23.12.12

Lêdo Ivo: "O portão"






O portão




O portão fica aberto o dia inteiro

mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.

Não espero nenhum visitante noturno

a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.

A noite é tão silenciosa que me faz escutar

o nascimento dos mananciais nas florestas.

Minha cama branca como a via-láctea

é breve para mim na noite negra.

Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta

derruba uma estrela e enxota um morcego.

O bater de meu coração intriga as corujas

que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma

do dia e da noite paridos pelas águas.

No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.

Sou o vento que apalpa as alcachofras

e enferruja os arreios pendurados no estábulo.

Sou a formiga que, guiada pelas constelações,

respira os perfumes da terra e do oceano.

Um homem que sonha é tudo o que não é:

o mar que os navios avariaram,

o silvo negro do trem entre fogueiras,

a mancha que escurece o tambor de querosene.

Se antes de dormir fecho o meu portão

no sonho ele se abre. E quem não veio de dia

pisando as folhas secas dos eucaliptos

vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos

que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou

— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham

e se agitam na escuridão, e gritam as palavras

que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim

e ao doce esterco fermentado.

os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas

e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.

Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.

Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho

protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras

e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.

À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.

Embora o meu portão vá amanhecer fechado

sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,

e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.





IVO, Lêdo. "A noite misteriosa". In:_____. Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

5 comentários:

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

hoje perco um grande amigo, parceiro, incentivador, o maior poeta alagoano, Lêdo Ivo. A existência perde uma imensa parte da mágica que nos move, que nos sustenta. Grato mais uma vez por postar uma obra desse excelente poeta! A primeira vez que você publicou algo de Lêdo, Aetano me alertou: "Acho que o Cicero postou isso para você por você ser alagoano." Talvez, o último texto crítico que ele tenha escrito foi para o meu livro Laringes de Grafite, o que é uma grande dádiva e honra. Nunca me passaria pela cabeça que ele iria morrer justo agora! Estive com Lêdo no lançamento do meu livro e em Marechal Deodoro durante a FLIMAR,e ele sempre sorridente, durinho ao caminhar, lúcido, feliz. Morre na Espanha, justo no lugar em que seu grande amigo João Cabral tanto cantou em versos. Perdi o pai e protetor que teria por muitos anos, mal tendo eu começado a sentir o que é ter isso. Dói-me a alma e o coração, dói-me tudo!


Adriano Nunes.

Antonio Cicero disse...

Adriano,

também senti tanto a perda que nem tive palavras. Preferi postar um poema dele.

Abraço

Camillo Cesar Alvarenga disse...

FÔLEGO PARA LEDO IVO

Em cada vida, verso,
um mito é inventado.
Há léguas, no tempo,
o mundo foi criado.

E, enquanto, a mesa
é posta, o poeta lava
as mãos, como quem
é batizado, recriado.

Poesia(língua-fênix)
das cinzas às palavras.
A morte nos encontra
eleitos ou derrotados.

São Félix-Ba, 2012

Aetano disse...

Da morte, ando com receio. Próprio e alheio.

Anônimo disse...

A Ledo Ivo:

"o portão, todavia
amanheceu aberto."

(Afonso Caramano)