27.2.15
Friedrich Hölderlin: "Diotima": trad. Antonio Medina Rodrigures
Diotima
Vem, dulçor da musa etérea — e para mim aplaca
O caos do tempo, ó tu, que outrora os elementos irmanaste,
Em tons de paz do céu me suaviza a fera luta,
Até que aos seios dos mortais se amaine a intriga,
Até que a suave, a ingente, a velha natureza dos humanos
Brote enfim do fermentar do tempo alegre e forte.
E que à viva forma voltes, da gente aos corações sedentos!
Voltes à mesa hospitaleira, e ao santuário voltes!
Pois que, do Espírito colmada, como em neve as flores finas,
Vive ainda e a remirar o sol está Diotima.
Mas foi-se deste mundo o sol do Espírito, o mais belo,
E em caliginosa treva raivam agora tão somente os furacões.
Diotima
Komm und besänftige mir, die du einst Elemente versöhntest,
Wonne der himmlischen Muse, das Chaos der Zeit,
Ordne den tobenden Kampf mit Friedenstönen des Himmels,
Bis in der sterblichen Brust sich das Entzweite vereint,
Bis der Menschen alte Natur, die ruhige, große,
Aus der gärenden Zeit mächtig und heiter sich hebt.
Kehr’ in die dürftigen Herzen des Volks, lebendige Schönheit!
Kehr’ an den gastlichen Tisch, kehr’ in den Tempel zurück!
Denn Diotima lebt, wie die zarten Blüten im Winter,
Reich an eigenem Geist, sucht sie die Sonne doch auch.
Aber die Sonne des Geists, die schönere Welt, ist hinunter
Und in frostiger Nacht zanken Orkane sich nur.
HÖLDERLIN, Friedrich. "Diotima". Trad. Antonio Medina Rodrigues. In:_____. Canto do destino e outros cantos. Org. e trad. e ensaio por Antonio Medina Rodrigues. São Paulo: Ilulminuras, 1994.
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Poema
23.2.15
Fred Girauta: "Isso dá nisso"
Isso dá nisso
isso de ser uma ausência
de dizer a que não veio
de ser o único da turma
fumaça esparsa que a brasa sua
leveza sem esteio
mina d'água sob a rua
isso de ser jogado fora
ao pé da terra
pólen na areia
moita em meio à guerra
imenso mar sem beira
osso que se esfola
resto de feira
isso de ser uma quimera humana
mero pulsar de banzo
margem de afetos
fugas
desenganos
isso ainda vai dar samba
poema
ou pano pra manga.
GIRAUTA, Fred. "Isso dá nisso". In:_____. Nós. Porto Alegre: Vidráguas, 2013.
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Poema
21.2.15
Domício Proença Filho: "Poética"
Poética
Poeta
profissão de risco:
tanger palavras
cúmplices do jogo
no abismo misterioso
do sentido
arisco.
Arrisco.
PROENÇA FILHO, Domício. "Poética". In:_____. O risco do jogo. São Paulo: Prumo, 2013.
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Poema
19.2.15
Alex Varella: "Ode ao esquecimento"
Ode ao esquecimento
O esquecimento não pertence ao tempo.
Como a eternidade pertence, por exemplo
(o tempo eterno como uma das modalidades do tempo).
Celebro a vida sem planos, em louvor do esquecimento,
celebro a vida sem tempo:
vívida, vivida como uma ode ao esquecimento.
VARELLA, Alex. "Ode ao esquecimento". In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
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Poema
15.2.15
Armando Freitas Filho: "De um sonho"
De um sonho
A areia retida nas mãos em concha
vaza, e inicia a ampulheta
preenchendo as fôrmas das letras
e de algumas figuras:
a do A surge consistente
seguida do molde do rosto de uma criança
dentro da bacia oval e úmida que as mãos
escavaram, à beira da baía de igual formato
no intervalo de uma onda mais forte e outra.
O avanço do mar acaba apagando
a construção na praia, mas a memória
a reescreve com o mesmo espírito, método
e redundância, nas linhas da maré.
FREITAS FILHO, Armando. Dever. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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Poema
13.2.15
Nobile José: "Topia"
Topia
Nossos bisnetos não vão saber quem foi Feliciano, nem Bolsonaro, nem Eduardo Cunha. Talvez a história que chegará a nossos descendentes será a narrativa da existência de um grupo cômico que achava graça em achar que todos deveriam se comportar como eles, mediante o uso da força estatal. Isso, no futuro, vai ser motivo de riso; anotem!
Ninguém se importará mais com a cabeleira do Zezé, e alguns cantarão a música, gargalhando.
Cor de pele vai ser igual cor de olho – como já é hoje, mas ninguém percebe: insistem no mito idiota da raça.
As religiões, se ainda existirem, serão privadas. E ponto.
Não existirão mais minorias porque não existirão mais maiorias.
Então ninguém mais vai dizer o que outra pessoa deve fazer; nem os “vovôs Simpsons” da época.
