21.2.10

Heidegger e o nazismo




O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 20 de fevereiro.


Heidegger e o nazismo


LOGO QUE li, anos atrás, uma observação do filósofo Martin Heidegger segundo a qual o sentido da filosofia não era tornar as coisas mais fáceis, mas mais difíceis, não pude deixar de me lembrar do merecidamente famoso bordão de Chacrinha: "Eu não vim para explicar, mas para confundir".

Na verdade, é claro que "tornar as coisas mais difíceis" é muito diferente de confundi-las. A palavra alemã que traduzi por "mais difíceis", "schwerer", tem em primeiro lugar o significado de "mais pesadas". Heidegger quer dizer que a filosofia conhece o peso de cada coisa. Isso implica que ela as diferencia, que as torna mais complexas. De fato, o que a filosofia faz não é simplificar as coisas, mas complicá-las. Se entendermos "confundir" como fundir numa coisa só, então seu sentido está mais próximo do de "simplificar" que do de "complicar", e é praticamente o oposto do sentido desta.

Enquanto simplificar um pensamento, por exemplo, é empobrecê-lo, complicar um pensamento é torná-lo ou revelá-lo como mais complexo, mais diferenciado, mais rico do que parecia ser. Tal é, de fato, um dos mais importantes benefícios que podemos auferir da filosofia.

É exatamente por isso que se pode ler com proveito um filósofo que pensa o oposto daquilo que pensamos, daquilo que pensamos pensar, ou daquilo que queremos inicialmente pensar. Mesmo que jamais concordemos, por exemplo, com as teses manifestamente defendidas pelo Sócrates de Platão em "A República", a leitura desse diálogo nos ensina a refletir e especular com maior profundidade e consistência.

Mas volto a Heidegger. Ninguém ignora que esse filósofo apoiou Hitler e o nazismo. Parece-me ademais inacreditável que alguém que tenha lido e compreendido a obra maior de Heidegger, "Ser e Tempo", de 1927, seja capaz de negar a impressionante afinidade entre o teor de certas pretensões desse livro e grande parte da ideologia nazista, que ele estranhamente antecipa. Basta lembrar que ambos rejeitam a modernidade filosófica, o iluminismo, o individualismo, o humanismo e o universalismo, enquanto exaltam o que consideram a autenticidade do indivíduo que se sacrifica em prol do destino particular da comunidade e do Estado a que pertence. A partir da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, Heidegger explicitamente articula seu pensamento com as concepções nazistas.

Essa articulação é o tema do livro extremamente informativo do filósofo francês Emmanuel Faye, "Heidegger: A Introdução do Nazismo na Filosofia", cuja recente tradução americana desencadeou uma intensa polêmica nos Estados Unidos. Por um lado, houve quem, como o professor de filosofia Carlin Romano, sugerisse banir os livros de Heidegger da academia; por outro lado, os discípulos do mestre da Floresta Negra tentaram, como aliás ocorrera à época da publicação do livro na França, desmoralizar Faye, de modo a desacreditar seu livro antes que ele pudesse ser seriamente discutido.

É inaceitável tanto a atitude dos primeiros quanto a dos segundos. Estes são desonestos não apenas porque todo encobrimento dessa natureza é desonesto, mas porque o que tentam encobrir é um comprometimento político que o próprio Heidegger, até o fim da vida, recusou-se a renegar. Ora, é importante – em primeiro lugar exatamente para quem se interessa pela filosofia de Heidegger – saber como ele mesmo entendia e vivia as consequências políticas do seu pensamento.

E que dizer da tentativa de excluir as obras de Heidegger das universidades? Não somente qualquer censura dessa natureza é inteiramente inadmissível numa sociedade aberta, como a verdade é que, a despeito das repugnantes afinidades políticas de Heidegger, sua obra não pode deixar de ser lida e discutida por quem quer que leve a sério o pensamento filosófico.

A filosofia de Heidegger é a culminação do pensamento antimoderno desenvolvido na Alemanha desde o romantismo, no início do século 19. São profundas suas intuições sobre os objetos do ataque que desfere, admiráveis suas interpretações e poderosos seus argumentos. Ninguém que hoje queira pensar seriamente sobre a modernidade, sobre a filosofia moderna ou sobre a filosofia "tout court" poderá ir muito longe, a menos que considere tais intuições, critique tais interpretações e enfrente tais argumentos que, como convém à filosofia, longe de simplificar, complicam as coisas. Que eles desemboquem na pior das ideologias totalitárias é mais uma razão para não os ignorar.

92 comentários:

Zatonio Lahud disse...

Cicero,
brilhante, como sempre. A melhor maneira de combater as trevas é iluminá-las com a liberdade...

Tiago Mesquita disse...

Cícero, quando eu li o Adorno da Teoria Estética e da Dialética Negativa, não pude deixar de notar que embora o seu ponto de fuga fosse a crítica irredutível ao heideggerianismo, eles, muitas vezes, se aproximavam.
Concordo com tudo o que você disse sobre o Heidegger e gostei do livro do Faye. No entanto, mais do que um representante do pensamento conservador, acho que o Heidegger também é um bom crítico da racionalidade fundada em princípios científicos. Seu pensamento inspirou gente insuspeita de saudosismo e de irracionalismo como Richard Rorty e Jaues Derrida. Além disso, o Wittgenstein manifestou a sua admiração pelo pensador mais de uma vez.

Saulo disse...

Essa díade iluminismo-romantismo não pode mais ser o parâmetro da compreensão do pensamento filosófico. Acho que o Husserl (cuja dedicatória Heidegger riscou de 'Ser e Tempo', em razão dele ser perseguido pelos nazis) é o primeiro filósofo que não é mais uma coisa nem outra, sendo, talvez, um misto das duas. A sua idéia da terra é também um claro-escuro.

Um abraço,

Saulo

Rafael disse...

Tiago, Derrida não é exatamente "insuspeito de irracionalismo"... Para dizer o mínimo, há quem "suspeite" dele em relação a isso.

Flavio Barbeitas disse...

Cícero,

Heidegger foi um dos filósofos que mais li até hoje, muito por conta de um caro professor na universidade que incentivava os alunos nessa trilha. Sempre achei o heideggerianismo muito instigante sendo que, por muito tempo, essa corrente foi uma referência para mim. Hoje me afastei um pouco e, amenizada a admiração ingênua (inclusive devido a leituras de outros pensadores, como você, por exemplo), concordo com o teor geral das críticas presentes nesse seu texto. Acho, porém, que não é o caso de liquidar Heidegger como um adversário da modernidade, do iluminismo, do humanismo, como se estes constituíssem valores assim tão supremos da civilização, aos quais só um reacionário (ou um nazista) poderia se opor. Na perspectiva de Heidegger, esses eventos são parte de uma trajetória milenar da metafísica ocidental e deveriam ser interpretados nos limites dados por essa trajetória. Ainda que essa leitura seja evidentemente passível de críticas, não se pode deixar de apontar os méritos de um mergulho profundo na história do pensamento e de uma trentativa de abrir outros caminhos para o homem. Você poderia dizer: "se o novo caminho é o nazismo, estou fora", e é claro que eu concordaria com você. Mas será mesmo que a filosofia de Heidegger aponta apenas para o nazismo? O que dizer das suas sensibilíssimas leituras de poesia ou da acolhida do seu pensamento num Japão em que, modernidade a parte, não havia entre esses intérpretes sombra de nazismo ou de apologia da violência?
Vejo mais má vontade por aí com Heidegger do que com certos pensadores que abraçaram causas igualmente abjetas como o stalinismo ou o maoísmo e que, nem por isso, sofrem uma campanha como a que quis fazer esse tal Carlin Romano... Muito pelo contrário: são incensados na imprensa e na academia (você mesmo já citou aqui os exemplos de Zizek e de Foucault, mas há outros: Badiou, Sartre...).
Um grande abraço e obrigado por mais um texto e pela oportunidade do diálogo,
Flavio.

Bruno disse...

um livro acessível que evitaria que tanto se delirasse a respeito, como neste texto de jornal, é:

Rüdiger Safranski - "Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal" (apresentação de Ernildo Stein)

há alguns capítulos específicos sobre a relação profunda de Heidegger com o nazismo, mas é importante ler a totalidade do texto para possibilitar o discernimento lúcido dos pontos reais (não esses que imaginam) em que houve contato da ideologia coletiva com sua filosofia pessoal.

Antonio Cicero disse...

Tiago,

Falo da influência de Heidegger sobre não somente Rorty e Derrida, mas sobre Foucault e Deleuze (cujas relações filosóficas com Heidegger, através de Blanchot, ainda precisam vir à tona, como diz Agamben, que também é influenciado por Heidegger), no ensaio “A sedução relativa”, no livro O silêncio do intelectuais, organizado pelo Adauto Novaes e publicado pela Companhia das Letras logo depois que você de lá saiu.

Nele, após uma exposição das tendências totalitárias do pensamento de Heidegger, sugiro que, a influência crescente de Heidegger

“talvez tenha a ver com o fato de que, dadas as revelações sobre os regimes terroristas de Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot etc., e dado o colapso da União Soviética, tenha sido preferível, para muitos intelectuais, sair do marxismo de cabeça erguida, trocando-o por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, uma filosofia não menos capaz de, por um lado, diagnosticar (mas com maior Gründlichkeit) e de desprezar a realidade (tida por insuportável) do mundo capitalista e liberal em que vivemos, mostrando a origem deste no esquecimento metafísico do ser (esquecimento tido como responsável também pelos mundos terroristas do socialismo real e até do nazismo...), e de, por outro lado, desdenhar (mas, igualmente, com argumentos mais gründlich), não só o que, desde o marxismo, eles já haviam considerado como o embuste da democracia, dos direitos humanos etc., mas também o próprio homem, a própria subjetividade, a própria razão, tidos (mais ou menos como o humanitarianismo, a psicologia, o senso comum) como manifestações em última análise hipócritas e sentimentalóides do individualismo burguês.”

