22.8.10

Originalidade e plágio




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 21 de agosto.


Originalidade e plágio


RECENTEMENTE, Helene Hegemann, uma jovem alemã de apenas 17 anos, fez grande sucesso de crítica com seu primeiro romance, intitulado "Axolotl Roadkill". O problema é que logo se descobriu que longos trechos desse romance haviam sido copiados da obra de um autor menos conhecido. Pois bem, longe de pedir desculpas pelo plágio, a moça afirmou que "não existe originalidade; o que existe é autenticidade". Ao que um crítico comentou, com razão: "De fato, trata-se de um autêntico roubo".

É evidente que o fato de não haver originalidade absoluta não significa que não haja originalidade relativa ou que esta não possa em princípio ser conferida. Do contrário, o que justificaria chamar a própria Helene Hegemann de autora de "Axolotl Raodkill"?

Contudo, a falsa tese de que simplesmente não existe originalidade tornou-se trivial nesses tempos de internet e de "cópia e cola", e é frequentemente invocada, nos Estados Unidos (será diferente no Brasil?) por alunos universitários acusados de plágio. Segundo a antropóloga Susan D. Blum, professora da Universidade de Notre Dame, em Indiana, "nossa noção de autoria e originalidade nasceu, floresceu, e pode estar murchando".

Ora, essas ideias da professora Blum parecem-me remontar ao (eu quase disse: "parecem-me originar-se no") ensaio "A Morte do Autor", escrito por Roland Barthes no ano de 1968. "A escritura", lê-se ali, "é a destruição de toda voz, de toda origem". Tudo o que o escritor pode fazer é "imitar um gesto que é sempre anterior, jamais original. Seu único poder é o de misturar escrituras, opor umas às outras, de modo a jamais repousar em nenhuma". Suponho que isso seja o que o próprio Barthes fez em seus livros. Seria então aceitável que outro escritor pretendesse ser o autor desses livros?

O sentido mais legítimo da retórica da "morte do autor" é o de programaticamente afirmar a autonomia do objeto dos estudos literários -a autonomia do texto- contra a sua redução à psicologia, à história, à filosofia etc. Hegemann se sente capaz de empregar a mesma retórica para justificar o plágio porque, independentemente das intenções de Barthes, ela, como tantos outros, apropriou-se de tal figura para os seus próprios fins. Afinal, ele mesmo declarava que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor".

De todo modo, ao contrário do que Barthes pretende, não é verdade que o autor seja "uma figura moderna, um produto de nossa sociedade na medida em que, ao emergir da Idade Média com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz de modo mais elevado, da "pessoa humana'".

A figura do autor é indissociável do próprio emprego da escritura e já se encontra inteiramente definida na Antiguidade clássica. Só as culturas orais primárias não a conheciam. Assim, é possível, por exemplo, que "Homero" fosse, na cultura oral primária, um nome genérico para determinado tipo de bardo, porém seria absurdo dizer algo semelhante de poetas líricos como Píndaro, Safo, Teógnis etc.

Normalmente, copiar uma obra ou um trecho de uma obra ipsis litteris, sem nada lhe modificar ou adicionar, e pretender ser o seu autor é inadmissível em qualquer sociedade letrada, pois não passa de impostura.

Contudo, usar, no interior de uma obra, um texto que, tendo sido escrito por outro autor, seja universalmente conhecido, não constitui plágio, mesmo que a fonte não seja citada. Assim podiam na Antiguidade clássica ser usados, por exemplo, os poemas atribuídos a Homero. Assim também podem ser usados os versos, por exemplo, "No meio do caminho da nossa vida" e "E agora, José", no Brasil contemporâneo. Se acusado de plágio, um poeta que use versos tão famosos pode dar ao acusador a mesma resposta que Brahms deu aos críticos que observaram uma grande semelhança entre um trecho de sua primeira sinfonia e um trecho da última sinfonia de Beethoven: "Qualquer imbecil percebe isso".

Além disso, é possível saber com certeza relativamente grande a autoria de um texto, mas não a de uma ideia, de modo que, de modo geral, se alguém usar uma ideia sem mencionar a pessoa através da qual tomou conhecimento dela, isso não chega a configurar plágio.

Já copiar uma obra pouco conhecida, como Helene Hegemann fez, é inaceitável, pois lesa o seu autor. Contudo, o crítico francês Roger Caillois admite uma exceção que, na minha opinião, deve ser levada em conta. Para ele, sempre se justifica a apropriação de uma obra medíocre, caso o resultado seja uma obra-prima: mas, como diz Gertrude Stein, as obras primas são tão poucas...

