18.6.18

Entrevista de Eduardo Giannetti a Felipe Betim, do EL PAÍS



Recomendo a leitura da seguinte – excelente – entrevista do economista e filósofo Eduardo Gainnetti. Ela foi originalmente publicada na edição portuguesa do jornal espanhol El País (https://brasil.elpais.com), em 14 de junho de 2018. O entrevistador é Felipe Betim, do El País. No seu site original, o endereço da entrevista é: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/05/politica/1528235313_705168.html


El País
Eduardo Giannetti | Economista e filósofo

Giannetti: “O ritmo de retomada desaponta, mas não sei onde estaríamos com Dilma”

Economista e filósofo assessora Marina Silva, a quem julga a mais comprometida com o país.
Para Eduardo Giannetti, Temer tinha um bom plano de Governo, mas só faz sobreviver desde 2017

São Paulo 14 JUN 2018 - 03:14 CEST

Quando lançou em 2016 o livro Trópicos Utópicos (Companhia das Letras), Eduardo Giannetti da Fonseca (Belo Horizonte, 1957) idealizava um Brasil que se apresentasse como alternativa aos modelos já conhecidos e uma nação que, pautada por seus próprios valores, percorre seu próprio caminho rumo ao desenvolvimento. O economista e filósofo retoma e se aprofunda no tema ao lançar agora O elogio do vira-lata e outros ensaios, uma coletânea de textos escritos entre 1989 e 2018 que reflete as mudanças pessoais pelas quais passou: "Eu era um jovem pesquisador com a pretensão de contribuir com o debate de ideias para a modernização do Brasil. Achava que o país precisava de uma injeção de liberalismo clássico", diz ele. "Hoje, me preocupa mais a construção de um Brasil que não seja uma cópia piorada dos países do norte. Me instiga a construção de uma originalidade brasileira diante de um mundo ocidental que não oferece mais sonhos e promessas de mudança genuína".

Assim, a primeira parte do livro, intitulada Enredos Brasileiros, fala sobre aspectos da psicologia brasileira, grandes questões nacionais e suas preocupações com a cultura. Ele aborda, por exemplo, o conhecido complexo de vira-lata do brasileiro e faz uma defesa de sua "condição de vira-lata". Também aborda o que chama de paradoxo do brasileiro. "Cada brasileiro, quando olha para si, se sente muito diferente e acima de tudo isso que aí está. Mas todos nós juntos somos exatamente tudo isso que aí está. É como se o brasileiro fosse o outro, sempre, e ninguém se reconhece no coletivo que somos nós juntos", explica.

Giannetti é também, junto com o economista André Lara Resende, colaborador da pré-candidata Marina Silva (REDE). Ao EL PAÍS, argumenta que a greve dos caminhoneiros mostrou que "a sociedade brasileira não tolera mais um sistema de governo em que o Estado dá a entender que a sociedade existe para servi-lo, e não o contrário". Ele critica uma política de preços da Petrobras baseada em reajustes diários de acordo com a cotação do dólar e os preços internacionais do Petróleo, algo "tecnocrática e de desconhecimento da vida comum".

Pergunta. Um dos seus textos no livro que você acaba de lançar é uma resenha de um livro do Roberto Mangabeira Unger sobre o que a esquerda deveria fazer. O que acha que ela deveria fazer?

Resposta. A minha grande bandeira, aspiração, é um Brasil em que a condição social, a condição de gênero, a condição de etnia em que a pessoa nasce não a prejudique de nenhuma maneira. Que ela tenha absoluta igualdade de oportunidade para a formação de suas capacidades de modo que ela tenha uma vida a mais plena possível. Estamos muito longe disso no Brasil, mas o caminho é a igualdade de oportunidades. Não me incomoda que as pessoas tenham desigualdade na chegada, desde que a igualdade tenha existido na partida. As pessoas tem valores diferentes, tem sonhos diferentes... Nem todo mundo, felizmente, está disposto a sacrificar tanto a vida em nome de valores financeiros e econômicos. As pessoas são diferentes e é bom que assim seja.

P. Mas a desigualdade na chegada tem que ser tão grande como é hoje no Brasil?

R. A desigualdade na chegada brasileira é totalmente viciada e deturpada por uma obscena desigualdade na partida. E isso envenena as relações sociais no Brasil. Elas são tóxicas. A maneira de corrigir isso é buscado uma equalização da igualdade de oportunidades. E temos que concentrar tudo o que for possível para corrigir essa distorção que nos acompanha desde nossa origem como nação. Mas, hoje, o estado brasileiro é um grande concentrador de renda.

