O seguinte artigo foi publicado sábado, 1º de junho, na minha coluna da Folha de São Paulo:
Poesia e filosofia
Assim são os poemas: objetos de palavras, com seus sentidos, sons, referentes, ritmos, ecos
EXISTE, ENTRE muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia.
Um poema quer, em primeiro lugar, ser uma obra como qualquer outra obra de arte. Pensemos num dos quadros em que Rembrandt retrata um velho. O velho é um dos elementos do quadro. Não podemos mais saber se o retrato lhe é fiel; não sabemos sequer se esse velho realmente existiu.
Tudo somado, o que realmente conta é o que Rembrandt fez, não só com o velho, mas com os demais objetos retratados, e com as luzes, as sombras, as cores, as linhas, os planos, os volumes etc. O quadro solicitará de nós a imaginação, a memória, o intelecto, a emoção, a cultura, a sensibilidade, talvez até o humor. Todas essas coisas brincarão umas com as outras no nosso espírito. No final, o quadro não é sobre o velho, embora o velho faça parte de tudo o que o quadro é.
No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, o quadro existe para ser um objeto sobre o qual e a partir do qual nós pensaremos e falaremos.
Pois bem, assim são os poemas: objetos de palavras, com todos os seus sentidos, seus referentes, seus sons, seus ritmos, suas sugestões, seus ecos. À primeira vista, eles nos falam, por exemplo, sobre uma pedra que havia no meio do caminho. Mas eles não são, no fundo, feitos para falar sobre pedras ou sobre coisa alguma. Ao contrário: como os quadros, eles são feitos para que nós pensemos sobre eles, e para que pensemos a partir deles com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Nada mais longe disso do que a filosofia. Se o poema não quer ser um pensamento sobre objeto algum, mas quer ser um objeto do pensamento, a filosofia quer ser o pensamento da totalidade dos objetos, sem ser objeto de pensamento algum: a não ser do próprio pensamento filosófico, isto é, da filosofia mesma.
Enquanto o valor do poema não é dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo quando a coisa de que fala seja a própria filosofia.
Enquanto um poema, sendo um objeto, não pode ser dito em outras palavras sem passar a ser outro objeto, isto é, outro poema, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras: tanto assim, que falamos da filosofia de Sócrates, sem que suas palavras tenham sobrevivido.
Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que ele diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes. Já os discursos -eles mesmos filosóficos- sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que este tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com que o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras.
As grandes intuições filosóficas são poucas, e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, voltamos a eles como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente.
São essas algumas das razões pelas quais penso que esses dois pólos do pensamento, a poesia e a filosofia, não podem ser reduzidos um ao outro.
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13 comentários:
Tive o privilégio de assitir à sua palestra em Lisboa na Fundação Gulbenkian e queria dizer-lhe que gostei muito... tenho mesmo de ler Montaigne, apenas li alguns excertos do ensaio dos canibais.
fui eu quem lhe perguntou o que achava do actual debate em torno do multiculturalismo. a sua resposta veio ao encontro da minha própria impressão.
gostaria de saber se a palestra virá a estar disponível em versão escrita.
os meus cumprimentos, e mil desculpas por estar a escrever algo que não tem a ver com o texto aqui publicado.
oi antônio, sempre tem uma salvação pra um domingo chuvoso, deparar com seu blog ao acaso pode ser uma delas. sua perspectiva neste texto é não somente interessante, mas bastante autorizada: talvez seja preciso transitar firmemente por esses dois tipos de práxis para compreender seu real engenho e dimensão.
o que fiquei me perguntando é se o embaçamento das fronteiras entre os discursos e disciplinas com que lidamos hoje não nos leva também a um contínuo reexame deste objeto a que o seu texto alude, objeto que sempre é para um sujeito, que se coloca para ele como uma realidade cognitiva a ser decifrada. penso nisso pela sua citação a rembrandt e por lembrar que, na marcha evolutiva das artes plásticas, a profunda crise de representação com que a fotografia anunciou a chegada da modernidade só pôde ser superada quando a noção de obra cedeu a vez à idéia de processo.
