29.10.19
27.10.19
Fernando Pessoa: "Ulisses"
Ulisses
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
PESSOA, Fernando. "Ulisses". In:_____. Mensagem. Lisboa: Ática, 1972.
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Poema
25.10.19
Cecília Meireles: "Canção"
Canção
Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
– e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo de se acabar.
Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.
Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa,
Chorar sem protesto. Chorar.
MEIRELES, Cecília. "Canção". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.
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Poema
21.10.19
Johann Wolfgang von Goethe: "Wonne der Wehmut" / "Deleite na tristeza": trad. por Paulo Quintela
Deleite na tristeza
Não sequeis, não sequeis,
Lágrimas do eterno amor!
Ai! Já aos olhos meio enxutos
Como o mundo parece ermo e morto!
Não sequeis, não sequeis,
Lágrimas do infeliz amor!
Wonne der Wehmut
Trocknet nicht, trocknet nicht,
Tränen der ewigen Liebe!
Ach! nur dem halbgetrockneten Auge
Wie öde, wie todt die Welt ihm erscheint!
Trocknet nicht, trocknet nicht,
Thränen unglücklicher Liebe!
GOETHE, Johan Wolfgang von. "Wonne der Wehmut" / "Deleite na tristeza". In:_____. Poemas. Organização e tradução por Paulo Quintela. Coimbra: Centelha, 1979.
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Poema
20.10.19
19.10.19
Antonio Cicero: "A morte de Arquimedes de Siracusa"
A morte de Arquimedes de Siracusa
Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do
períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus
círculos!
CICERO, Antonio. "A morte de Arquimedes de Siracusa". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
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Poema
17.10.19
Carlos Drummond de Andrade: "Sentimento do mundo"
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Sentimento do mundo". In:_____. "Sentimento do mundo". In:_____. Poesia 1930-62. São Paulo: Cosac Naify, 2012
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Poema
16.10.19
14.10.19
Francisco Alvim: "Nada, mas nada mesmo"
Nada, mas nada mesmo
tem a menor importância
Nem antes
Nem depois
Nem durante
ALVIM, Francisco. "Nada, mas nada mesmo". In:_____. O metro nenhum. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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Poema
12.10.19
Wisława Szymborska: "Visto do alto": trad. de Regina Przybycien
Visto do alto
Um besouro morto num caminho campestre.
Três pares de perninhas dobradas sobre o ventre.
Ao invés da desordem da morte – ordem e limpeza.
O horror da cena é moderado,
o âmbito estritamente local, da tiririca à mente.
A tristeza não se transmite.
O céu está azul.
Para nosso sossego, os animais não falecem,
morrem de uma morte por assim dizer mais rasa,
perdendo – queremos crer – menos sentimento e mundo,
partindo - assim nos parece - de uma cena menos trágica.
Suas alminhas dóceis não nos assombram à noite,
mantêm distância,
conhecem as boas maneiras.
E assim esse besouro morto no caminho,
não pranteado, brilha ao sol.
Basta pensar nele a duração de um olhar:
parece que nada de importante lhe aconteceu.
O importante supostamente tem a ver conosco.
Com a nossa vida somente, só com a nossa morte,
uma morte que goza de forçada precedência.
SZYMBORSKA, Wisława. "Visto do alto". In:_____. Um amor feliz. Seleção e tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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Wisława Szymborska
11.10.19
7.10.19
Fernando Pessoa: "Mar Português"
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
PESSOA, Fernando. "Mar Português" In:_____. Mensagem. Org. de Cleonice Berardinelli, Maurício Matos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
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Poema
4.10.19
Manuel Bandeira: "Andorinha
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
– “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
BANDEIRA, Manuel. "Andorinha". In:_____. "Libertinagem". In:_____. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1966.
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2.10.19
Vielimir Klébnikov: "Uma vez mais, uma vez mais": trad. de Augusto de Campos
Uma vez mais, uma vez mais
Sou para você
Uma estrela. Ai do marujo que tomar
O ângulo errado de marear
Por uma estrela:
Ele se despedaçará nas rochas,
Nos bancos sob o mar.
Ai de você, por tomar
O ângulo errado de amar
Comigo: você
Vai se despedaçar nas rochas
E as rochas hão de rir
Por fim
Como você riu
De mim.
KLÉBNIKOV, Vielimir. "Uma vez mais, uma vez mais". Trad. de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris (organizadores e tradutores). Poesia russa moderna. São Paulo: Perspectiva, 2012.
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