O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007:
O segredo grego
VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da cultura clássica ao publicar "Black Athena" ("Atena Negra"), em que defende que grande parte da cultura grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo. A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro -de menor importância, mas que justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas idéias sejam absolutamente novas. Elas correspondem, de acordo com ele, a uma revisão do que denomina o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do Egito. O "modelo antigo", comenta Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa época, ao se constituir a disciplina moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da influência egípcia e semítica sobre a Grécia. Segundo Bernal, isso se deu principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia, agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por africanos e asiáticos, que, para a nova 'ciência racial', haviam passado a ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão. Como poderia esta influenciar aquela? Lembro que foi, de fato, esse o modelo que aprendi nas aulas de história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo ariano. Entretanto, o seu próprio "modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus momentos mais extremos, afirma, por exemplo, que a cultura grega foi roubada da egípcia. Pois bem, longe de se dissociar de tais tolices, Bernal declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que está na moda, "apropriação", mas a palavra "roubo" não é inteiramente inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação não é eufemismo para roubo. Roubo é uma apropriação ilícita, em que o proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas, tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa originalidade não se deveu a "raça" nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão sem dúvida fundido a outras etnias no verdadeiro crisol étnico que era o Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito sem lei e irreverente" dos príncipes aqueus da idade heróica deve-se ao fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral, ao mesmo tempo que desprezavam as religiões dos povos conquistados, exatamente por serem religiões de povos conquistados. Pois foi mais ou menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega, abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres, tanto de qualquer Igreja quanto de qualquer Estado central.
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9 comentários:
O MB me parece estar tentando transformar uma história complexa em uma fábula ideológica simples. Também já encontrei este tipo de paroquialismo em outros contextos ligeiramente diferentes. Por exemplo, tenho um amigo iraniano que garante que toda e qualquer contribuição da civilização árabe foi 'roubada' dos Persas. E na cosmologia, existe algo (o quê exatamente não vem ao caso aqui) chamado 'Métrica de Friedmann (Russo) - Lemaitre (belga) - Robertson - Walker (americanos)'. É quase cômico ver como as várias permutações destes quatro nomes são usadas hoje por seus conterrâneos segundo critérios claramente nacionais.
Caro Cicero,
saudades me trouxeram. E tive a felicidade de ler o que você trocou com Lucas Nicolato, que, por puro acaso, foi, s não me engano, aluno meu por um breve uns dois meses há uns dez anos atrás.
O mais curioso é que o tema de suas trocas tange diretamente um dos meus sonetos do próximo livro. Eu diria que é o soneto em que mais me aproprio de sua linguagem. Ei-lo:
O real é um desperdício, eis o que a física
formula, dos confins do espaço ao âmago
vibrátil da matéria, tênues cordas
compostas de equações imponderáveis
às especulações humanas tangem
uma harmonia que ainda não podemos
ouvir - surdos, capazes de somente
soletrar os ruídos de uma estrela,
somos o fogo fátuo e sem sentido
de um acidente, ecos de um acaso
incontornável que se reproduz:
não encontramos deus, amor, sequer
silêncio, a imensidão é inesgotável
como uma flor repleta de explosões.
Forte abraço,
Marcelo Diniz
Que bela visita, Marcelo! Seja benvindo! E parabéns pelo poema, que é muito bonito.
Gostei da coincidência de você reencontrar um ex-aluno no meu blog. Lucas é um excelente intelocutor.
Grande abraço,
Antonio Cicero
Caro Antônio,
Interessante o seu artigo. Realmente, não faz sentido falar em "roubo" de elementos de uma cultura. Podemos dizer que foram roubados do Egito diversos bens culturais ao longo dos últimos séculos. Mas utilizar alfabetos, mitos, línguas, filosofia de outros povos não é roubo, e sim consagração e divulgação. E certamente os gregos souberam aproveitar de forma criativa a diversidade cultural em que viviam.
Muito bom ver o comentário do Marcelo acima. Aquelas poucas aulas dele fizeram uma grande diferença em meu interesse por poesia e filosofia. Espero poder ler novos comentários dele por aqui também.
um abraço,
Lucas Nicolato
POsso utilizar trechos do ensaio:
HÉLIO OITICICA E O SUPERMODERNO
Em um trabalho para a disciplina História do Teatro, que frequento na Universidade de São Paulo, pela graduação de Artes Cênicas?
Obrigado
MOishe
Pode, Moishe,
desde que você cite a fonte, isto é, faça referência ao ensaio em questão.
Abraço,
Antonio Cicero
Olha,o Antônio Cícero,um dos meus poetas preferidos,tem blog tbm...
Desculpe o meu linguajar,mas,caraca curti muito!Ainda mais com este título Acontecimentos,nome de uma das minhas músicas preferidas,das mais lindas q vc e Marina fizeram;)
Enfim,parabéns pelo blog,pelos textos,por tudo!!!Voltarei!
Beijos,
Carol Luisa.
Prezado Antonio Cicero
O seu excelente artigo vem colocar como a história é manipulada. A cultura é permeável as influências que fazem o avanço do conhecimento.
Existe um teoria que a cultura egípcia teria vinda da cultura do povo de atlâtida o continete perdido.
Um grande abraço
Oi professor, talvez valha a pena fazer um ensaio maior sobre esse tema agora que o afrocentrismo tem um apelo mais forte no Brasil.
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