É claro que essa influência não teria sido possível se Heidegger não fosse, em primeiro lugar, um grande pensador. Esse é o paradoxo inescapável. Um pensador profundo pode ser nazista.

Digo, no ensaio citado, que Heidegger se encontra no fundo das diversas formas de relativismo desses pensadores. E cito justamente uma entrevista dada por Derrida (que também é um autêntico pensador) a Evando Nascimento. Nela, ele nega ser relativista e afirma crer que

“a origem dos mal-entendidos no caso se deve a que sou muito enfático a respeito da singularidade e das diferenças: a singularidade das culturas, das nações, das línguas.”

Comento, então:

"Culturas, nações, línguas: Derrida é enfático a respeito da singularidade e das diferenças de entidades comunitárias, não de indivíduos. Entretanto, o que significa a ênfase na singularidade das comunidades, senão a afirmação da sua irredutibilidade? Desse modo, uma cultura é considerada como irredutível: irredutível a qualquer outra cultura, irredutível a qualquer denominador comum às diferentes culturas e irredutível aos indivíduos que as compõem. Que quer dizer isso? Que não há qualquer critério externo pelo qual se possa julgar uma cultura. Uma cultura só pode ser julgada – se tanto – por si própria, pelos seus próprios critérios. Mas como chamar uma tal posição, digamos, multiculturalista, senão de relativista?"

Chamo então atenção para o seguinte:

1. Enquanto o iluminismo exige a liberdade irrestrita da crítica, o relativismo cultural restringe a crítica à crítica interna a cada cultura, quando muito;

2. Enquanto o iluminismo defende a sociedade aberta, o relativismo cultural defende a comunidade fechada;

3. Enquanto o iluminismo defende o direito como liberdade, o relativismo cultural defende o dever da conformidade;

4. Enquanto o iluminismo é consistente, pois não relativiza a si próprio, o relativismo cultural é inconsistente, pois considera falar sobre a relatividade das culturas a partir de uma cultura ela mesma relativa, o que o sujeita ao paradoxo do mentiroso e à peritropia."

Os heideggerianos não apoiam o nazismo, mas seu pensamento é impotente ante as teocracias, os terrorismos etc.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Saulo,

Algo do que eu disse na resposta ao Tiago acho que também responde a você.

Não creio que se tenha realmente saído da contradição modernidade/antimodernidade. Não creio que se possa sair dela. Heidegger dizia, com razão, que a modernidade filosófica tinha sido inaugurada por Descartes e que nem Nietzsche tinha saído da órbita do pensamento inaugurado por aquele. Todo o trabalho de Heidegger pode ser interpretado como uma luta para sair dessa órbita. Nesse ponto, ele fracassou. Heidegger jamais perdoou a Husserl ter escrito “Meditações cartesianas”.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Flavio,

As respostas que dei ao Tiago e ao Saulo também em parte respondem ao que você diz.

Acho que você tem que reler meu texto, pois ele jamais pretende liquidar Heidegger: longe disso. Ele diz, ao contrário, que Heidegger tem que ser lido, a despeito de suas implicações políticas, pois é um grande filósofo, um pensador profundo.


Abraço

Flavio Barbeitas disse...

Corretíssimo, Cícero: realmente você não liquida Heidegger e, ao usar esse termo, acabei me expressando mal.
De todo modo, apreciei muito as respostas que você deu aqui. Bastante esclarecedoras.
Um abraço,
Flavio.

Saulo disse...

Estou contigo, acho a leitura do Heidegger necessária, acima de tudo. Curioso que atualmente a Alemanha discute sobre a necessidade de se antecipar, ou não, à divulgação de Mein Kampf por domínio público, que ocorrerá em breve, já que até hoje a sua divulgação é proibida, o que acho equivocado.
Mas acho que Husserl tem mais do que cartesianismo; o primeiro livro de Spinoza é também sobre Descartes. E o primeiro de Heidegger é sobre Kant, etc. Talvez Husserl tenha usado Descartes para fazer a sua diferença contra os 'kantianos' do seu tempo.

Obrigado por compartilhar as suas preciosas idéias conosco.

Abraço,

Saulo

Antonio Cicero disse...

Saulo,

o que aconteceu foi que Heidegger viu na fenomenologia a possibilidade de superar o que chama de pensamento representacional ou a metafísica da subjetividade. Mas Husserl, não tendo essa preocupação, acabou indo por outro caminho, que revalorizou exatamente o cogito. Heidegger não podia deixar de romper com ele, por razões puramente filosóficas.

Acrescento que não penso que Heidegger fosse anti-semita, pois o racismo (pelo menos o biológico) não pode ter lugar na sua filosofia. Nesse ponto, penso que o Faye não o entendeu.

Abraço

Anônimo disse...

Perdoem-me a ignorância, mas gostaria de saber se o livro do Faye em questão é o mesmo que saiu aqui, nos anos 1990, pela Editora 34 (A razão narrativa, se não me engano). Se não for, o que o novo acrescenta ao primeiro? E o que ambos acrescentam ao livro do Victor Farias? Grato, edg

Catatau disse...

Belo texto!

Eu já havia lido um outro informe sobre o livro de Faye, mas mesmo com o teu texto eu fiquei com a pergunta: o pensamento de um filósofo de relações muito problemáticas com o nazismo é um pensamento nazista?

paulinho (paulo sabino) disse...

ZENZAZIONAL, cicero!

fecho com TUDO!

sempre me proponho a ouvir opiniões e achados divergentes aos meus. pois tais opiniões e achados podem alterar em parte o que penso - já que é possível que enxergue determinadas convergências naquilo que, antes, supunha totalmente antagônico -, ou mudar por completo a minha opinião - se achar válidos os argumentos expostos da opinião que acreditava discordante -, ou reafirmar ainda mais o que penso a partir das contra-argumentações, atentando para o fato de que o meu pensamento está mais que validado por mim, de que estou realmente de acordo com as minhas constatações.

acho importantíssimas as divergências por isso. elas me norteiam vida afora.

mais uma vez, você encontra-se coberto de razões!

(que bom!!)

beijú!!!

wilsonluques@ig.com.br disse...

´Ato Falho: o pior do males é transformarmo-nos naquilo que, supostamente´,abominamos.´ Abominamos?

Climacus disse...

Num texto precursor no Brasil, Antonio Candido sustentou que Nietzsche teria sido mal interpretado, não só como anti-semita, como pelo totalitarista, viva a leveza desse pensamento de noventa e um anos!

Antonio Cicero disse...

Saulo,

É claro que Husserl, sendo um grande pensador, é extremamente original e importante. Não se discute isso. Kant, Hegel e Nietzsche, por exemplo, também o foram. O próprio Heidegger reconhece a grandeza tanto destes quanto daquele. Esse reconhecimento, entretanto, não o impede de pensar que todos eles se encontram na órbita da última etapa da metafísica, inaugurada pelo cogito de Descartes. E não se deve subestimar a importância de Descartes para o próprio Husserl, segundo o qual, com toda razão, Descartes efetua “a grande virada que, levada até o fim, conduz à subjetividade transcendental: a virada para o ego cogito como o chão último e apoditicamente certo sobre o qual toda filosofia radical precisa se fundamentar” (“Die pariser Vorträge”).

Abraço

Antonio Cicero disse...

Edson,

não é o mesmo livro. Este se chama "Heidegger: l'introduction du nazisme dans la philosophie". É um livro muito documentado, de quase seiscentas páginas. Não concordo com algumas das suas interpretações, mas ele não pode ser ignorado.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Catatau,

Em 1936, Karl Löwith, ex-aluno e amigo de Heidegger, comentou com o ex-mestre que estava convencido de que a adesão deste ao Nacional Socialismo provinha da essência da filosofia. "Heidegger", diz ele, "concordou comigo sem reservas e adicionou que seu conceito de 'historicidade' era a base do seu engajamento político".

Mas observo que não é por causa dessa revelação que penso que Heidegger era nazista: eu já o sabia antes de conhecê-la, pois, segundo penso, a filosofia exposta em "Ser e tempo" já é proto-nazista.

Abraço

Saulo disse...

Sim, mas acho que pode haver clara distinção entre "a órbita", como Heidegger disse, e buscar o "solo", como Husserl disse. A filosofia muda completamente depois disto, no meu entender, e acho que você compreende, e Heidegger também deve ter compreendido, pois quis recusar a órbita, como você falou. É a chamada "inversão da revolução copernicana", ocorrida bastante tempo depois de Kant na filosofia transcendental. Este evento é decisivo na filosofia do nosso tempo, e pouco falado. Tem a ver com a minha pesquisa de doutorado, e com o meu interesse depois de concluí-la.
Era só isso o que eu tinha para dizer, além da minha profunda admiração e respeito por você.

Abraço,

Catatau disse...

Como sou leitor neófito de Heidegger, gostaria de insistir um pouco mais:

Por exemplo, em termos de pensamento é curiosíssima a adesão de Heidegger a um regime ligadíssimo a outro pensamento, este sim manifestamente implicado com o nazismo, que é o de Henry Ford. Como esses elementos se correlacionariam?

É como se um pensamento que depois se deparou explicitamente com a questão da técnica fosse ele mesmo tributário do que critica.

Nesse sentido, como poderíamos dizer que Ser e Tempo possui um proto-nazismo? Dizer isso me parece semelhante a dizer que Heidegger insere em seu próprio pensamento elementos criticados pelo próprio pensamento, por exemplo um conjunto de crenças ou "intelecções epocais" ou modalidades comportamentais (ou "modos de ser junto ao ente", não sou familiar à terminologia) alcançaria legitimidade ontológica (valeria como "existencial": repito, não sou familiar) e Heidegger acabaria confundindo as esferas ôntica e ontológica.