39 comentários:

Unknown disse...

Ela copiou mas não colou...

se a moda pega por aqui hein...

Letícia disse...

Cicero,

Adorei o texto. E o desfecho!

(te vi ontem tomando um táxi no Largo dos Leões; eu passava em outro)

Um beijo!

carmen silvia presotto disse...

Poeta, teu Ensaio é tão bom que dá vontade de copiar, colar, blogar... (hehehe!)

Mas ao te ler, vou me dando conta que se pode colar tudo em uma obra, até roubar ideias, lembro agora do filme A Origem... menos o Estilo de quem escreve, para mim este é intransferível, ou não?

um beijo e obrigada, tua Esctitura nos torna melhores leitores e tb. autores.

ah, também lembro do poema teu Guardar, uma aula de Transmissão Poética e se é possível na Poesia, será possível na vida, melhores "guardações"!


Carmen Silvia Presotto
www.vidraguas.com.br

Anônimo disse...

Originalidade no sentido forte é coisa do século 18, quando os escritores começaram a ganhar dinheiro com venda de livros. Antes o que existia era o patronato e se vivia desse dinheiro. Fora o prestígio, pouco valia insistir na autoria. Giordano Bruno, Hobbes, tinham patronos. Bacon era corrupto, Descartes tinha dinheiro, Espinosa – que escândalo! – trabalhava. Na Idade Média não se dava bola para autoria. Heidegger, o infame, comentou um texto de Duns Scotus, que depois se descobriu que não era do escolástico. Dante cortou e colou Virgílio. Boccaccio também era dado a prática e depois foi ele mesmo copiado por Chaucer. Shakespeare copiava de todo mundo, dando molho – genial! – próprio. Na Antiguidade era praxe escrever resumindo os autores que trataram do mesmo tema. Quer dizer, assim como a “originalidade” chegou é bem capaz de voltar a sair de moda. O negócio é dar ao leitor um texto interessante, coisa que raramente se consegue em nossa terra. A literatura brasileira está morta, então não há o que copiar. O caso dessa menina alemã é pura jogada comercial, aliás, muito bem sucedida. Nada contra o comercio (“dinheiro yes!”), mas meninotas de 17 não costumam andar por aí escrevendo romances.

fred girauta disse...

Quem dá ou já deu aula para essa geração plugada na internet sabe o quanto essa prática do "copia e cola" está disseminada.
Mas o que mais espanta é que esses alunos plagiadores creem não estar fazendo nada de errado. Para eles, copiar e colar é sinônimo de pesquisa.

abraço a todos

Fabio Gomes disse...

Justamente pelo que é dito no penúltimo parágrafo que a Lei do Direito Autoral em vigor no Brasil protege obras (textos, músicas, filmes, desenhos etc.), mas não ideias. Uma simples ideia, sem ser concretizada numa obra, não é considerável passível de proteção legal.

Antonio Cicero disse...

Caro anônimo:

São inteiramente inconsistentes todas as “provas” com as quais você tenta corroborar os dogmas que aprendeu com os “pensadores” pós-modernistas. Vejamos:

Sim, Bruno e Hobbes tinham patronos; Bacon era corrupto; Descartes tinha dinheiro; Espinosa trabalhava. Alguma dessas coisas quer dizer que eles não assinavam suas obras, não se consideravam autores, não eram considerados como tais ou não faziam questão de sê-lo?

O equívoco de Heidegger é um problema dele e da feitura e transmissão de manuscritos, antes da invenção da imprensa. Isso não quer dizer que Duns Scotus não fizesse questão de ser considerado o autor dos seus textos.

Dante copiava Virgílio porque Virgílio era o “altíssimo poeta”, o poeta canônico por excelência, de modo que quem não reconhecesse os trechos deste na obra daquele é que podia ser considerado iletrado, isto é, ignorante. Chaucer e Shakespeare copiavam as ideias, os temas, mas não os textos.

“Resumos” ainda hoje são praticados.

Se você lesse os próprios autores antigos, em vez da baboseira dos ignorantes pós-modernistas, saberia que, de maneira geral, aqueles faziam ainda mais questão de sua fama de escritores do que os autores modernos. Não tenho tempo de citá-los (embora você possa encontrar neste blog mesmo um famoso soneto de Horácio sobre o tema). Recomendo-lhe que leia, por exemplo, “The anatomy of melacholy”, de Richard Burton (não o ator, mas o autor renascentista).