P. Você está assessorando outra vez a Marina Silva [pré-candidata a presidência pela REDE]? Que papel terá em sua campanha?

R. Eu me dispus a ajudar na formulação de propostas. Estou contribuindo com o que eu puder para que isso aconteça. Fiquei muito feliz de estar trabalhando nesse projeto com uma pessoa que admiro enormemente, o André Lara Resende. Ele também está se dispondo com a formulação de propostas e ideias que possam ser implementadas por um Governo Marina.

P. No que diferencia a Marina Silva de outras candidaturas consideradas liberais, como a de Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (MDB) ou João Amoêdo (NOVO)?

R. Estou acompanhando e colaborando com a Marina Silva desde 2010. Uma liderança como a dela é rara em qualquer lugar do mundo, porque é calcada em compromisso ético. Nenhum outro líder político brasileiro tem um grau de comprometimento com ética como a Marina Silva. Ela é a única capaz de trazer para o centro da agenda duas questões definidoras do nosso futuro: educação e meio ambiente. Economia é meio, não é fim. O importante é deixar nossa economia organizada para que nós possamos concentrar nossas atenções, como governo e como nação, naquilo que definirá nosso futuro. Não vejo ninguém mais apto e preparado a fazer esse projeto de estadista, de futuro, e com os valores corretos, do que Marina Silva.

P. Acabamos de sair de uma longa greve de caminhoneiros. Que balanço e que lições você faz dessa paralisação?

R. Me dei conta nesses últimos dias das semelhanças entre junho de 2013 e maio de 2018. São movimentos que começam localizados em torno de questões aparentemente muito setoriais: os 20 centavos, os 46 centavos. Transporte. São movimentos que rapidamente ganham a sociedade. A adesão é fortíssima e rápida, e acho que as novas tecnologias têm papel nisso. O sentimento todo da sociedade se mobiliza. E realmente toma conta do cenário. Não tem muita liderança centralizada, se espalha rapidamente e coloca o governo contra a parede. E depois tem uma dinâmica em que grupos minoritários radicais e violentos passam a tentar instrumentalizar o movimento. Os black blocs lá, e os pedidos por intervenção militar agora. A dinâmica é parecida. Por trás dos dois casos está um sentimento de que a sociedade brasileira não tolera mais um sistema de governo em que o Estado dá a entender que a sociedade existe para servi-lo, e não o contrário. Nós transferimos para os governantes, para o Estado brasileiro, uma fatia enorme do resultado do trabalho. A carga tributária é de 34% do PIB, o déficit nominal é 6% do PIB, o que significa que 40% de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros transita pelo setor público. E a sociedade não vê contrapartida. Metade dos domicílios não tem nem sequer saneamento básico, a coisa mais elementar de uma vida digna. Como a educação fundamental, a saúde pública, a segurança, o transporte coletivo continuam tão precários? Tem alguma coisa profundamente errada nas finanças públicas brasileiras. A tentativa que vem sendo feita de 1988 pra cá, de acomodar a pressão para os gastos pelo aumento da carga tributaria, sistematicamente, esgotou. Acabou o ciclo de expansão fiscal. Então vamos ter que entrar em outro tipo de jogo. O que está por trás disso é uma demanda de mudar profundamente o modo como o Estado brasileiro direciona os recursos. Outro elemento fundamental desse sentimento de revolta hoje foram as revelações da Lava Jato, que mostrou como nunca antes o modo de se fazer política.

P. Se você estivesse dentro do governo, como resolveria a questão? Que política de preços a Petrobras deve adotar?

R. Não sou um pessoa boa de formulação e execução. Não me meto no Executivo e não é meu perfil. Mas uma coisa bem especifica e técnica é que acho uma maluquice corrigir preço do derivado do petróleo todos os dias, de acordo com dois preços altamente voláteis como o preço do petróleo no mercado internacional e o regime de cambio flutuante. Isso é uma ideia tecnocrática e de total desconhecimento da vida comum. A governança das estatais melhorou dramaticamente, acho que eles estão fazendo um trabalho muito bem vindo de profissionalização da gestão. Mas no caso específico da metodologia de correção dos derivados do petróleo, eles foram tecnocráticos e equivocados. Nós vamos de um extremo ao outro, porque antes a Dilma era de um intervencionismo desastrado. De repente, vamos para um fundamentalismo de mercado que torna o preço do gás de cozinha, do diesel e da gasolina um ativo financeiro, que varia fortemente para cima e para baixo todos os dias. Precisamos ter realismo tarifário, mas também um suavizador.