Que Heidegger foi entusiasta ou no mínimo conivente com o nazismo, isso parece claro. Mas gostaria de insistir: e esses episódios da vida e da letra de Heidegger que "parecem ser" nazistas efetivamente o são de modo a comprometer seu próprio pensamento?

abraço!

Gilberto Feltrim disse...

Caro Antonio Cícero,
Sempre leio os textos que você escreve para a Folha De S. Paulo e admiro muito as tuas palavras. Também escrevi sobre a questão Heidegger-Nacional Socialismo e aproveito para divulgar o meu texto. Ficaria infinitamente lisonjeado se pudesse ler. O endereço do texto, no meu blog, é este: http://gilbertofeltrim.wordpress.com/2009/12/31/edith-stein-o-intelecto-e-os-intelectuais/
Abraço,
Gilberto.

Anônimo disse...

Caro ACicero,

Parece que ainda não está claro para seus leitores o que exatamente no pensamento heideggeriano você considera protonazista. Ou será que o considera assim na sua totalidade?

Mas o que eu queria mesmo saber é se você considera protonazista toda e qualquer crítica à modernidade. Não lhe parece possível ser crítico da modernidade sem ser totalitário? Penso p.ex. no autointitulado antimoderno J. Maritain, conhecido no Brasil sobretudo por seu "humanismo integral".

De qualquer forma, acho sempre arriscada a classificação de um grande filósofo: Heidegger [que, na minha opinião, não é um pensador da mesma grandeza que Platão, Kant ou Hegel] pode ter-se enganado quanto ao nazismo, ou pode ter-se enganado quanto ao próprio pensamento ou... A relação entre pensamento e vida não é algo tão simples, muito menos para aqueles que vivem do pensamento.

Abraço,
edgil

Eleonora Marino Duarte disse...

pensador,

já havia lido o texto na folha e deixei passar alguns dias da data em que postou para justamente poder enriquecer minha leitura com os comentários e as questões levantadas pelos leitores e respondidas por você.

ressalto com urgência: parabéns pela defesa de suas ideias e pela aceitação e compreensão para com as ideias alheias! liberdade verdadeira de expressão.


quanto ao texto

é, como de costume, profundamente embasado em conhecimento e leitura e muitíssimo bem escrito, não à toa está no mais confiável jornal do país.

grande abraço

Antonio Cicero disse...

Catatau,

Veja bem: Heidegger aderiu formalmente ao Partido Nacional Socialista; mas, na verdade, ele antecipou a ideologia nacional socialista. O próprio Heidegger tomava seu pensamento como o verdadeiro fundamento do nacional-socialismo, que os nazistas mais ou menos intuíam. Isso quer dizer que, se os nazistas reais fizessem alguma incompatível com as concepções dele, Heidegger considerava que eles é que não estavam sendo suficientemente radicais no seu nacional-socialismo. E ele, de fato, acabou por criticá-los desse modo, depois da guerra.

Seja como for, mesmo apreciando o anti-semitismo e, sobretudo, o dinheiro e as fábricas de Henry Ford, a ideologia nazista está infinitamente mais próxima de certos temas que já se encontram em Ser e tempo – solo, comunidade, nação, destino, autenticidade, decisão etc. – do que de Ford. Só mesmo os neo-heideggerianos posmodernos podem, sem o menor fundamento (mas por que me surpreendo, se eles não acreditam em fundamentos?) pretender o oposto.

Desculpe-me a sinceridade, mas o parágrafo em que você fala de “intelecções epocais” e da confusão entre as esferas ônticas e ontológicas é que me parece uma confusão.

De todo modo, como é que alguém pode achar que sabe melhor do que o próprio Heidegger – que, como eu já disse, reconheceu explicitamente que sua adesão ao nacional socialismo proveio da essência da sua filosofia -- sobre o que é e o que não é compatível com a filosofia dele?

Abraço

Antonio Cicero disse...

Gilberto,

li o seu artigo comparando o texto da Edith Stein com o discurso de Heidegger e achei muito interessante.

Abraço

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

As implicações políticas do pensamento de Heidegger têm clara afinidade com o nazismo. Quem quiser saber com detalhes por que digo isso deve ler dois textos meus: o § 19: Heidegger, de O mundo desde o fim e o ensaio “A sedução relativa”, no livro A condição humana, organizado por Adauto Novaes e publicado pela Companhia das Letras.

Fora isso, acho que os leitores de boa vontade entendem perfeitamente que um pensador que, como digo no meu artigo, rejeita, antes do surgimento do nazismo, a modernidade filosófica, o iluminismo, o individualismo, o humanismo e o universalismo, enquanto exalta o que considera a autenticidade do indivíduo que se sacrifica em prol do destino particular da comunidade e do Estado a que pertence é protonazista.

Não é a crítica à modernidade que é totalitária, pois a modernidade é a época da crítica: é a rejeição radical da modernidade que não pode deixar de sê-lo: exatamente porque implica na rejeição da crítica.

Edson, se seguirmos a sua orientação, então não se pode dizer absolutamente nada sobre um grande filósofo, já que ele mesmo “pode ter-se enganado quanto ao nazismo, ou pode ter-se enganado quanto ao próprio pensamento ou...” Não concordo. A filosofia tem a ver com coisas sobre as quais podemos nos enganar. Nem por isso devemos deixar de fazê-la. É exatamente sobre as ideias dos grandes filósofos que devemos afirmar coisas. Se ninguém afirmar nada, não há discussão, não há filosofia, não há nada.

Abraço

Anônimo disse...

Caro ACicero,

Acho que não fui claro. Tenho mais boa vontade para ler do que para escrever...

Como sabe, um pensador posterior pode compreender o anterior melhor que este mesmo se compreendia.

Assim Heidegger pode ter-se enganado acerca das implicações práticas de seu pensamento teórico, p.ex.

E pode ter-se enganado a respeito do nazismo, assim como outros milhões de alemães se enganaram. Ou assim como um cartesiano como Sartre se enganou com o maoísmo.

Heidegger aliás mudou de ideia sobre coisas mais relevantes do que essas, tanto que ele mesmo falava de uma Kehre de seu pensamento.

Quanto à modernidade, será que você não está exigindo de Heidegger e de todo crítico da modernidade que eles tenham a mesmíssima concepção de modernidade e de crítica que você?

Fichte, p.ex., que era mais kantiano que Kant e mais cartesiano que Descartes, dificilmente conseguiria passar na prova de fogo da modernidade crítica tal como você a concebe.

Fichte, assim como Maritain e muitos outros, eram críticos da crítica pela crítica. Mas, mais que isso, em certo sentido, eram mais modernos que os modernos, ao acusarem estes últimos de falta de radicalismo, à medida que não levaram a crítica às últimas consequências, a ponto de desmascarar o fundo não teórico do pensamento teórico.

Falando nisso, e quanto ao Husserl da Lebenswelt e da Crisis? Você acha que o pai da fenomenologia transcendental teve uma recaída por assim dizer "heideggeriana"?

Abraço,
edgil

Anônimo disse...

Antônio Cícero,

espero não estar sendo inconveniente, mas quero voltar à discussão sobre fé, ciência e Deus, em janeiro. Você disse então, a certa altura, que estava com muito trabalho e que ia viajar, mas que, ao regressar, continuaria a discussão com o Edison. Como esta estava me interessando muito, fiquei esperando, mas você nunca a retomou. O que eu queria saber é o que você pensa da afirmação do Edison de que os conceitos fundamentais da ciência, como o de Lei, provêm da religião.

Abraço,
Marcelo Silva

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Suas objeções são inteiramente deslocadas, no que diz respeito a Heidegger. Até mesmo propô-las já é trair o pensamento dele.

A tese de que “Heidegger pode ter-se enganado acerca das implicações práticas de seu pensamento teórico” simplesmente ignora que, entre outras coisas, ele se esforça, pelo menos desde Sein und Zeit (v. p. 316, por exemplo), para superar essa dicotomia, para ele metafísica, através do conceito de Sorge. Cito-o:

“Die Kennzeichnung des Denkens als theoria und die Bestimmung des Erkennens als des ‘theoretischen’ Verhaltens geschieht schon innerhalb der ‘technischen’ Auslegung des Denkens. Sie ist ein reaktiver Versuch, auch das Denken noch in eine Eigenständigkeit gegenüber dem Handeln und Tun zu retten”. (Über den Humanismus, p.6)

“A caracterização do pensamento como theoria e a determinação do conhecer como comportamento ‘teórico’ já acontece dentro da interpretação ‘técnica’ do pensamento. É uma tentativa reativa para ainda preservar para o pensamento certa autonomia em relação ao agir e fazer”.

A tese de que pode ter-se enganado “como milhões de outros alemães” esquece duas coisas. Primeiro, que ele não tomou conhecimento da ideologia nacional socialista como os demais alemães, mas a antecipou e chegou a considerá-la insuficientemente radical. Segundo, que ele mesmo jamais reconheceu ter-se enganado. Basta ler a entrevista a Der Spiegel, em que ele rejeita a democracia e afirma que, quando os franceses começam a pensar, falam alemão, pois não conseguem fazê-lo na sua língua...

Outro grave erro é pensar que a Kehre se refere a uma mudança no pensamento dele. Ele mesmo o negava enfaticamente. Cito-o:

“Die Kehre ist in erster Linie nicht ein Vorgang im fragenden Denken; sie gehört in den durch die Titel ‘Sein und Zeit’, ‘Zeit und Sein’ gennanten Sachverhalt selbst.[...] Die Kehre spielt im Sachverhalt selbst. Sie ist weder von mir erfunden, noch betrifft sie nur mein Denken”. (Das Denken der Kehre)

“A virada não é em primeiro lugar um processo do pensamento que questiona; ela pertence ao próprio fato que é nomeado pelos títulos “Ser e tempo’, ‘Tempo e ser’. [...] A virada opera no próprio fato. Ela nem foi inventada por mim, nem pertence apenas ao meu pensamento”.

