentalidade clássica e a moderna em matéria de criação poética: a "tradição dos melhores" e a "tradição dos novos". A questão talvez seja até que ponto a modernidade, criando uma nova tradição, calcada em novos modelos, não se contradiz ao abdicar do novo. Ela não deixaria de ser modernidade (que poderíamos aqui aspear), e passaria a ser um classicismo (de classe, bem compreendido)? Tenho, cá de longe, a leve, bem leve impressão de que isso nos levaria a discutir, inclusive, a idéia de democracia moderna. Talvez esteja redondamente enganado.
Forte abraço
Sandro

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Eu iria tentar colocar um post concernente ao seu artigo. Todavia, preferi, se me permitires, embora já o tenha encaminhado antes pelo seu e-mail particular, anexar um texto que desenvolvi no meu blog. Não fala diretamente de poesia, mas na dialogia permanente com outros escritos. Penso que o novo não é o novo por ser novo, mas sim porque pode trazer um outro olhar: um ollhar de capitu, digamos assim, para as questões já caídas no tálamo do senso comum. Como somos seres históricos, penso, a meu ver, que seria quase impossível dialogarmos com o novo primevo.
Aí está o que penso sobre a filosofia, e, sobretudo, o que venho desenvolvendo bem ou mal sobre o Princípio da Identidade Negativa e O Paradoxo do Zero. Se, porventura, não quiser publicar, não haverá problemas. Encaminho esse texto no intuito de estabelecer justamente esse diálogo na sua ágora virtual.

Friday, September 15, 2006

31/01/2006 11:43

A Abdução de Peirce

Para quem acredita na Abdução de Peirce, pode, talvez, considerar o que desenvolvi no Paradoxo do Zero como Abdução. Eu mesmo, num primeiro momento, pensei que fosse. Mas, antes, para se ter uma Abdução é necessário ter todo um diálogo com outras teorias e outros escritos ou não. A filosofia, mormente, é um diálogo constante com outros textos. De maneira que o que escrevo tenta dialogar com 'verdades preestabelecidas'. Que há um insight, não poderemos negar. Que muitas vezes não passa por uma articulação lógica, não acredito. O problema do insight é que as articulações se fazem celeremente na mente, que nem mesmo o articulador acaba percebendo. Mas creio que haja odói (caminhos) muito bem traçados. Para isso, usamos de fragmentos de memória, de conceituações teóricas, dúvidas sistemáticas etc. Não penso na Abdução como uma dádiva divina que explode num determinado instante em alguém. Acho extremamente difícil alguém ter uma descoberta teórica sem se perguntar antes por essa mesma teoria. Falo tudo isso para demonstrar a necessidade de se estudar sempre. Na realidade o que se faz é uma amarração de conceitos teóricos. É antes de tudo colocar em xeque o que se diz e o que já se disse e confrontar a insustentabilidade de nossas novas argumentações. É não acreditar numa tradição de anos. É ter a coragem de ser ridicularizado como um intruso, um chato ou como um sabe-nada. Penso que, nessa época de velocidade e de outros escopos, não paramos mais para questionar. É mais fácil considerarmos tudo como certo e verdadeiro. Por exemplo: creio que nunca desabou nenhuma estrutura, só por considerarmos 1 x 0 = 0. E não estou dizendo que isso não seja verdade para a estrutura de um projeto de um Niemeyer. Não! Não digo isso. Até agora tudo tem funcionado muito bem. Adequadamente. E essa é um tipo de verdade pragmatista. Até que rompa a estrutura desse prédio. Se nossos antecessores nada vislumbraram, por que nós, meros brasileiros e pobres mortais, vislumbraríamos? Eu mesmo, quando mostrei alguns estudos ao meu querido pai, ele me respondeu: você acha que ninguém pensou nisso antes? Larga disso, você vai ficar louco com esse zero. O que você precisa é ganhar dinheiro... E não é que descobri naquele dia a minha primeira e real verdade! Que me ridicularizem hoje ou amanhã. Eu mesmo tenho muitas dúvidas e incertezas quanto às verdades de um Kant, Descartes, Charles Peirce e Wittgenstein.

muito obrigado



Escrito por wilson luques costa às 12h07

diniz .a gonçalves junior disse...

Drummond que vc cita com maestria na letra Virgem " os inocentes do Leblon não sabem de vc .. "

abraço

Antonio Cicero disse...

Caro Sandro,
Obrigado pelas suas observações.
Para mim, o que o exemplo de Isócrates mostra é que essas questões já preocupavam os gregos, logo, não pertencem exclusivamente à nossa época.
Não penso que a modernidade crie uma nova tradição. Ela expande, complica e também dá continuidade à tradição já existente. A modernidade é uma abertura não apenas para o presente, mas também para o passado e o futuro. Ainda lemos Homero, Virgílio, Dante, Camões... Não se trata, por isso, nem de abdicar do novo, nem de cultuá-lo. É moderno reconhecer que o novo não é o critério moderno da excelência, como muitos, equivocadamente, chegaram a pensar. E é moderno saber que tal critério simplesmente não existe.
Abraço,
Antonio Cicero

Anônimo disse...

Como você mencionou, usando as palavras de Picasso: "Não busco, encontro".
É assim que a poesia - a arte como um todo - se faz. Encontro visceral do poeta, artista, com sua arte. Embora a eterna procura seja latente...

Abraço da
Sônia Barros

léo disse...

dois poemas:

VIDA DIFÍCIL



O nascimento da obra

na dobra

da toca

da cobra



ESCREVO AGORA
como quem namora
como quem descobre
um mundo novo
um corpo nu
sob os lençóis