Quanto à literatura brasileira, ela está, com certeza, bem mais viva do que os dogmas que você aqui defende.

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,


Excelente artigo! Bravo!


Um poema meu com o escritor/letrista português Tiago Torres da Silva.


"momento zero " - Tiago Torres da Silva/Adriano Nunes.

quando?
a qualquer instante sangrante

do
próximo milésimo de se-
gun-
do.
o próximo se-
gun-
do

é o menor infinito que há
no mundo.
o mundo de
um segundo

não
cabe no eu
mais

profun-
do.
o eu

mais
profundo não

cabe no
maior infinito.
o que há

entre tudo isto é
que é,
no fun-
do, bonito!


Abraço forte,
Adriano Nunes.

Paulodaluzmoreira disse...

Stanley Fish andou falando sobre esse assunto na sua coluna do New York Times. A abordagem dele é diferente, mas interessante.
A imagem "cortar e colar" é interessante nesse caso porque talvez represente a diferença fundamental entre um escritor que de alguma maneira re-escreve outros [o lápis vai correndo a página e cada palavra do texto fonte é lida em separado e com cuidado] e um sujeito que num par de gestos automáticos copia em bloco e sem qualquer diferença mínima que seja o original.
Agora, alguém dizer que Shakespeare "copiava e colava" como essa autora alemã... só pode ser brincadeira de mau gosto.

Alcione disse...

Refletindo sobre o tema, eu acho que não dá prá separar a obra do autor da obra porque são e estão ligados, no tempo e no espaço, mesmo sendo absolutamente diferentes; então, não seria honesto com os possíveis leitores, do presente e do futuro, escamotear a trajetória viva do sujeito que fez a coisa, seja poesia, prosa, pintura, tapeando a verdadeira origem, e, com isso, empobrecendo o conhecimento do emanharado de fios que tecem o objeto artístico. Influência sim, quando você lê duzentas vezes um poema do Pessoa, uma do Bandeira, ou cem do Wally, e marca, você pode lembrar conscientemente ou não, e isso não é plágio. Um leitor mediano logo reconhece a fala se é uma simples "cola" ou refere-se às idéias desse ou daquele autor. Efetuar a transcriação é algo muito difícil.

Anônimo disse...

Não é brincadeira de mal gosto. Lamentavelmente é verdade, mas pelos padrões de hoje, o grande Shakespeare era um plagiário. Copiava bravamente os autores antigos (os especialistas já identificaram trechos de Tito Lívio, Plauto, Ovídio, Cícero, Sêneca, Horácio em suas peças) e não só os temas. Suavizou “O Judeu de Malta” de Marlowe, autor tão genial como ele, mas menos palatável para um público essencialmente religioso. O próprio Hamlet foi tema tratado primeiro por Thomas Kyd, amigo Marlowe. Robert Greene, autor teatral elizabetano de pouca importância, acusou Shakespeare, em 1592, de ter lhe roubado uma peça. Agora vem o mais importante: ninguém lhe deu atenção, porque a originalidade não era o ponto, mas sim a eficiência cênica, que gerava dinheiro. Shakespeare era um ator-empresário que pouco estava se lixando para sua peças como obra de arte. Elas eram valorizadas porque enchiam o teatro e não porque eram “originais”. Que autor com preocupações estéticas teria escrito Tito Andrônico? Shakespeare morreu em 1616, mas o Primeiro Fólio, só apareceu sete anos depois por iniciativa de dois amigos (John Heminges e Henry Condell), que se deram ao trabalho de reunir 36 de suas peças. Existiam outras? Todas eram de Shakespeare? Aqui os debates são infindáveis. Se Shakespeare fosse tão consciente de seu papel de autor teria ele mesmo se dado ao trabalho de reunir sua produção, mas não o fez. Mesmo as peças do Fólio são diferentes de outras versões que se conhecem. Algumas foram reconstituídas a partir da memória de autores que nelas trabalharam, prova maior do descaso de Shakespeare. Copiar, requentar temas, escrever conjuntamente, montar peças alheias nada disso importava para Shakespeare. Importante era manter o Globe cheio, porque era dali que saia o dinheiro que lhe permitiria comprar propriedades em Stratford e se aposentar como cavalheiro rural. Nisso, o grande Shakespeare era mais moderno do que aqueles que se preocupam em demasia com a noção arcaica de autoria, já que estamos encharcados de referências e ninguém escreve uma linha que já não tenha sido escrita em uma civilização com mais de cinco mil anos.