É absurdo dizer que, a menos que eu suponha que Heidegger tenha a mesma concepção de modernidade que eu, não poderei dizer que seu pensamento converge com o nazista. Repito que, a menos que ache que eu estou mentindo, qualquer um reconhecerá essa profunda afinidade ao ler minha afirmação de que, em Ser e tempo, Heidegger rejeita a modernidade filosófica, o iluminismo, o individualismo, o humanismo e o universalismo, enquanto exalta o que considera a autenticidade do indivíduo que se sacrifica em prol do destino particular da comunidade e do Estado a que pertence.

Sobre Fichte, Maritain, Husserl e outros, repito o que disse acima: não é a crítica à modernidade que é totalitária, pois a modernidade é a época da crítica: é a rejeição radical da modernidade que não pode deixar de sê-lo: exatamente porque implica na rejeição da crítica.

Finalmente, parece-me questionável a sua concepção da modernidade. Então a modernidade, para você, é o radicalismo, seja qual for? E qual é o “fundo não-teórico do pensamento teórico”? Quer dizer que você acha que há um “fundo não-teórico” da filosofia? Então você não está perdendo tempo, ao estudar e praticar filosofia, no lugar de ir direto ao seu “fundo não-teórico”? E você acha que há um “fundo não-teórico” da própria razão? Estou curioso.

Abraço

Anônimo disse...

ACicero,

O seu método hermenêutico é curioso. Você simplesmente acredita na autointerpretação do filósofo. Nem Francisco de Assis seria tão caridoso!

A Kehre representa uma virada de 180 graus [e não de 360, hehe] no pensamento heideggeriano: inicialmente, Heidegger buscava acesso ao Sein por meio do Dasein, o homem, depois, tendo radicalizado a crítica à tradição metafísica, isto é, à filosofia ocidental de Sócrates a Nietzsche, passou a buscar o acesso ao Seyn diretamente, "escutando" e atendendo a seu chamado, à sua con-vocação, hehe.

Parece que os pensadores --e sobretudo os seus discípulos!-- têm uma tendência a reinterpretar o passado a fim de harmonizá-lo com o presente. Parece não ser muito legal pra eles mudar de ideia...

Quanto à crítica de Heidegger à dicotomia teoria/práxis, própria, segundo ele, da metafísica, bem, desde quando essa tese --ela mesma metafísica-- é verdadeira? Desde que ele a enunciou? Então, porque Heidegger acreditava que p, p é verdade? E, mais ainda, porque Heidegger acreditava que p, ele vivia segundo p? Como é que você sabe disso tudo?

Não pretendia defender Heidegger. Mas acho mesmo um exagero classificá-lo de nazista ou até de protonazista. Você mesmo admite que sua filosofia não é racista. E o que é o nazismo sem o racismo, o mito "fundador" ariano?

Quando aos pressupostos não teóricos do pensamento teórico: o pensamento teórico é apenas uma das expressões da pessoa. Considerado isoladamente, é apenas uma abstração. Por isso, para Descartes o fundamento da ciência é o cogito, mas o fundamento da realidade não é o cogito e sim Deus. A mesmíssima coisa vale para Fichte, para quem a condição de possibilidade da filosofia transcendental é a religião do Absoluto, ou o cristianismo joanino, na interpretação dele.

Nesse ponto, portanto, Heidegger não viu nada de novo. A separação entre teoria e prática é derivada de uma unidade existencial pré-teórica. [Dê uma espiada nos trabalhos do JANKE sobre Fichte.] O problema é que ele acaba sucumbindo ao historicismo à medida que temporaliza o Ser. E o relativismo é um beco sem saída, como sabe.

Enfim, não concordo com você quanto ao que viria a ser uma rejeição radical da modernidade. Eu acho muito bem possível valorizar o indivíduo sem desvalorizar a comunidade, p.ex. Bem como creio na possibilidade de um iluminismo não ateu etc.

Abraço,
edgil

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Surpreendente é o SEU método hermenêutico. A palavra “Kehre” não foi aplicada à obra de Heidegger de fora para dentro, por comentadores ou críticos. Ela foi empregada a partir do uso que dela fizera o próprio Heidegger. Trata-se de um conceito que ele emprega desde 1928, logo, desde apenas um ano após Sein und Zeit, para designar o que chama de “analítica da temporalitas do ser”, que se seguirá à analítica existencial. Como você deve saber, “Ser e tempo” seria seguido por “Tempo e ser”. O conjunto dos conceitos-chaves de um filósofo, como você também deve saber, encontram-se em relação estrutural uns com os outros, de modo que cada um deles adquire um teor próprio, que não se reduz ao seu significado dicionarizado. É tão absurdo criticar minha referência ao uso que Heidegger faz dessa palavra quanto seria criticar alguém que procura saber como é que ele usa a palavra “Dasein”.

A tal “virada de 180 graus” é um mito. Todos os filósofos evoluem, é claro, mas, nesse ponto, o que é notável em Heidegger é sobretudo a ausência de rupturas no seu trabalho

Quanto à dicotomia teoria/práxis: a radicalidade de Sein und Zeit manifesta-se também justamente no fato de que, nessa obra, não se separa a filosofia teórica da filosofia prática. Esse é um dos efeitos da radicalização da historicidade que se evidencia em primeiro lugar no conceito de Dasein: Da-sein. É por isso que, em Sein und Zeit, já se pode encontrar o nacional socialismo in nuce. Assim, os conceitos de Dasein, existência, decisão, Auf sich selber stehen, querer seu destino etc. que Heidegger emprega nos discursos político-filosóficos de 1933, como “A auto-afirmação da Universidade”, já se encontram em Sein und Zeit.

Quanto a Heidegger ser nazista, não sei como pode haver dúvida. Depois do reitorado, em 1936, ao fazer uma conferência em Roma, Heidegger visitou seu amigo e ex-aluno Karl Löwith, judeu. Pois bem, como relata Löwith (que no entanto, como aluno fiel, procura entender o comportamento de Heidegger, e não criticá-lo) não ocorreu a Heidegger sequer tirar a cruz suástica da lapela. Quando digo que ele não era racista, quero dizer que sua filosofia não comportava nenhum elemento biologista. Por isso mesmo, ele se permitia ter amigos judeus. No entanto, isso não significa que ele não pudesse pensar que, de maneira geral (isto é, malgrado exceções), os judeus, na Alemanha, constituíssem, do ponto de vista cultural, elementos cosmopolitas, logo, diruptivos em relação à unidade e solidariedade comunitária germânica. Isso lhe permitiria, “fechar os olhos” para a perseguição nazista aos judeus. Em Sein und Zeit ele diz que o inimigo não é apenas “vorhanden”, isto é, dado, mas que o Dasein, para não se embotar, deve forjar seu inimigo. Não é esse um dos principais motivos do antissemitismo nazista?

Quanto à minha pergunta sobre os pressupostos não teóricos da teoria, você simplesmente a diluiu. E, para variar, voltou à religião...

Abraço

Antonio Cicero disse...

Caro Marcelo Silva,

Vou ser sincero. Considero essa discussão anacrônica, pois penso que, de direito, o tempo das religiões – felizmente – já passou. No Ocidente, a própria teologia, no final da Idade Média, acabou (novamente, de direito) por enterrá-la. A filosofia moderna terminou o serviço.

E quanto a Deus? É verdade que ainda se fala de Deus, na filosofia moderna: mas o Dieu des philosophes não é mais o Dieu d’Abraham, e é até incompatível com este. Ele é um Deus que não existe, isto é, não ex-siste, não se separa do próprio mundo, logo, como, aliás, diz Alberto Caeiro, não devia nem ser chamado de “Deus”.

Kant mostrou que as provas da existência de Deus são sofismas. E mostrou que não precisamos de Deus nem para conhecer o mundo, nem para agir moralmente.

Claro, como diz com razão o próprio Kant, “não é nada incomum através da comparação dos pensamentos que um autor exprime sobre seus pensamentos, compreendê-lo até melhor do que ele mesmo se compreende, na medida em que não determinou suficientemente o seu conceito e, com isso, ocasionalmente falou, ou mesmo pensou, contra sua própria intenção”. Isso se aplica a ele mesmo, no que diz respeito à questão de Deus. A ideia de que seja necessário Deus para corrigir as injustiças deste mundo, recompensando os bons e punindo os maus, não passa de wishful thinking. Não vale. It’s just not good enough.

Para mim, portanto, é mínimo o interesse numa discussão sobre religião ou sobre Deus. Concordo inteiramente com o filósofo John Searle quando ele diz que

“Acho que algo muito mais radical que um declínio da fé religiosa ocorreu em nosso mundo. Para as pessoas cultas, o mundo se tornou desmistificado. Ou antes, para ser mais preciso, deixamos de tomar os mistérios que vemos no mundo como expressões de algo sobrenatural. Não mais consideramos os acontecimentos estranhos como exemplos da ação de Deus através da linguagem dos milagres. Os acontecimentos estranhos são apenas acontecimentos que não compreendemos. O resultado dessa desmistificação é que já estamos para lá do ateísmo, num ponto em que o assunto já não nos interessa à maneira em que interessava às prévias gerações”.

Por isso, e porque achei que a discussão estava a se tornar circular, e que eu estava a me repetir, Resolvi abandoná-la.