penso que talvez aos poemas não esteja mais sendo muito confortável essa condição de obra, talvez eles estejam também à caça da mecânica dispersa dos processos, queiram ser objetos do pensamento disfarçados como uma linguagem cotidiana de reencantamento do mundo.
entre a poesia e a filosofia se colocam fendas ontológicas claras (que seu texto, aliás, colore com precisão). mas o cruzamento de suas fronteiras me parece fazer parte de uma crise generalizada das narrativas contemporâneas: aos poucos, temos descoberto com quantas tensões se constrói um discurso.
um abraço e parabéns pelo blog.
embora eu jamais tenha pansado a respeito de união filosofia-poesia, sinto existir a pressão. tendo lido o que você escreveu, tomei partido e posição. obrigada pela claridade. poesia e filosofia são manifestações distintas. uma é forma a outra pensamanto.
Caríssimo Antonio Cicero,
seu último texto na Ilustrada me provocou a mais um diálogo. Não por se tratar de uma questão presente em nossas conversas, nem pela ironia dele ser publicado no momento exato em que lanço tanto o "Pelo Colorido, para além do Cinzento" quanto “A Fronteira Desguarnecida”, ambos conhecidos por você, nos quais a respectiva questão está presente através do que chamo de indiscernibilidade ou de desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, mas porque, nele, me sinto diretamente implicado a partir da abertura, quando afirma que “existe, entre muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia”. Não há como não me sentir duplamente implicado nesses que cometem o “erro”, também porque, se seu texto é uma colagem de um ensaio já publicado, esse começo foi inserido agora, como algo novo, especialmente para o jornal.
No que toca à construção séria de um pensamento filosófico ou poético, falar em “erro” me parece, desculpe-me o retorno da triste palavra, o único “erro” possível. Não considero “erro” “a vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia...” nem, tampouco, o seu caminho de repulsão entre elas. Tais posições são experimentações criadas por uma tática que quer manifestar, de maneira intensa, o que mais nos afeta. Entendendo ambas como pertinentes, não vejo minha posição como mais “acertada” ou mais “errada” do que a sua. Em uma entrevista de 2003, para o Nonato, sobre o mesmo assunto, você já havia falado, agressivamente, em “teorias literárias pseudo”, “ressentimento da teoria literária contra as pretensões constitutivas da filosofia”, cujos resultados são “péssima poesia e pior filosofia”.
Como, na entrevista e no texto recente, defendendo-se, você não explicita a quem se refere, e como, no Brasil, não conheço nenhum poeta e ensaísta contemporâneo que venha encampando a questão tão explicitamente quanto eu, tematizando-a e buscando “passar impercetivelmente de uma para a outra” em livros de poemas, ensaios, entrevistas, resenhas (inclusive na sobre A Cidade e Os Livros e em todas as outras), palestras, aulas etc., me passa pela cabeça que suas indicações devem se referir também a mim. Estou incluído, senão no particular (não posso ter certeza disso já que você, numa tática defensiva e complicada, se esquiva repetidamente de dizer a quem se refere), ao menos, no geral de suas colocações. Para a abordagem pessoal e teórica ganhar mais clareza, seria importante você explicitar a quem se refere, porque pode estar brigando com um fantasma que não existe a não ser em você mesmo.
O que me leva a crer nisso é o fim de seu texto, no qual diz pensar “que esses dois pólos do pensamento não podem ser reduzidos um ao outro”. Nunca se tratou de querer “reduzir” a poesia à filosofia nem esta àquela, o que seria uma tolice incrível. Bem como todos que transitam dignamente nesta área, busco alargamentos e desdobramentos em que, sem apagar as diferenças, zonas de indiscernibilidades possam ser criadas, como já foram desde o começo da história ocidental. É absolutamente normal que cada um de nós privilegie o foco que mais nos interesse; o que me parece um “erro” é unicamente chamar a posição alheia de “erro”, “teorias pseudo”, “péssima poesia e pior filosofia”, sobretudo, sem dar nome aos bois... E inventar o fantasma de uma “redução” onde ele não existe.