Mariano disse...

Nada é agora dito que não tenha sido dito antes (Terêncio,séc. II a.C.)

Antonio Cicero disse...

Caro anônimo,

Faço três observações sobre Shakespeare:

Primeiro, trata-se de uma autor sobre o qual se sabe muito pouco. Alguns dizem que ele sequer existiu: que as peças foram escritas por Francis Bacon, por exemplo. Sendo assim, ele não foi nada típico da época: antes, foi uma exceção.

Segundo, o uso de ideias de autores antigos e de frases canônicas sempre houve e continua a haver. E não diz nada contra a importância da autoria, pois tanto os autores copiados quanto os copiadores sempre fizeram questão de assinar suas obras.

Como dizia Sofrônio Eusébio Jerônimo (vulgo São Jerônimo): "Embora os filósofos escrevam de contemptu gloriae (sobre a desprezabilidade da fama), a verdade é que põem seus nomes nos livros".

Terceiro, seria interessante cotejarmos exemplos de trechos que Shakespeare teria plagiado com os originais, para saber o que pensar.

Você diz que "ninguém escreve uma linha que já não tenha sido escrita em uma civilização com mais de cinco mil anos". Na verdade, essa declaração é que é muito velha. Mais de dois mil anos atrás, Terêncio dizia: "Nullum est iam dictum, quod non dictum sit prius" (Nada é dito agora que não tenha sido dito antes). E Eclesiastes pensava o mesmo mais de três mil anos atrás.

Penso o oposto. Desde Eclesiastes escreveu-se toda a literatura grega, latina e europeia, com milhões de coisas que jamais haviam sido escritas antes: e praticamente todas assinadas; e acho que a literatura está longe, muito longe de se ter esgotado. O que se escreveu no passado são apenas tijolos, como palavras, que usamos para escrever coisas novas, originais, autorais.

Assim, as questões da autoria e a da originalidade não surgiram com a figura jurídica do plágio. Esta é muito posterior àquelas.

Leonardo Davino disse...

A canção de hoje: "Maresia".

Em:
http://www.mpbfm.com.br/blog/?id=15
ou
http://www.365cancoes.blogspot.com

Abraços

Marcus Fabiano disse...

Prezado,

Parabéns pelo artigo claro e elegante, aliás como de hábito. Na linha de crítica às modas pós-modernas e sua recepção tardodescontextual, digo o seguinte: Jacques Derrida também entrou nessa ordem de crítica à autoria e talvez a sua posição tenha sido a única realmente vinculada à tradição hermenêutica, especialmente à recepção do pensamento fenomenológico na França. Sua tese desconstrutivista, aliás, chega a ser anterior à aparição do pequeno artigo de Barthes. Em La voix et le phenómène, de 1967, Derrida discute as limitações da noção do querer-dizer de Edmund Husserl e restitui à configuração da autoria a implicação historicizada das recepções críticas. Em textos posteriores, Derrida encontraria no problema do autor um ótimo caso para sua denúncia do discurso logo-fono-etnocêntrico, embora os textos matriciais do debate tenham se tornado os de Barthes e Foucault.
Antoine Compagnon, em precioso retrospecto avalia, e cremos que acertadamente, que o sucesso de público alcançado pela tese da morte do autor convergiu com uma específica conjuntura de crítica das ideologias e de contestação social que eclodiu na França com o maio 1968. A queda do autor assinalaria assim a passagem do estruturalismo sistemático para o desconstrutor, mas nada seria capaz de dar uma solução ao problema do autor como fonte da intencionalidade. Compagnon assevera que a problemática do autor biográfico e/ou sociológico como um tópico do cânone literário nada responde ao tema da intencionalidade de um autor considerado desde uma outra perspectiva, a hermenêutica.
(segue)

Marcus Fabiano disse...