O assunto que você menciona, isto é, a tese de Edson de que os conceitos fundamentais da ciência, como o de lei, provêm da religião, é um exemplo. Já no artigo “A evolução e a natureza” (http://antoniocicero.blogspot.com/2008/09/evoluo-e-natureza.html), aqui postado em 2008, eu havia explicado que as leis naturais não podem ser confundidas com as leis humanas, pois são descritivas e não, como estas, prescritivas. Elas apenas descrevem as coisas. Uma descrição não tem a menor necessidade de religiões para existir.

Em suma, fora da arte e da ficção, as ilusões, os fantasmas e os monstros servem somente para atravancar e reprimir a vida, que em nada precisa deles para ser, como é, imensamente misteriosa, esplêndida e terrível.

Abraço

Anônimo disse...

Cicero,

A Kehre não é um mito. Decerto não conheço Heidegger como você, mas conheço-o o suficiente para afirmar isso com tranquilidade. Como você mesmo diz, este é um conceito que Heidegger emprega DEPOIS de Ser e tempo. E é óbvio que ele deva ter alguma relação lógica com as ideias de sua obra-prima. Mas, no caso, não se trata de uma relação de consequência, mas, sim, para o desgosto do grande filósofo, de uma relação dialética: da tese ["subjetivista", baseada no Dasein] fracassada de Ser e tempo --que por isso mesmo permaneceu inacabado-- emerge a antítese da Kehre ["objetivista", baseada no Sein]. Basta fazer uma pesquisa rápida no Google para encontrar apoio a essa interpretação, p.ex., de Loparic e Vattimo. Além disso, dê uma olhada no capítulo sobre Heidegger do livro do Bornheim, Dialética, teoria, práxis. Ele começa dizendo que se limitará ao pensamento heideggeriano posterior a Ser e tempo, porque nesta obra a práxis não é considerada na sua dimensão ontológica.

Não pretendo continuar essa discussão porque esse tema [do nazismo heideggeriano --que, ratifico, você mesmo nega à medida que nega o racismo heideggeriano: sem o racismo biológico, portanto sem o Holocausto, nós nem estaríamos discutindo essas coisas] na verdade não me interessa tanto. A perspectiva do Loparic, no seu Heidegger réu, parece-me mais interessante, uma vez que, a partir do caso Heidegger, ele tenta imaginar um tribunal apto a julgar a periculosidade da filosofia em geral, esboçando, inclusive, uma teoria geral das ideologias.

Quanto à sua pergunta, não a diluí. Apenas fui sucinto. Cada vez duvido mais que se possa realmente pensar a partir do zero, independentemente das crenças básicas de nossa visão de mundo. A dúvida de Descartes é apenas metódica, não existencial. E como não podia esperar pelo pensamento para viver, definiu uma moral provisória baseada em valores tradicionais. Esse era o pai do racionalismo, o homem do cogito. O pensamento tem uma prioridade lógico-epistemológica em relação à existência e ao mundo, mas não uma precedência ontológica. Como dizia Fichte, o pensar é apenas uma das determinações do ser.

A verdade não é histórica, mas só pode ser apreendida pessoalmente, ou seja, historicamente (Pareyson, mas também Conche).

Quando afirma que vivemos num tempo pós-religioso e que não precisamos da religião para nada, aí fica claro para mim que estamos mesmo falando sobre coisas diferentes --e em línguas diferentes! E aquela história do Searle sobre as pessoas cultas é tão ridícula, que nem vale a pensa perder tempo com ela. Podia muito bem ser narrada do púlpito da igreja positivista... -- A maioria das pessoas verdadeiramente cultas que conheço, como o Hoesle p.ex., é religiosa.

Enfim, sem mistério não há filosofia. Pode haver um arremedo de filosofia, como a praticada pelo próprio Searle, que transforma a filosofia numa solucionática de enigmas intelectuais.

Abraço,
edgil

Anônimo disse...

As duas "autoridades" que citei:

1) IHU On-Line – Se o ente está lançado no mundo, como entender sua responsabilidade individual e política?
Gianni Vattimo – Acredito que o Heidegger dos anos 1930, aquele depois da Kehre, se deu conta de que a autenticidade da qual falava Ser e Tempo não é algo que se possa procurar “sozinho”. Autenticidade significa co-responder à chamada do ser; mas o ser assim entendido é também a própria comunidade, a sociedade na qual se vive, etc. Também, por isso, Heidegger se empenhou com Hitler, errando. Mas devemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch estavam com Stalin , Giovanni Gentile , com Mussolini etc.

2)Breve nota sobre Heidegger como leitor de Jünger, por Zeljko Loparic
...Como é sabido, o cotidiano analisado em Ser e tempo é o do uso de objetos, cujo modelo é o trabalho artesanal. Não há nenhuma menção ao trabalho industrial, no sentido moderno, tal como explicitado, por exemplo, por Marx. A partir de 1930, esse panorama muda e Heidegger começa a perceber que o que caracteriza a nossa época não é o cotidiano caseiro, analisado em Ser e tempo, mas a técnica, tal como descrita por Ernst Jünger, nos seu artigo "Die totale Mobilmachung" ("A mobilização total"), de 1930, e no seu livro Der Arbeiter (O trabalhador), publicado em 1932. A leitura de Jünger levou Heidegger às seguintes conclusões: 1) que a sua fenomenologia da facticidade (do cotidiano) de 1927 é ainda ingênua, 2) que ela não representa um ponto de partida adequado para formular a questão do ser nos dias de hoje, 3) que a técnica moderna, pensada no horizonte da metafísica nietzschiana da vontade de poder, é o sentido do ser que prevalece, 4) que, portanto, Nietzsche é o pensador decisivo a ser consultado em qualquer tentativa de compreender e ultrapassar esse sentido do ser. Essas conclusões levaram Heidegger a constatar o fracasso do projeto de repensar o sentido de ser em termos da ontologia fundamental, exposta em Ser e tempo, e a procurar outros horizontes para essa pergunta, crise que resultou na Kehre, isto é, na introdução do conceito de acontecência do ser (Seinsgeschichte), característico da segunda fase do pensamento heideggeriano.1

Anônimo disse...

Uma terceira --e última!-- "autoridade" [Aubin]:

http://www.scribd.com/doc/7253219/Aubenque-Ainda-Heidegger

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Parece-me que a verdadeira Kehre se dá nas concepções metodológicas que você defende. Há poucos dias, quando, discutindo com você sobre Kant, citei alguns autores, você respondeu que “a minha interpretação está baseada em Kant, e não em intérpretes e na história das ideias”. Agora você cita “autoridades” como o arauto (e eminente representante) do pensamento fraco, Vattimo, e Loparic para se contrapor ao que Heidegger fala do seu próprio pensamento. Pois bem, volto ao próprio Heidegger, contra essa ideia de “subjetivismo”, com ou sem aspas, de que você fala. Acho que as palavras dele realmente permitem compreender o que entendo pela continuidade (e descontinuidade apenas relativa, mais aparente do que real) do seu projeto. Leia o que ele diz em Über den Humanismus:

“Quando se compreende o projeto mencionado em Ser e Tempo como um posição representacional, então ele, então ele é considerado como uma realização da subjetividade e não do único modo em que pode ser pensado, como o ‘entendimento do ser’ no campo da ‘analítica existencial’ do ‘estar no mundo’, isto é, como a relação extática à clareira do ser. O acabamento e a conclusão suficientes desse outro pensamento que abandona a subjetividade foi realmente dificultado pelo fato de que, à publicação de Ser e Tempo, a terceira seção da primeira parte, Zeit und Sein, foi omitida (ver Ser e tempo, p.39). Nesse ponto, tudo se revira [Hier kehrt sich das Ganze um]. A seção em questão não foi publicada porqeu o pensamento falhou no dizer suficiente dessa virada [Kehre] e não conseguiu fazê-lo mediante a fala da metafísica. A conferência intitulada “Da essência da verdade”, que foi concebida e pronunciada em 1930, mas impressa somente em 1943, faz um pouco entrever o pensamento da virada [das Denken der Kehre] de Ser e Tempo a Tempo e Ser. Essa virada [Kehre] não é uma mudança do ponto de vista de Ser e Tempo, mas somente nela o pensamento buscado alcança o lugar da dimensão a partir da qual Ser e Tempo é experimentado e mesmo experimenatdo a partir da experiência fundamental do esquecimento do ser.”

Seja como for, quer você prefira as interpretações vulgares que cita, quer aceite a interpretação que proponho a partir do próprio Heidegger, considero encerrada, no que me toca, esta discussão.

Vejo que você cada vez mais opta pelo irracionalismo: o que, para mim, é perfeitamente inteligível, uma vez que hoje está claro que não há possibilidade de racionalmente defender qualquer tipo de religiosidade ou crença em Deus.

Como eu já disse, não é necessário Deus para reconhecer o mistério do mundo. Aliás, Ele é frequentemente invocado como consolo, pelos que não suportam esse mistério.
Abraço

Abraço

Anônimo disse...