P. A paralisação mostra algumas contradições e complexidades. As pessoas querem menos impostos e mais serviços públicos universais. Apoiam a greve dos caminhoneiros, mas não aceitam pagar a conta.

R. Já está pagando muito mais do que deveria. No caso do preço médio dos remédios, 36% é imposto. Na gasolina e no diesel chega a ser mais do que isso. Não dá mais para acomodar os conflitos aumentando a carga tributária, isso chegou no limite. Precisamos repensar agora por que um Estado pelo qual transitam 40% do valor criado pelos brasileiros não atende as necessidades mais elementares das políticas públicas. O Bolsa Família é meio por cento do PIB, é a migalha que cai da mesa. E olha o impacto que isso tem na vida de milhões de brasileiros.

Uma das questões que tem que ficar claro é o sistema de castas da previdência brasileira. O benefício médio de aposentadoria do INSS, para o cidadão comum, é de 1.300 reais comum. Esse valor sobe, no Executivo federal, para 7.000 reais por mês. No Legislativo, são 16.000 reais por mês. No Judiciário, são 27.000 reais por mês. De média. Isso aqui é o antigo regime. Não fizemos no Brasil o equivalente da revolução francesa e americana, que começa com o lema “no taxation without a representation”. A gente não virou esse jogo no Brasil. Os governantes ainda agem como se a sociedade existisse para servi-los.

P. E como você acha que essa questão tributária tem que se resolver? Qual é a reforma desejável?

R. O sistema tributário brasileiro cobra desproporcionalmente de quem menos pode pagar, porque ele está calcado em impostos indiretos. E quem mais poderia e deveria estar pagando impostos consegue driblar as tentativas do fisco de taxar. Temos que caminhar para um sistema tributário menos calcado em impostos indiretos, que incidem no bolso de quem ganha menos, e um sistema mais calcado em renda e, em alguma medida, patrimônio, riqueza. O Estado brasileiro é regressivo na tributação e em grande medida regressivo no gasto. Na Previdência, o déficit de 4,2 milhões de aposentados do setor público é do tamanho do déficit da Previdência dos 29 milhões do INSS. É o sistema de castas. O gasto público em educação no Brasil está em torno de 6%, isso é mais que a média dos países da OCDE e mais do que a média de nossos pares na América Latina. Como você explica um gasto tão alto e resultados educacionais tão ruins no Pisa? Porque uma fatia muito importante do gasto público é capturado pelos mais ricos no ensino superior. O sujeito faz o fundamental e médio na escola particular cara e, quando chega na parte mais cara de sua educação, ele passa a contar com subsídio tributário que financia sua educação.

R. Quem já pagava pelo ensino fundamental e médio deve continuar pagando. E quem não puder pagar pelo ensino superior, ganha uma bolsa de estudos.

P. Você costuma dizer, na área fiscal, que precisamos de menos Brasília e mais Brasil. O que isso significa?

R. Em 1988 se optou pelo modelo do Estado federativo. O regime militar era centralizado, e optamos por descentralizar. Princípio perfeito. Mas, na prática, transferiram para os estados e municípios as atribuições do setor público, mas mantiveram no governo central a autoridade para tributar. Dois terços da arrecadação está concentrada em Brasília. Então temos um sistema de transferências muito nocivo para a boa utilização dos recursos públicos. A regra num Estado federativo é: o dinheiro público deve ser gasto o mais perto possível de onde ele é arrecadado, para o cidadão fiscalizar e cobrar. Para Brasília deveria ir aquilo que somente a União deve cuidar, como a diplomacia, o Banco Central, os órgãos reguladores... Além das distribuições regionais. Num Brasil tão desigual e heterogêneo, é normal que as regiões mais prósperas transfiram para regiões menos favorecidas. Mas por que o resto do dinheiro precisa ir para Brasília para depois voltar? Brasília não pode ficar arrecadando e repassando ou não, com os prefeitos de pires na mão pedindo dinheiro. 80% dos municípios vivem de mesada. Vira um modo de fazer política. Perde-se transparência, critério, prioridade, capacidade de fiscalização... Precisamos construir no Brasil cidadania tributária, em que as pessoas saibam o quanto pagam de imposto, para onde ele vai e como está voltando. Ninguém pode ser contra isso.