As problemáticas do autor no contexto da fenomenologia e da hermenêutica precisam então de alguma maneira ser separadas da discussão da teoria de fundo literário e lingüístico que acima rapidamente reconstruímos. O problema da intencionalidade do autor nasceu no contexto judiciário da retórica clássica com a distinção entre inventio (ideação) e elocutio (escolha das palavras). Em Hermeneutics and the retorical tradition, Kathy Eden esclarece que essa distinção acabou por se fundir com problemas estilísticos, o que gerou uma segunda ocultação da problemática da intencionalidade. A diferença estabelecida por Cícero e Quintiliano entre intentio (intenção) e actio (ação) – que tinha um caráter nitidamente jurídico e orientado para interpretação da autoria delitiva – fora tratada como uma diferença entre voluntas (vontade) e scriptum (texto). E boa parte da retórica que se sucedeu acabou por buscar a voluntas por trás ou por baixo do scriptum segundo uma relação entre sentido próprio e sentido figurado. Em A Doutrina Cristã, Agostinho defende a superioridade da voluntas sobre a scriptum, traçando daí um paralelo com o espírito (spiritus) e o corpo (corpus) que difunde a idéia de uma interpretação espiritual como aquela que fornecesse o acesso à verdade do texto, por oposição à leitura rasa de sua mera letra, de seu corpo, de sua carnalidade. Todavia, essa idéia jamais chegou a ser estabelecida ou sequer postulada pelo próprio Agostinho. A lógica metafórica que dela se descolou como que adquiriu vida própria, pois a idéia de uma interpretação espiritual remontava a São Paulo, para quem a letra mata, mas o espírito vivifica.

Marcus Fabiano disse...

Compagnon, seguindo Kathy Éden, afirma que São Paulo apenas substituiu os termos da retórica grega rheton (equivalente ao latino scriptum) e dianóia (equivalente ao latino voluntas) pelo par gramma (ou letra) e pneuma (espírito), que seriam mais facilmente compreensíveis pelos judeus aos quais se dirigia. Porém, como aduz ainda Compagnon, o problema que de São Paulo até nossos dias de produziu deve-se ao fato de que “[...] Agostinho, como os outros retóricos, não hesitou em aplicar o método estilístico para extrair a intenção da letra, procedimento que levou muitos de seus sucessores e comentadores, até nós, a confundirem a interpretação espiritual, de tipo jurídico, procurando o espírito sob a letra, e interpretação figurativa de tipo estilístico, procurando o sentido figurado ao lado do sentido próprio.” Esse estado de coisas, prossegue argumentando Compagnon, foi ainda agravado quando a distinção estilística, e portanto meramente semântica, entre sentido literal (significatio propria) e sentido figurado (significatio translata) foi confundida pelo uso indiscriminado e irrefletido que passou a ser corrente da expressão sentido literal. O sentido literal alude assim tanto (1) ao aspecto corporal (oposto ao espiritual) como (2) ao aspecto próprio (oposto ao figurado). Essa fusão entre os problemas do estilo (figuras de linguagem) e os da intencionalidade psíquica do autor (letra contraposta ao espírito) por muito tempo ocultaram em discussões estéticas a problemática hermenêutica envolvida. É por essa confusão que Barthes e Foucault se deixaram levar, ao menos em parte, nas suas teses, respectivamente, sobre a morte do autor e a função-autor.

(parte 3)

Paulodaluzmoreira disse...

Recomendo a quem não acredita no conceito de plágio que acompanhe o blogue nãogostodeplágio da tradutora Denise Bottman. Semana após semana, Denise expõe cabalmente editoras brasileiras picaretas que tomam traduções de textos em língua estrangeira para o português, mudam um par de palavras na primeira página e depois copiam tudo, atribuindo sua nova tradução a um nome fantasma qualquer.
Quanto a Shakespeare - sem entrar nas discussões sobre quem ele era - basta assistir uma boa montagem de uma grande peça dele para entender que o que ele fez, mesmo copiando um tema ou uma história anterior, não existia daquela forma antes - a marca da autoria está lá. Há diversos motivos pelos quais alguém pode querer escrever: dinheiro, fama, prestígio, satisfação pessoal, paixão, ódio, reconhecimento etc. Muitas pessoas escrevem por causa de uma combinação de vários desses motivos mas isso não faz a menor diferença. Hamlet, sim, faz toda a diferença do mundo!

João disse...

Olá, Cícero...segue uma autêntica invencionice
Abç.