ACicero,
Às vezes, aquela sua caridade franciscana simplesmente desaparece... Só citei as "autoridades" para mostrar --para um eventual leitor-- que não estou sozinho na minha interpretação da Kehre, em que, aliás, pelo menos no que se refere aos professores Loparic e Bornheim, estou muito bem acompanhado.
E se me dá licença, discordo de Heidegger. Acho que o ele mudou com a Kehre foi justamente "o ponto de vista". E isso não é uma mudança sem importância, muito menos aparente. A mudança de foco do sujeito para o objeto, sem aspas, representa um retrocesso do paradigma epistemológico moderno para o metafísico antigo e medieval. Com a Kehre, Heidegger tornou-se um filósofo antimoderno, de uma ingenuidade pré-kantiana, em virtude de sua pretensão de aceder diretamente ao ser, pulando por assim dizer por cima da própria sombra.
Claro que o digo contradiz o que afirma o próprio Heidegger --e daí? Afinal, ele não pretendia ser um pensador não metafísico? Pretendia, mas, evidentemente, não o conseguiu, porque, como ele mesmo admite com relação a outros aspectos, não é possível superar a modernidade, pensar com as categorias de um paradigma ultrapassado.
Estou muito longe do irracionalismo. Apenas não reduzo a razão à razão instrumental. --Você considera Fichte como um irracionalista?
A sua visão da religião e de Deus é totalmente equivocada. Quem, como você diz, acredita em Deus como consolo, por não suportar o mistério, simplesmente não acredita em Deus, o maior dos mistérios, ora. Será que Eckhart ou o Cusano tinham medo do mistério? Edith Stein e Simone Weil devem ter sido umas grandes medrosas, não é?
Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Edson,

Eu já encerrei esta discussão, no que me diz respeito, mas não posso deixar de lhe dar um conselho: se você quiser minimamente entender Heidegger, jamais empregue conceitos como “ponto de vista”, “sujeito”, “objeto”, “paradigma”...

Para os irracionalistas, Deus é o mysterium tremendum; com este, provocam o pavor, para o qual, em seguida, oferecem o próprio Deus como a cura, o consolo, o tapa mistério. Deus é um mistério fake. É preciso reconhecer a finitude e o mistério, e ter a coragem de saber que nada seria capaz de tapá-lo.

Uma última observação: não sei como pode escapar-lhe que o misticismo de Ekhart e de Cusano – e todo misticismo profundo – são, no fundo, caminhos para o ateísmo moderno.

Abraço

wilson luques costa disse...

Prezados,
Uma máxima que me assoma:

`Um filósofo ateu é o pontífice sacerdote da destruição; o seu ofício é eliminar todos os credos, exceto os seus.
grato

Anônimo disse...

ACicero,
Também eu não posso deixar de dizer que esses conceitos são empregados pelo próprio Heidegger no trecho que você mesmo citou. Inclusive o de paradigma, embora com outras palavras.
Quanto ao misticismo profundo levar ao ateísmo moderno, isso vai depender do que você entende por ateísmo. Se entende a negação do Deus pessoal da religião, concordo. Mas essa negação é, para místicos como Gregório Palamas, Ibn Arabi e S. João da Cruz, apenas parte da história, o começo do caminho de acesso à verdadeira Divindade. Coisa que os ateus evidentemente jamais vão entender.
Abraço,
edgil

Antonio Cicero disse...

Wilson,

a destruição, as perseguições, as torturas, as execuções, as fogueiras foram frequentemente feitas em nome do Deus das religiões monoteístas, jamais em nome do ateísmo.

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Sim, Heidegger usa esses conceitos nesse texto exatamente para dizer que não devem ser usados em relação a ele. O que Heidegger diz é que, quando seu pensamento é tomado como realização da subjetividade, não é entendido; que seu pensamento abandona a subjetividade (logo, a correlata objetividade); e que a Kehre não pode ser entendida como uma mudança de "ponto de vista". E não fala de paradigma. Esses coceitos são por ele considerados metafísicos.

O que é a "verdadeira divindade" jamais é dito. O que não pode ser dito pertence ao foro íntimo de cada um. Não tenho nada contra cada qual pensar o que quiser. Mas é um escândalo que aquilo que, por direito lógico, pertence exclusivamente ao foro íntimo seja apropriado e instrumentalizado por uma religião, pois as religiões são -- tautologicamente -- públicas. Necessariamente, as religiões traem a verdadeira divindade.

Abraço

Anônimo disse...

ACicero,
Me desculpe, mas tenho de insistir. A minha tese é justamente a de que Heidegger abandona o ponto de vista da subjetividade, tipicamente moderno, e tenta retornar ao pré-moderno, objetivista. Essa é uma interpretação não imanente do pensamento heideggeriano. E é óbvio que Heidegger não a aceitaria. Assim como a maioria dos filósofos de que ele trata nas suas obras, como Kant e Tomás, também não aceitaria sua interpretação.
Quando fala deste e daquele "pensamento", Heidegger está se referindo a paradigmas --e no sentido forte. Não é possível para os modernos vencer o niilismo metafísico porque esta é a essência do pensamento --do paradigma-- moderno. Paradigma não é um modelo, um construto teórico, mas uma estrutura cultural-histórica, uma mentalidade se quiser, que nos domina. Descartes não escolheu pensar contra a teologia dogmática, ele simplesmente não podia fazer outra coisa.
Você mesmo afirma que hoje é impossível aceitar determinadas ideias, nomeadamente as religiosas. O paradigma contemporâneo obriga-nos-ia a isso, ao ateísmo.
Mas e daí? Do fato de que não se possa sequer pensar contra o Zeitgeit não se segue que os contemporâneos estejam com razão.
Eu acho que Heidegger se ilude quando crê pensar, ou melhor, ser pensado por um pensamento futuro não metafísico. E que você também está equivocado quanto à irracionalidade da ideia de Deus e quanto à impossibilidade da religião hoje.
Ambos são dogmáticos e defendem suas crenças com ardor religioso. Entre a religião de vocês e as tradicionais, se me permite, fico as últimas.
As grandes religiões fazem, aliás, o contrário do que você diz. Elas funcionam como um antídoto contra a idolatria, a adoração de um deus substituto, de um Ersatz qualquer.
Como diz o Cusano, quem põe o seu tesouro no infinito o frui mais, pois só ele é inesgotável.
Abraço,
edg

Saulo disse...

O ateísmo é também o respeito à divindade, a recusa da sua imposição unilateral, pois até o sol se esconde - e como diria Hume, cada renascer dele é uma iniciação crítica, que se faz contra os doutrinadores da luz verdadeira.

Marcelo Pereira disse...

Wilson,

Só fico aqui calado, acompanhando a discussão. Mas essa sua "máxima"... Meu Deus!

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Quanto a sua primeira afirmação, não discordo totalmente. Mas é preciso observar que, se Heidegger exclui da sua filosofia as categorias de sujeito e objeto, é no processo de abandonar o que chama de “metafísica da subjetividade”, que, com razão, considera ser a característica da modernidade. Por isso, nada seria mais inadequado do que, por exemplo, entender o Dasein como sujeito.

É também verdade que, como a “metafísica da subjetividade” é, no fundo, a modernidade filosófica, que não é superável, ele não pode deixar de fracassar. Mas cuidado: dizer que ele volta ao pré-moderno dá a impressão de que ele volta ao pensamento pré-cartesiano, simplesmente. Ora, ele sabe que o pensamento cartesiano foi preparado desde pelo menos Platão. Por isso, sua pretensão é a de voltar aos pré-socráticos, não simpliciter aos pré-modernos. Ainda que seja verdade que, como eu disse, ele tenha fracassado nisso, o fato é que Heidegger tampouco pode ser situado entre Platão e Descartes. Essa é a originalidade dele. Creio que sua concentração na poesia, na última fase, e mesmo a malfadada poetização de algumas das obras desse período são um resultado da consciência da impossibilidade de superar filosoficamente a filosofia e a lógica modernas. Mas veja bem: o que estou tão esquematicamente dizendo sobre o projeto dele não capta a profundidade do que, ao tentar cumprir esse projeto, ele realiza em filosofia.

De todo modo, não foi essa a questão que suscitou nossas divergências sobre o pensamento e as atitudes políticas de Heidegger.

Quanto às suas teses sobre os “paradigmas”, discordo inteiramente. Não acredito em “estruturas cultural-históricas que nos dominem”. Tais seriam, por exemplo, as epistemai de Foucault, que resultam em autocontradições perfomativas. Aliás, nem Kuhn, que divulgou a noção de paradigma, concebia-o desse modo.

Minha tese não é que seja impossível o teísmo no nosso tempo, pois tenho olhos e ouvidos; o que digo é que a razão já nos mostrou que ele é inconsistente. Não há ideia definida ou definível de Deus que seja consistente. E sobre o inconsistente e indefinível é melhor calar. Na verdade, se concebermos Deus como infinito, por exemplo, ou como absoluto, então é simplesmente um sacrilégio tentar definir ou dizer qualquer coisa positiva sobre Ele; coisa, aliás, reconhecida pela teologia negativa, que também foi um caminho para o ateísmo; e cultuar um Deus separado, finito, é simplesmente idolatria: de modo que os religiosos -- mas não os ateus -- são, a meu ver, sacrílegos e idólatras.

Não há ardor religioso no que digo. Guia-me só a razão, não a fé. E não sou “pós-moderno”. Por isso, acredito que haja teses verdadeiras e teses falsas, tento chegar às primeiras; e, quando penso que talvez tenha alcançado alguma verdade, afirmo-a e tento prová-la. Absurdo seria não o fazer, e abandonar o campo aos que penso que dizem coisas falsas. Lê-me quem quer. Mas não vou à casa de ninguém para fazer proselitismo, nem distribuo folhetos e jornais, nem divulgo minhas ideias em alto-falantes, nem tenho programas de televisão, como tantos religiosos e nenhum ateu que eu conheça.

Abraço

Anônimo disse...

Caríssimo ACicero,

Muito boa a sua resposta, com a qual em grande parte estou de acordo. Obrigado.

Você diz que, por ter olhos e ouvidos, não nega a possibilidade do teísmo hoje, apenas o considera inconsistente do ponto de vista da razão. Ora, não é a mesma coisa? Afinal você está afirmando que o teísmo é um fenômeno extemporâneo.

E você encerra o seu comentário declarando não conhecer nenhum ateu que faça proselitismo, tenha programa de televisão etc. Uau! Acho que está precisando de óculos. A mídia em geral é virtualmente atéia. O que mais se vê nela é paganismo, panteísmo e ateísmo enrustido, prático. E diga-me lá: o que são o Dawkins, o Hitchens et caterva senão proselitistas?