Teria muito a dizer sobre o miolo de seu texto, onde se ancora seu pensamento. Como você sabe, temos posições divergentes e sempre respeitosas, com as quais já nos divertimos muito, mas não é o caso de vir a isso aqui, pois ali você coloca seu pensamento sem buscar a diminuição do alheio, a quem quer que seu texto se direcione. Deixarei isso para uma outra hora, para uma conversa mais teórica entre nós. Fiz essa carta para que o diálogo entre nós se realize no âmbito do pessoal, ainda que, postando-a, como sugestão sua em resposta a um email meu, também se dê na espera pública. Escrevi um outro texto, mais teórico, mais “público” sobre seu artigo, que em outro momento enviarei a você.
De seu amigo,
Alberto Pucheu
Olá, concordo com sua opinião,
pois quando me envolvo com a poesia, seja escrevendo, seja lendo, procuro isentar-me de teorias (inclusive - e principalmente - literárias), ao mesmo tempo seria inadmissível tratar de textos filosóficos através de versos, por exemplo.
No entanto, me parece que a posição de alberto, que vestiu a carapuça, não é exatamente de misturar tudo, mas de criar "zonas de indiscernibilidades", uma terceira coisa, pois. E não podemos esquecer que Fernando Pessoa às vezes fazia isso, e o próprio Drummond o fez em Claro Enigma. Em contrapardida, Montaigne e Nietzsche, para citar só dois, eram um tanto líricos. Acho que não precisamos temer tal coisa, pois a academia é conservadora e a arte vanguardista, o espaço de uma dentro da outra sempre será pouco. É óbvio que identifico a filosofia com a coisa acadêmica e de sobrevivência e a poesia com a coisa artística e de ócio. Enfim, queria dizer que sou seu admirador.
Caro Antonio, parabéns pelo artigo!
A única coisa que gostaria de observar é que a diferença entre a poesia e a filosofia reside na natureza dos signos utilizados (como eu já havia obsevado em outro comentário neste blog). A poesia tende ao icônico e, portanto, ela faz uso de um signo intrinsicamente ambíguo, signo este que não pode ser utilizado no discurso filosófico, posto que este discurso não pode permitir ambigüidades. Afinal, não se chega à(s) verdade(s) por meio de ambigüidades.
É isso.
Abrações
Caro Antônio,
Concordo plenamente com sua afirmação de que poesia e filosofia não podem ser reduzidos uma à outra. Isso não significa, contudo, que a tentativa de união dos dois ofícios seja impossível ou necessariamente prejudicial. Um bom exemplo seria Nietzche, que produziu muitos textos igualmente poéticos e filosóficos. Ao meu ver não parece que a forma poética, valiosa em si, diminua o valor das teses defendidas pelo autor no texto, embora provavelmente essa não seja mesmo a forma mais propícia a uma discussão teórica rigorosa. Seria tão difícil negar a importância da filosofia de Nietzche quanto negar a beleza do seu Zarathustra, em que expõe de forma sintética sua visão de mundo. O mesmo se aplica a muitos outros textos da literatura universal, incluindo a bíblia e outros livros sagrados.
De fato, como você mesmo explicou, o texto original pode não explicar o assunto tratado da forma mais clara, o que será particularmente verdade em "poesia filosófica". Assim, um texto filosófico ou científico pode ser escrito em versos ou canções, como nos mostra a grámatica do sânscrito de Pânini, e talvez seja menos eficiente enquanto elucidador das questões levantadas, mas não deixa de ser, também, um texto científico ou filosófico. O verdadeiro erro está em não entender que a filosofia e a poesia constituem sim, funções diferentes, às vezes antagônicas, que, embora possam estar presentes no mesmo texto, requerem interações leitor-texto radicalmente diferentes. Tal observação é válida também com relação a outras funções do texto, como a narrativa histórica, a legislação e outras, muitas vezes cristalizadas ao longo dos séculos em formas poéticas.