Invenção

O QUE MAIS SERÁ VISTO A CEM ANOS
DO QUE SE VÊ HÁ CEM ANOS?
O QUE MAIS SERÁ AMADO A CEM ANOS
DO QUE SE AMA HÁ CEM ANOS?
TUDO O MAIS QUE SERÁ INVENTADO
JÁ FORA IMAGINADO
POR HORA E SEMPRE
O QUE RENOVA
É A TÉCNICA QUE PAVIMENTA
O QUE ESPREITA
É O DESEJO QUE NÃO SE DECORA
E O QUE ASSOMBRA
É A SOLIDÃO QUE CORROBORA
POIS QUEM FEZ ALGO DE IMORTAL
JÁ E SEMPRE VAI-SE EMBORA

Antonio Cicero disse...

Caro Paulo da Luz Moreira,

Penso exatamente o mesmo que você sobre Shakespeare. Por isso eu disse que quem pensa o oposto devia cotejar o texto que supõe que ele tenha "copiado" com o texto que ele efetivamente escreveu.

Abraço

Leo disse...

Gostei muitíssimo de seus comentários, Marcus Fabiano. Embora não concorde com tudo o que disse, você mostra de fato conhecimento do assunto e não trata como ignorantes Foucault, Derrida e Barthes, pensadores de refinada cultura literária e filosófica. Muito do que disseram sobre autoria e outros assuntos gera grande debate exatamente pela complexidade das matérias. No caso da autoria, o interesse deles foi mostrar não que a autoria inexistisse antes da modernidade, mas que seu pleno advento data de alguns séculos e é contemporâneo da questão da subjetividade. Historicizar um assunto está longe de desclassificá-lo. A "morte do autor", que tantos equívocos gerou e gera ainda, foi um modo de Barthes deslocar o conceito substancialista de autoria, que aprisionava a crítica literária ao biografismo positivista do século XIX. Trata-se de um ensaio borgiano, que demonstra como a verdadeira originalidade vem da "emulação" (termo que em latim já tinha a duplicidade de "imitar" e "rivalizar", rivalizar por imitar para fazer melhor). Barthes tinha uma formação clássica e frequentemnete citava os latinos e suas expressões, que ele tanto amava. Longe estava de ser um ignorante, como muitos pensam. Só não estava interessado em repetir certos dogmas da tradição metafísica, que ele reinterpretava a seu modo, quer dizer, como o escritor-pensador que era. Parabéns por seus brilhantes comentários, Marcus, bem fundamentados e nada arrogantes. É num debate assim, que respeita o pensamento do outro, jamais desprezando nem rebaixando-o, que acredito.

Anônimo disse...

Nunca neguei a genialidade de Shakespeare. Seria tão tolo como negar que existiu uma pessoa chamada Shakespeare que assinou contratos, comprou propriedades, teve filhos, casou, etc. tudo isso com esse nome. Outra coisa é duvidar que ele tenha escrito as peças a ele atribuídas. Pode-se fazer isso com ele e com todo mundo. Quem me garante que quem escreveu “O Ser e o Nada” não foi Simone Beauvoir? Ou que o autor do poema “Rapaz” foi mesmo Antônio Cícero? Quanto a cotejar as peças de Shakespeare com outros textos, isso já foi feito à náusea, inclusive existem programas de computador que tratam do inglês elizabetano usado por ele. O que me causa estranheza é que o Sr., que conhece tantos músicos e sabe como o MP3 revolucionou negativamente a vida dessas pessoas, interferindo inclusive nos seus ganhos financeiros, não perceba, ou melhor, se negue a perceber, que as novas tecnologias já estão transformando o ato de escrever. Tudo terá que ser repensado. As noções de originalidade e plágio estão no centro desta discussão, por que é a partir delas que vamos saber como remunerar os escritores. O trabalho de Shakespeare, sua genialidade em reelaborar textos alheios e ganhar dinheiro com eles, sem perder a respeitabilidade, pode – e deve – nos dar lições de como deveremos proceder daqui para diante. Isto é, Shakespeare pode nos educar também agora, como já educou tantos antes de nós. Não é isso que se espera de um autor genial?

Antonio Cicero disse...

É evidente que, quando digo que há quem negue que Shakespeare existiu, o que estou dizendo é que há vários scholars (por exemplo, Brenda James, William D. Rubinstein, Roger Stritmatter, Michael Brame, Galina Popova etc.) que negam que um homem chamado Shakespeare foi o autor das obras que lhe são atribuídas.

Sobre cotejar as obras de Shakespeare com as que o inspiraram, é claro que isso já foi feito. Quando peço que mostre exemplos disso, é porque tenho certeza de que tais exemplos, longe de provarem que ele foi menos original ou menos autoral, provarão exatamente o contrário.