Quando você diz noutro comentário que o ateísmo, contrariamente ao teísmo, não é responsável por torturas, fogueiras etc., então acho que os óculos já não bastam. O comunismo --regime declaradamente ateu-- cometeu [e ainda comete] mais crimes contra a humanidade do que o cristianismo.

Quanto à teologia negativa, só discordo das conclusões que você tira dela: que é melhor se calar, e que ela é causa do ateísmo moderno. Nós não somos apenas razão ou mente. Se nossas representações de Deus são necessariamente antropomórficas, portanto inadequadas, disso não se segue que 1) Deus não exista; 2) que não possamos saber nada sobre Ele, e 3) que os nomes de Deus sejam necessariamente ídolos.

Quanto a Heidegger, enfim, só um reparo. É claro que, para ELE, o Dasein não pode ser concebido como sujeito. Mas, para MIM, o Dasein heideggeriano continua sendo sujeito. Tentar pensar como os pré-socráticos é um empreendimento absurdo. Nós nem sabemos ao certo o que eles pensavam, muito menos como. A physis, o cosmos simplesmente deixou de fazer sentido para nós, e isso pelo menos desde Newton.

A alegada originalidade de Heidegger decorre da interpretação que ele mesmo faz de si. É só isso. Vários outros fizeram a mesma coisa, como Hegel, para citar o maior de todos autointerpretadores.

Abraço,
edgil

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

eis como fica, para mim, o nosso diálogo:

EDSON: Você diz que, por ter olhos e ouvidos, não nega a possibilidade do teísmo hoje, apenas o considera inconsistente do ponto de vista da razão. Ora, não é a mesma coisa? Afinal você está afirmando que o teísmo é um fenômeno extemporâneo.

AC: Claro que não é a mesma coisa. Que o teísmo seja irracional não significa que não haja teístas. Há muita gente irracionalista hoje, muita gente nostálgica do mundo fechado das religiões.

EDSON: A mídia em geral é virtualmente atéia.

AC: Isso é falso. Existem emissoras religiosas e programas religiosos; há enorme propaganda religiosa todo o tempo; a fé é considerada uma virtude etc. E acho que você sabe disso, ou não teria usado qualificativos como “virtualmente” e “enrustido”.

EDSON: O Dawkins, o Hitchens et caterva senão proselitistas.

AC: "Et caterva"? Você é o Edson mesmo ou o Olavo? Dawkins e Hopkins são gotas no oceano. O que eles fazem é feito, de modo muito mais desrespeitoso, há séculos, diariamente, pelos religiosos. Eles chegaram à conclusão apenas que era hora de revidar. Já que eles têm disposição para isso, acho ótimo que o façam.

Outro dia, uma senhora tocou a campainha da minha casa para me convidar a entrar numa comunidade cristã. Eu a recebi polidamente e lhe disse apenas que não estava interessado. O que ela faria se eu houvesse tocasse na capainha da casa dela para lhe dizer que abandonasse toda religião e entendesse que Deus não existe? Você dirá que ela tinha a melhor das intenções; que queria salvar minha alma; mas as minhas intenções, quando critico a religião, também são as melhores possíveis, pois acho que as religiões fazem mal aos indivíduos e ao mundo.

EDSON: O comunismo --regime declaradamente ateu-- cometeu [e ainda comete] mais crimes contra a humanidade do que o cristianismo.

AC: Primeiro, isso é uma bobagem, pois os crimes do comunismo não foram cometidos em nome do ateísmo, mas em nome da revolução socialista, da ditadura do proletariado etc. E hoje, cada vez mais, os revolucionários são religiosos: muçulmanos ou cristãos, pouco importa.
Segundo, o páreo é duro. Já que você lê em alemão, recomendo-lhe os livros do Karlheiz Deschner que, em dez volumes, contabiliza milhões de vítimas do cristianismo.

EDSON: Se nossas representações de Deus são necessariamente antropomórficas, portanto inadequadas, disso não se segue que 1) Deus não exista; 2) que não possamos saber nada sobre Ele, e 3) que os nomes de Deus sejam necessariamente ídolos.

AC: O problema não é, em primeiro lugar, que nossas representações sejam antropomórficas. O problema é lógico. Toda determinação de Deus o limita. Determinatio negatio est. Ora, um Deus limitado é um deus finito, como os pagãos ou um demônio. Que houvesse tal deus ou demônio ou deuses ou demônios não seria incompatível com a lógica, embora fosse extremamente improvável, mas seria pior do que não haver deus nenhum, pois nada poderia garantir que um Deus determinado fosse bom. Por isso, Deus é concebido como infinito: e infinito não apenas em extensão ou no tempo, mas qualitativamente. Mas tal Deus: (1) não possuiria qualidade ou determinação alguma, logo, ele não existiria, isto é, não ex-sistiria, não se distinguiria da totalidade (que, aliás, só pode ser concebida negativamente, como o que não se reduz a nada de finito) do que há; logo, não seria nada em particular; logo, não seria nada. Por isso, não poderíamos saber nada sobre Ele. Por isso também, a adoração de um deus particular – um deus pagão ou um demônio – só pode ser a adoração de um ídolo. Foi ante esse problema, isto é, ante a impossibilidade de se conciliar o Deus das religiões monoteístas com a lógica que, ao final da Idade Média, os melhores teólogos apelaram para o irracionalismo. Para eles, se a revelação era incompatível com a lógica, pior para a lógica. Seu lema passou então a ser: Abaixo a razão e viva a fé! Não aceito isso. Para mim, abaixo a fé e viva a razão!

Sobre Heidegger, cada um de nós já disse o que tinha que dizer.

Abraço

Anônimo disse...

Saulo,
Se a filosofia não combina com esse tipo de afirmação, então o próprio Heidegger não é filósofo. Ele classifica TODA a filosofia de Sócrates a Nietzsche como metafísica.

Mas ninguém disse aqui que Heidegger é só isso ou aquilo. Aliás, comecei dizendo que classificar o pensamento heideggeriano de nazista era uma coisa temerária.

Quanto a Deus, não tem jeito meu caro. A não ser que nos calemos wittgensteinianamente... Infinto e absoluto são sim predicados, mas são negativos. Afirmam que Deus não tem limites de espécie alguma.

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Agora sou eu que pergunto: que diabo de fiosofia é essa?

Não acredito que você não entenda que "o que não tem limites de espécie alguma" é o absolutamente indeterminado; e que sobre tal coisa nada de determinado pode ser dito; logo, que não há nada a ser dito sbre ela. Seguem-se todas as conclusões que tirei na resposta anterior.

Abraço

Saulo disse...

Os atributos negativos são fictícios, na verdade, e criam na mente sempre algo diverso do deus vivo invocado pelas religiões monoteístas. Só penso que o monoteísmo é temerário, pois quem não o aceita está excluído, e isto acontece também no monoteísmo da igualdade, o novo fanatismo frio que Sade denunciava - ao ser perseguido pela Revolução Francesa.

Um abraço,

Anônimo disse...

Ora. Cicero, Nicolau de Cusa chama esse diabo de filosofia de Docta ignorantia, enquanto Fichte fala de "concepção do inconcebível" [Begreifen des Unbegreiflichen]. Abraço, edg

Anônimo disse...

Cícero,

Nosso coração tem "razões" que a própria razão desconhece, diria o grande matemático.

Mas disso não se segue que as razões de um Cusano, um Fichte e de muitos outros modernos e pré-modernos, sejam irracionais no sentido de infrarracionais.

A intuição intelectual [Intellectus para o primeiro, intellektuelle Anaschauung para o segundo, intuitus para Descartes, habitus para os medievais] só não é discursiva como a ratio, o entendimento.

Os primeiros princípios são indemonstráveis, caso contrário não seriam princípios. Então não entendo a sua surpresa...

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Edson,

acho que você mesmo sabe muito bem que tudo isso não passa de tergiversação. É o que os religiosos sempre fazem nas discussões teológicas, sobretudo quando são inteligentes e cultos. Não me interessa entrar nesse jogo estéril. Desisto.

Abraço

Anônimo disse...

Antonio,

Eu não pretendia discutir o Absoluto neste espaço, muito menos participar de algum joguinho intelectual.

Não há nada mais estéril que o cogito ultracartesiano. A apócrise ciceroniana serve apenas para eliminar ídolos. Mas fica por aí. Não visa à verdade. Não serve para fundar coisa alguma, muito menos a moral.

A lei de ouro de que você se vale muitas vezes é imoral. É uma forma de egoísmo alargado, só isso.

Aliás, falando no outro, ainda não entendi como é que você concilia essa sua perspectiva a um tempo racionalista e utilitarista com a democracia, a tal da sociedade aberta.

Ninguém é obrigado a ler o que você escreve, mas também ninguém é obrigado a ver televisão ou apanhar panfletos ou escutar missionários ou votar em religiosos e em causas religiosas etc.

A democracia garante liberdade de expressão a todos, ateus, agnósticos e teístas. Se a maioria for a favor da eliminação dos símbolos religiosos nos espaços públicos, muito bem; mas se for contra, muito bem também. Quanto ao aborto e a qualquer outra questão de ordem moral, idem.

Então por que você se incomoda tanto com os religiosos?

Por causa da violência que eles praticaram e praticam? Ué, mas não há leis para isso? E por acaso a violência também não é praticada em nome da própria democracia?

Será que o problema não está no homem como tal, e não na religião?

Mas vamos deixar essa discussão para quando você escrever um artigo sobre o assunto.

Abraço do seu admirador,
edgil

Antonio Cicero disse...