O recurso poético é utilizado como ferramenta de reprodução do texto, isto é, propaganda, de forma similar à utilizada pela publicidade contemporânea. Dificilmente teriam chegado a nós muitas das obras de pensamento, se não estivessem vestidas em uma forma atraente e bela em si mesma, que estimulasse a sua reprodução e leitura. Muito frenquentemente, na verdade, é a beleza formal do texto, muito mais do que a qualidade de seus argumentos, que o põe em evidência, criando o terreno para a discussão filosófica das teses nele defendidas.
Além disso, restaria enumerar os motivos pelos quais a filosofia pode muito bem auxiliar um texto poético, mas creio que o já exposto é suficiente para esclarecer minha posição e meus questionamentos.
um abraço,
Lucas Nicolato
Caro Antonio, considero asua postura um pouco dura por não perceber que as maiores obras poéticas são incrivelmente filosóficas, mesmo quando não buscam o formato de prosa. E há muitas obras filosóficas incrivelmente poéticas pela beleza de sua escrita. Logo poesia e filosofia podem andar também de mãos juntas!
abraços
italo calvino sobre tonino guerra (no posfácio de “O Mel”, Assírio & Alvim, 2003):
“Tudo para Tonino se transforma em conto e em poesia: em viva voz ou por escrito, nas sequências do cinema, na prosa ou em verso, em italiano ou romagnolo. Há sempre uma história na sua poesia; há sempre poesia em todas as suas histórias. E poesia quer dizer uma experiência precisa, concreta, inesperada, cheia de sentimento e com a acentuação de uma voz que nos fala.”
é verdade que, como penso que o cicero sugere, procurar “a acentuação de uma voz que nos fala” é a razão porque lemos um texto filosófico original, porque mesmo que ele seja “inadequado ao que tenciona dizer (...) é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito”;
mas “a acentuação de uma voz que nos fala” é também, precisamente, aquilo que, como salienta cicero, não temos de sócrates (só dos que falam dele) - o que não nos impede de ter a sua filosofia. a filosofia socrática não tem voz, mas existe - e isto seria impossível com poesia.
agora, o que me parece, é que isto não tem necessariamente que significar que um poema não possa, ou não deva, ser filosófico, ou que um texto filosófico não possa, ou não deva, ser poético (ou ainda que esses híbridos sejam sinais de “crise”) – significa, isso sim, que se o texto (ou gravação) desaparecer, sobra, na melhor das hipóteses,
só a filosofia.
a filosofia vem da poesia.Certo que a poesia não é caixa fechada é aberta e como uma bela prostituta ela vai para cama com quem quiser.
foi assim com o romantismo, concretismo e tantos outros momentos, a poesia é uma maravilhosa quemga. A filosofia hoje tá mais para auto-ajuda, perdeu sua função, só existe em manuais acadêmicos ou em quatros chatos de programente domingueiros...mas há ainda salvação.
Fala-se mais de filosofia do que se pensa filosofia.
filo-so-fos?
têm muitos por aí, ruminando o que já foi dito e dizendo que o pensamento do sec XIV é ainda importante para nós.
Deve ser uma delícia escrever com tanto esmero e dedicação e ver saltitando tantos discursos tão cheios de conteúdo.
Eu gosto igualmente de filosofia e poesia, mesmo admitindo, sem vergonha alguma, que a primeira delas me é mais difícil de "digerir".
Gosto muito desse exemplo que você dá sobre Rembrandt, eu também vejo exatamente assim. Uma obra de arte só tem significado a partir dos nossos olhos, né? Cada um com a sua viagem...
Beijo
Cicero, o que admiro em você é que seu texto sente a obrigação de querer colocar cada coisa em seu devido lugar, talvez porque o mundo já esteja escrito.
Tenho algumas objeções sobre o que vc diz sobre a poesia, meros detalhes que renderiam uma longa discussão, mas sobre a filosofia é aquilo mesmo o que penso.
Antonio , parabéns pelo seu blogg , adoro a filosofia dentro do poema acho que é muito prazeroso e no minimo instigante !
www.artwel.multiply.com
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