P. Que outros tipos de ideias a candidatura Marina Silva poderia trazer na questão da desigualdade e mundo do trabalho, que hoje passa por uma série de transformações tecnológicas?

R. Não posso responder por ela. Mas penso que, no mercado de trabalho brasileiro, há dezenas de milhões de cidadãos sem uma situação regular de emprego. Não dá para tolerar isso. Não é normal isso na vida organizada de qualquer país. Ninguém os representa. Esses brasileiros não têm nenhuma proteção, nenhum direito, e ninguém fala deles. Nós precisamos repensar as instituições do mercado de trabalho brasileiro tendo como objetivo maior permitir que todo brasileiro tenha, na sua atividade laboral, uma situação que lhe dê a condição de cidadão pleno. Mas o que nós temos hoje com a economia informal é subcidadãos, sem nenhum direito garantido de nada.

P. Mas com as mudanças tecnológicas, como  elas vão ter um posto de trabalho formal? Devemos começar a falar em direitos sociais desvinculados do emprego, como por exemplo uma renda mínima universal?

R. Acho um caminho interessante, mas com muito critério. Os recursos são limitados, o orçamento é restrito, e tem que ter muita seriedade. Esse é um drama que teremos que necessariamente equacionar. As instituições ficam muito defasadas em relação a mudança da vida prática e da tecnologia. Atualizar as instituições e as demandas dessa nova economia será um processo de tentativa e erro.

Há um artigo da minha coletânea chamado 'O outro Hayek', um neoliberal austríaco que defende renda mínima garantida universal, independente da pessoa trabalhar ou não. Eu adoraria estar numa sociedade que propiciasse ao cidadão uma renda independente do fato de ele estar ou não trabalhando. É um sonho de liberdade. Mas precisamos construir o caminho para isso.

P. Que balanço você faz do Governo Temer?

R. É uma pergunta que eu me faço e não consigo responder. Onde nós estaríamos agora se o Governo Dilma tivesse continuado? O Brasil estava na UTI, com sinais vitais em queda livre, sem nenhum horizonte. Era uma situação sem a menor perspectiva. Então, do ponto de vista econômico, foi um alívio ter uma boa equipe econômica, uma mudança para melhor na governança das estatais e ter um programa de reformas, que no geral é bem correto, a Ponte para o Futuro, que coloca uma agenda de mudanças para que o país volte a recuperar o crescimento e a sustentabilidade das contas públicas. Lamentavelmente, o componente político do governo Temer é... Ele não tem a menor credibilidade e acabou sendo pilhado em 14 de maio de 2017 por aquela conversa de comparsas no subsolo do Palácio. A partir de então o governo entrou no modo de sobrevivência. A agenda de reformas que estava sendo encaminhada foi praticamente abortada, interrompida, e o governo consumiu o que lhe restava de capital político simplesmente para se manter vivo diante das denúncias e de sua enorme e precária fragilidade.

P. O brasileiro ainda não sente os efeitos da recuperação. O desemprego é alto e a greve dos caminhoneiros evidenciou o como é difícil viver. Por quê?

R. Primeiro porque o governo Temer perdeu totalmente a capacidade de iniciativa ao não fazer a mais importante das reformas, que era a da Previdência. As expectativas gerais da economia foram prejudicadas por essa falência do projeto reformista. Acho que o governo Temer errou no sequenciamento das reformas, porque ele deveria ter usado o capital político do início de seu governo para fazer primeiro o mais difícil, e depois fazer o menos conflituoso. E tem um fato também, normal em todo processo de recuperação, que o emprego é uma variável de resposta lenta. Assim como o desemprego demora para aumentar quando começa a recessão, porque as empresas querem se sentir seguras de que esse quadro é permanente antes de demitir, e porque é caro demitir, o desemprego demora a cair quando acaba a recessão. Porque tem muita ociosidade, o quadro não está totalmente definido... As empresas relutam em contratar. Agora, o Brasil saiu da pior recessão da sua história. É muito desapontador o ritmo, é muito incerta a continuidade desse movimento, principalmente depois da greve, mas não sei onde estaríamos com o Governo Dilma.