E por que tenho certeza disso? Porque as fontes normalmente citadas não chegam aos pés das obras de Shakespeare, em termos poéticos. Para ficarmos num exemplo: Supõe-se que a obra prima “Othello” teve como fontes “Desdêmona e o mouro”, de Cinthio, as “Historia naturalia”, de Plínio o Velho e a “Geografical history of Africa”, de Leo Africanus. Ora, seria uma piada comparar a poesia de Cinthio com a de Shakespeare; e os demais nem sequer foram ou pretenderam ser poetas.

As obras canônicas, assim como a língua herdada, servem de matéria prima para os escritores do presente. Sempre foi assim, de Álcman a Arnaldo Antunes. E isso jamais impediu que surgissem obras absolutamente originais e autorais, como o próprio “Othello”; ou como “The Waste Land", de T.S. Eliot. Este, aliás, não reelaborava textos alheios menos do que Shakespeare: e jamais perdeu a originalidade ou a “respeitabilidade”.

Ao contrário do que pretendem os pós-modernistas, portanto, as noções de autoria e de originalidade vigoram desde a difusão da escrita e conservam a sua importância mesmo na época da Internet.

Nobile José disse...

pra mim, quem acredita que pode pegar um texto alheio e chamar de seu (control cê control vê), é, antes de tudo, um preguiçoso...

rodrigo madeira disse...

shakespeare foi um plagiário, sim!

me plagiou um milhão de vezes! rsrs
e nem fez a gentileza de assinar o meu nome, como prodigamente faço ao citá-lo.
shakespeare foi um plagiário da posteridade.

o mais irônico e belo disso tudo
é que, me parece, assim funciona o legado das grandes obras:

xeiquispir já não é. as obras de xeiquispir me pertecem.
são absolutamente originais dentro de mim, "são minhas, vestem uma verdade que em mim estava inteiramente nua"(m. quintana, outro que sou eu).

shakespeare não é mais, não é autor de coisa alguma:
as obras de shakespeare hoje são minhas (e tuas) como já não são de shakespeare.

Alice Ruiz disse...

Cícero querido,
é sempre uma delícia ler você.
O tema me fez lembrar o "tudo está dito" do Augusto de Campos.
O que nos lembra que sempre resta novas formas de dizer.
Mas, na real, pensei mesmo na lógica do haikai, que usa o kigo, ou termo de estação, como regra fundamental para que possa ser chamado de haikai.
Assim, existem centenas, talvez milhares de haikais com as expressões: lua de inverno, brisa de verão, folhas secas e assim por diante.
O conceito de originalidade na poesia niponica, até por se inspirar apenas na natureza, muda de sentido e não importa mais usar as mesmas palavras tantas vezes usadas por haikaistas através dos séculos, mas importa muito que cada haikai possua haimi, ou seja, sabor de haikai.
E esse sabor deve ser único e intrasferível.
O que torna tudo mais difícil.
Mas quem quer o fácil que faça outra coisa.
Menos copiar e colar.

Antonio Cicero disse...

Querida Alice,

O exemplo do haikai, cujo sabor deve ser único e intransferível, é excelente. O uso dos elementos tradicionais não destrói nem a originalidade nem a autoria dos poemas.

Beijo

Anônimo disse...

Quem sou eu para discordar da Grande Dama Alice Ruiz... Felizmente, não é necessário. O que ela chama de “sabor de Haikai”, eu chamei acima de “molho”, formula muito menos feliz. A poesia nórdica antiga também usava esse recurso de trabalhar com imagens tradicionais. “Caminho da baleia” para água, “água de espada” para sangue, etc. Cabia ao bardo trabalhar com a sofisticada dialética do tradicional-original para se sobressair. Nunca neguei essa necessidade. A verdade é que a única sociedade que trabalhou e valorizou resolutamente a noção de originalidade foi a Grega Antiga. Foi então uma exceção (como Shakespeare foi, segundo o seu entendimento). Todas as outras grandes sociedades trabalharam na pressuposição que existiu uma “Idade de Ouro”, em um passado mítico, e que cabia aos artistas se aproximarem o mais possível das fórmulas tradicionais. Por exemplo, a “Idade de Ouro”, idealizada pelos Bizantinos, era o grego falado no século 5 a.C. No Ocidente medieval cada nova idéia era logo atribuída a uma antiga autoridade, daí o ditado escolástico: “a autoridade tem o nariz de cera”, que se pode amassar segundo a necessidade. Segundo Arnold Toynbee (o historiador, não o cantor de rock), a sociedade grega pagou um preço muito caro – a dissolução – por ter rompido tão radicalmente com a tradição em favor da originalidade. Talvez tenha razão.