O mundo será diluído nas individualidades, e por isso, aprenderemos a lidar com outro como ele mesmo é, e não como gostaríamos que ele fosse. Mas não se enganem: pessoas unidas por um vínculo profundo continuarão se desentendendo; afinal, o acaso existe!
Finalmente entenderão Nelson Rodrigues e a autonomia da arte.
Uniões entre pessoas serão aleatórias, independente de gênero, podendo ser pares, trios, quadras, etc etc.
Pessoas serão trans-humanas, ou seja, além das alterações do próprio corpo (com supressão ou implantação de órgãos e partes), poderão ter alguma parte do corpo ligada a aparelhos, sendo que esses passarão a integrar sua constituição corpórea, e isso não será um 'grilo' (aliás, não existirá a palavra grilo como 'grilo').
Sim, nossos tataranetos acharão nossa época ridícula, como hoje nós achamos Luís XIV, Napoleão e Mussolini cafonas – ou como não entendemos como que existiu uma época em que as mulheres não podiam votar.
Os radicalismos acabarão por total ausência de identidades coletivas.
O sentido da vida estará na mão de cada um e sob sua total responsabilidade.
Ainda existirá culpa e desejo, mas teremos menos medo.
Nobile José
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Topia
Duda Machado: "Percurso"
Percurso
Em cada ser, repara
a dança
que, na sombra, prepara a
mudança
Em tudo quanto muda,
alcança
aquilo que não muda na
mudança.
MACHADO, Duda. Crescente (1977-1990). São Paulo: Duas Cidades, 1990.
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Poema
11.2.15
Weydson Barros Leal: "O outro"
O outro
Algo em nós
nos
une e
nos invade.
Não sei
o que conta
nesse espelho
que nos
cabe.
Algo em nós
é uma ponte
ou uma
parte.
Algo em nós
é o outro
lado
que sabe.
LEAL, Weydson Barros. "O outro". In:_____. Os dias. Rio de Janeiro: Topbooks, 2014.
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8.2.15
Affonso Romano de Sant'Anna: "Deixei a Acrópole, em Atenas"
Deixei a Acrópole, em Atenas,
como a encontrei.
Pisei suas pedras
olhei as sobrantes figuras derruídas
e agora parto para meu distante país.
Não o fizeram assim os persas,
os turcos,
e aquele inglês avaro
que levou seus mármores.
No topo da montanha, a Acrópole resiste.
No café da manhã, a olhava.
No entardecer, a olhava.
À noite, iluminada, a olhava.
Certa madrugada levantei-me
para (há quatro mil anos)
comtemplá-la.
Eu
— exposto a pilhagens e desmontes,
admirei sua permanência.
Um dia estarei morto.
Ela sobreviverá aos bárbaros
e aos que, como eu,
depositaram
aqui
o seu pasmo.
SANT'ANNA. Affonso Romano de. "Deixei a Acrópole, em Atenas". In: Cândido. Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. Nº 42, Janeiro de 2015.
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Poema
6.2.15
William Butler Yeats: "The fascination of what's difficult" / "O prazer do difícil": trad. Augusto de Campos
O prazer do difícil
O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. O fogo esfria
No coração. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos levem
As peças de sucesso que se escrevem
Com cinqüenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e de otários,
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente.
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.
The fascination of what's difficult
The fascination of what’s difficult
Has dried the sap out of my veins, and rent
Spontaneous joy and natural content
Out of my heart. There’s something ails our colt
That must, as if it had not holy blood, 5
Nor on Olympus leaped from cloud to cloud,
Shiver under the lash, strain, sweat and jolt
As though it dragged road metal. My curse on plays
That have to be set up in fifty ways,
On the day’s war with every knave and dolt, 10
Theater business, management of men.
I swear before the dawn comes round again
I’ll find the stable and pull out the bolt.
YEATS, William Butler "The fascination of what's difficult" / "O prazer do difícil". Trad. Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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3.2.15
António Botto: "Sê jovem"
Sê jovem
Sê jovem,
jovem, apenas.
Não faças literatura
nem ponhas o melancólico aspecto
de quem sabe
e se debruça
nos abismos
desta pobre humanidade
tão vil e tão desgraçada!
Sê natural como as rosas
que rebentaram ali nos canteiros do jardim,
-- e sê jovem!
Mas não queiras ser mais nada
quando estás ao pé de mim.
BOTTO, António. Canções e outros poemas. Vila Nova do Famalicão: Quasi, 2007.
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1.2.15
Eduardo Guimarães: "Desejo"
Desejo
Desejo, desejo vago
de ser a tarde que expira,
ser o salgueiro do lago,
onde a aragem mal respira.
Ser a andorinha que voa
e vai, ser o último raio
de sol... e o sino que soa.
Ser o frescor do ar de maio.
Ser o eco da voz distante
que além se extingue dolente
ou essa folha que, errante
ao vento, cai dormente...
Ser o reflexo disperso
dum ramo n'água pendido,
fluído e belo como um verso
que cante mas sem sentido!
Ser o silêncio, esta calma.
Breve momento impreciso.
Ser um pouco da tua alma...
um pouco do teu sorriso.
GUIMARÃES, Eduardo. A divina quimera. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944.
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