P. Em 'O elogio do vira-lata', título do seu livro, você aborda a questão do complexo de vira-lata do brasileiro. Qual é a origem desta personalidade?

R. O complexo de vira-lata foi cunhado como expressão pelo Nelson Rodrigues, num contexto inclusive futebolístico. Mas depois isso transcendeu muito e entrou no imaginário brasileiro a ideia do complexo de vira-lata. Na verdade, esse sentimento de inferioridade, esse narcisismo as avessas da psicologia brasileira, não surge no momento em que é nomeado. Ele nos acompanha desde nossa origem como colônia. O mazombo era como primeiro se chamou o brasileiro, que é o filho do português imigrante com negros e indígenas. Eram chamados de brasileiros aqueles que exploravam o pau-brasil, faziam fortuna e voltavam pra Portugal. E o mazombo era uma figura... O termo é de uma língua angolana que denota bruto, iletrado, rústico, uma pessoa sem classe e distinção. O mazombo tinha vergonha de ser quem era e seu sonho era voltar pra Portugal, estudar em Coimbra e virar um cidadão de primeira. Então, o complexo de vira-lata é um traço quase de nascença da vida brasileira. E continua muito forte. A preferência por produtos importados, a inveja dos “civilizados” que têm tudo, conforto, segurança, renda, coisas de primeiro mundo.

P. Ao mesmo tempo, você ressalta e elogia uma condição nossa de vira-lata...

R. Me incomodava muito o uso do termo “vira-lata” para denotar a nossa condição inferior. O Nelson Rodrigues está coberto de razão quando ele fala que nós temos cronicamente um sentimento de inferioridade. Mas por que eleger o vira-lata do símbolo mor do que há de errado conosco? Por que vira-lata? Eu acho bela e acho digna de reconhecimento de orgulho a condição vira-lata. A síntese dessa força do ensaio é a seguinte: o verdadeiro complexo de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata. E tem um subtexto aí que é o seguinte: o que é ser vira-lata? É a mistura. É não ter raça definida. E o Brasil é mestiço, tanto genética como principalmente culturalmente. Nós somos uma mestiçagens de elementos ameríndios, africanos e europeus de diversas procedências. E isso é o que nos dá força e esperança de ter uma contribuição original diante de um ocidente que está num beco sem saída.

P. Ao longo do século XX, sempre se falou que a mestiçagem tinha levado o Brasil a uma democracia racial. Mas hoje os movimentos negros estão apontando para o fato de que isso nunca existiu. De que o racismo sempre foi realidade e nunca se quis falar sobre isso. Esses mesmos movimentos negros denunciam que esse processo de mestiçagem do Brasil, sobretudo na época da escravidão, foi fruto de processos violentos, estupros... E também como um objetivo maior de embranquecer a população, como você bem aponta em seu texto. Como você se posiciona nesse debate?

R. A democracia racial foi usada como véu a encobrir uma realidade objetiva de discriminação e de racismo. É uma ideologia que encobre uma realidade que não pode ser negada. Agora, como ideal e como valor, acho que é por aí. Devemos perseguir uma igualdade de oportunidade de maneira muito mais agressiva e corajosa do que fizemos até hoje. Temos que reconhecer a existência da descriminação e combatê-la por todos os meios. Agora, nós não podemos negar, em nome disso, o que nos diferencia e o que nós temos de melhor, que é a mistura. A história é um processo muitas vezes tortuoso. A vinda dos africanos para a América é a coisa mais inominável em termos de violência e crueldade. Mas é um fato. Nós estamos aqui e estamos juntos. A minha tataravó era uma negra ex-escrava. Nós somos misturados, as pesquisas genéticas comprovam isso do ponto de vista biológico, mas o mais importante não é o biológico. É a integração cultural na música, na dança, na culinária, na literatura, no cinema... Os três gênios universais brasileiros são vira-latas: Aleijadinho, Machado de Assis e Pelé. São frutos dessa mistura, e é o que temos de melhor. E acho que temos que enaltecer e cultivar nossa condição vira-lata, que foi muito bem resumida num samba cantado pela Carmem Miranda, de um ator chamado Alberto Ribeiro, que chama-se “Cachorro Vira-Lata”. Ele enaltece a condição da liberdade do vira-lata sem coleira e sem patrão. Um belo sonho.

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