Antonio Cicero disse...

A sociedade grega não foi a única, mas a primeira, no Ocidente, a valorizar a originalidade. Desde então, ela jamais deixou de ser valorizada no Ocidente. Diga-se a verdade: todas as culturas em que os autores assinam as suas obras e em que os nomes deles são preservados valorizam a originalidade. Todas as culturas em que o cânone é aberto valorizam a originalidade.

Anônimo disse...

Segue um poema de Paulo Leminski, que eu copie e colei:

pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar

só não levanto e vou
embora
porque tem países
que eu nem chego a
madagascar

---------------------
Que bode! Os melhores de nós já estão no cemitério...

Saulo disse...

Aberto e original - mas sem cânones ou canhões.

Saulo disse...

Leminski é antibode, não bobo nem morto.

Anônimo disse...

Prezado Cícero:

Segue um resumo do artigo de Hermano Vianna (O Globo, 03-09-10), que talvez lhe interesse.

“Cass R. Sunstein (Professor de Harvard) trata dos riscos da ciberbalcanização da Internet. Na rede, uma das maravilhas é a facilidade com que encontramos pessoas que pensam como nós. Mas todas as maravilhas apresentam seus perigos; nesse caso o principal é passarmos a viver em microguetos, sem contato com gente que pense diferente ou que discorde de nossos pontos de vista. O que Sunstein mostra, é que quando estamos entre iguais a tendência é que radicalizemos cada vez mais nossas opiniões comuns, perdendo o diálogo com quem pensa diferente. O próximo passo é ignorar o diferente. Opiniões divergentes são esculachadas, quando não censuradas, sem piedade nenhuma, e muitas vezes acompanhadas por linchamentos públicos”. O Sr.Hermano Vianna faz algumas outras considerações pertinentes, mas acho que já dá para ter uma idéia do que pensa Cass R. Sunstein, que é agora assessor de Obama.

Grande abraço!

Simone Varoni disse...

Olha! Gostei do que li. Algumas coisas não entendi...
Aliás, me perdi.
Mas, só sei de uma coisa:
ia ficar maluca,
se um pensamento meu,
que aflorasse em minhas escritas
ou que, palavras que cantassem em mim
fossem cantadas em outras pessoas
como se fossem delas.
Podem concordar, discordar, reinventar, mas cópia, é cópia, seja da ideia, seja da escrita, seja do que for.

Um enorme abraço
Cai na prova que fiz hoje: oficial de justiça. Interessante se o Senhor visse as questões de interpretação que surgiram dele:me ralei !!!
Até por que faltaram pedaços. Foram modernamente: adaptados.

Unknown disse...

Gostaria de saber se é possível o senhor responder alguns questionamentos sobre a interpretação que a banca de concurso para Oficial de Justiça do RS fez do seu texto "Originalidade e plágio". Caso haja possibilidade, remeto o material para e-mail que o senhor informar. Obrigada.

Antonio Cicero disse...

Sirlei,

eu não sabia que a banca de concurso para Oficial de Justiça do RS tinha interpretado meu texto, nem que o tinha usado no concurso. De todo modo, penso que o texto é muito claro.

Unknown disse...

Justamente por ter achado o texto muito claro é que discordo do sentido que a banca atribuiu ao verbo remontar na seguinte frase do seu texto: "Essas idéias parecem-me remontar ao ensaio "A Morte do Autor"... A banca considerou que o verbo aludir substituiria corretamente o verbo remontar no texto. Entretanto, ao ler o texto entendo que o verbo remontar foi usado no sentido de recuar, voltar ao passado, ter origem, ser proveniente, derivar-se, e não no sentido de fazer referência a algo. Tanto que o senhor escreveu: (eu quase disse: "parecem-me originar-se no"). Por isso, entre as opções da questão avaliei que a palavra pragmaticamente (no sentido de modo pragmático; prático; praticamente) substituiria a palavra programaticamente no texto, mantendo melhor o sentido original, do que substituir a palavra remontar por aludir.
Desculpe-me, se não fui suficientemente clara.

MariaJB disse...
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ode aos deuses disse...
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