Edson,

É incrível. Ao longo de três anos, toquei no tema da religião na minha coluna da Folha em dez artigos. São cerca de três por ano. No entanto, é tão raro alguém escrever algo que não seja elogio às religiões e à fé religiosa que lhe parece que meus artigos, dirigidos a uma fração diminuta do público do jornal, são equivalentes às redes de televisão e rádio, aos alto-falantes nas ruas, às milhares de publicações periódicas e aos inúmeros outdoors religiosos que incessantemente gritam slogans religiosos e atacam os cidadãos irreligiosos.

Você pergunta por que me incomodo com os religiosos. A pergunta é mal formulada. Não me oponho somente à religião, mas a toda barbárie, tanto religiosa quanto secular.

A barbárie é, como já expliquei em artigo de jornal, o que impede que vigore o princípio do direito segundo cada membro da sociedade deve usufruir a mais ampla liberdade compatível com igual liberdade alheia e com a existência da própria sociedade. Contra esse princípio universalista, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais por ele questionados, nem tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade -- ou até da humanidade -- qualquer comportamento alternativo, nem admite qualquer questionamento em relação às convenções pelas quais guia seu comportamento, seus rituais ou suas crenças.

Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -- porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família-- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto particular de hábitos, valores, crenças ou preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro. Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.

A barbárie religiosa não é prerrogativa dos países islâmicos – que justificam pela religião as práticas da lapidação das adúlteras, da clitorectomia, do enforcamento de homossexuais, do terrorismo e da escravidão – mas ameaça até os Estados Unidos, onde os fundamentalistas cristãos se associam à direita do Partido Republicano. Basta lembrar que eles aplaudiram quando o presidente Bush – um deles, pois “renascido em Cristo” – introduziu a tortura sistemática na prisão de Guantánamo. Agora mesmo a perseguição, a tortura e a execução de homossexuais na África foi estimulada por pastores americanos. E o movimento cristão Tea Party seria uma piada, se não fosse um perigo real.

E que dizer das atrocidades cometidas nas guerras resultantes de intolerância – de barbárie – religiosa, que ocorrem ou ocorreram na nossa época? Basta lembrar católicos vs. protestantes na Irlanda do Norte, muçulmanos vs. cristãos na Iugoslávia, hinduístas vs. muçulmanos, na Índia e – atualíssima – árabes vs. judeus, na Palestina.

Em suma, penso que a ameaça da barbárie religiosa é real e atual: por isso me preocupo com ela, como com toda barbárie.

Abraço

Luiz disse...

Edson,

Cicero não está só... Luc Ferry também se ‘incomoda’ com os religiosos.

Pelo fato de serem religiosas quase todas as barbáries atuais e, sobretudo, porque “as religiões traem a verdadeira divindade”.

Abraço,
Luiz

Saulo disse...

Cícero,

acho que a tua preocupação é a mesma do Spinoza, na Carta 76; e do Sade, em Contra o ser supremo; ambos são conversas com religiosos; na primeira está um padre recém-ordenado, cheio de cólera e ardor religiosos; na segunda, um cardeal, que torna-se interlocutor razoável e tolerante de um libertário encarcerado e morto pela revolução.

Não há lado para a barbárie, e só a liberdade e a razão podem mesmo afastá-la; temos que a todo momento reiterar isso, como você faz tão bem.

Abraço,

Antonio Cicero disse...

Saulo,

obrigado. Penso como você.

Abraço

Anônimo disse...

Luiz,

Você está duplamente equivocado.

O Ferry não é contra a religião, ele só acha que esta foi vencida pela filosofia, e que o transcendente se recolheu para o seio da família. O que é bem diferente da posição do Cicero.

Além disso, queria ver vc provar a sua tese segundo a qual quase toda barbárie existente é religiosa.

Como é que vc vai demonstrar, p.ex., para falar de um "argumento" empregado pelo Cicero, que o Bush começou uma guerra por motivos religiosos e não econômicos, políticos etc.? Sim, ele é cristão renascido, mas é também de uma família envolvida há gerações com o poder e dona de empresa de petróleo. Para não falar no seu vice, grande empreiteiro etc.

Aí vc talvez me venha com o "argumento" das guerras "religiosas", que, quando examinadas com mais cuidado, revelam conflitos seculares, às vezes milenares, entre etnias e culturas marcadas por diferenças tanto ou ainda mais profundas do que as religiosas. E assim por diante.

Eu queria saber como é que se pode medir a importância dos diferentes motivos que levam as pessoas à barbárie. Por que os religiosos são mais eficazes do que os demais?

O mesmo religioso que pratica um ato bárbaro é também membro de uma comunidade, de uma etnia, de um partido político, de um time de futebol etc.

A tese de vcs é irrefutável, além de explicar tudo com uma facilidade de dar inveja ao marxista mais vulgar.

Abraço,
edg

Anônimo disse...

Caros,

Alguns comentários atrás, o Cicero fez as seguintes afirmações: "Kant mostrou que as provas da existência de Deus são sofismas. E mostrou que não precisamos de Deus nem para conhecer o mundo, nem para agir moralmente".

Ora, Kant não mostrou que essas provas são sofismas, mas sim que quando tentamos conhecer algo que ultrapassa a experiência possível, nós caímos em contradição. Isso, parece-me, é algo muito mais grave que um sofisma. É um déficit estrutural da razão relativamente ao incondicionado.

Quanto à segunda afirmação, estou de acordo, mas com a --grave-- ressalva de que, se não precisamos de Deus, precisamos sim da IDEIA de Deus. Sem a ideia de Deus, uma ideia da RAZÃO, não há nem ciência nem moral.

Sabendo que, para Kant, não podemos decidir se um ser como Deus existe ou não, pois a própria questão já ultrapassa a nossa capacidade cognoscitiva, fico então a perguntar-me qual seria exatamente a diferença entre precisar de Deus e precisar da ideia de Deus...

Alguém aí poderia me explicar?

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Edson,

Eu jamais disse que Bush começou uma guerra por motivos religiosos.

O que eu disse, como qualquer um pode verificar acima, foi que
“os fundamentalistas cristãos se associam à direita do partido Republicano. Basta lembrar que eles aplaudiram quando o presidente Bush – um deles, pois “renascido em Cristo” – introduziu a tortura sistemática na prisão de Guantánamo”.

E qualquer um pode verificar que não citei a guerra do Iraque como tendo sido motivada pela intolerância religiosa. As que citei nesse sentido, como qualquer um pode verificar acima, foram:

“católicos vs. protestantes na Irlanda do Norte, muçulmanos vs. cristãos na Iugoslávia, hinduístas vs. muçulmanos, na Índia e – atualíssima – árabes vs. judeus, na Palestina”.

Os combatentes nessas guerras dizem que lutam por questões religiosas. Elas são consideradas religiosas pelos mais diversos historiadores, observadores a analistas. Ninguém nega que possa haver outras motivações, mas é claro a todos que as religiosas são preponderantes. Mas você, contra todos, diz que não.

Outra coisa que eu jamais disse ou diria é que "toda barbárie existente é religiosa".

E assim você, deturpando o que eu digo e contrariando quase todos os historiadores, observadores e analistas, quer dizer que quem está distorcendo os fatos sou eu.

Hannah Arendt afirma, com razão, que a ideologia é o que faz as pessoas negarem os fatos: ou mesmo dizerem que não há fatos, quando estes contradizem suas teses. Isso é evidentemente o que ocorre com quem representa ideologias religiosas

Lembro que, falando sobre os índios brasileiros, Montaigne, logo depois de descrever como os índios brasileiros matavam e comiam seus prisioneiros de guerra, explica que não acha errado que censuremos o horror barbaresco que há em tal ação, “mas sim que, julgando bem os seus erros, sejamos tão cegos quanto aos nossos”. E, observando que “há mais barbárie em comer um homem vivo do que em comê-lo morto”, passa a descrever os horrores que haviam sido cometidos na Europa por ocasião das guerras religiosas, horrores testemunhados por ele próprio e cometidos “não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos, e, o que é pior, sob o pretexto de piedade e de religião”. “Podemos portanto”, conclui, “chamá-los [aos canibais] bárbaros, tendo em vista as regras da razão, mas não tendo em vista a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie”.

Abraço

Saulo disse...

A filosofia exige um pouco de sutileza; quando Kant fala da idéia de Deus, ele fala de uma invenção da razão; por isso ele ele diz que 'devemos agir como se Deus estivesse nos olhando'. Com isso, ele quer fazer o caminho inverso dos religiosos, e Deus torna-se o mais importante delírio do homem. Esta é uma grande diferença, apesar de ser fácil notá-la, até. Há, contudo, muitos outros delírios, outras idéias de deuses inacreditáveis. A idéia de Deus de Kant não detém o monopólio do mistério; o que ela faz é buscar justificá-lo universalmente; Kant acreditava que um dia todas as seitas se tornariam uma só, sem depender da existência de Deus, mas do próprio homem. A moral substitui Deus; agir moralmente é agir como se Deus nos olhasse... (o como se pode ser também, como se Deus não existisse, ou como se ele existisse, dá no mesmo). A diferença é "só" essa, na minha opinião.

Abraço,

Anônimo disse...

Cicero, meu querido,

Pra começo de conversa, eu nem me dirigia a você... Por isso não me senti obrigado a reproduzir literalmente as suas palavras; o que me interessava era certo

tipo de "argumento" --ou seja, fiz o que Heidegger costuma fazer, hehe. Mas você quis dizer sim que a religião foi um dos motivos mais importantes da guerra

do Iraque. Se não quis, então me desminta claramente.

Em segundo lugar, quem está distorcendo as coisas é você e não eu, pois não afirmei em lugar algum que foi você quem disse que "toda barbárie existente é

religiosa": quem disse que "QUASE toda barbárie existente é religiosa" foi o Luiz, a quem me dirigia.

Em terceiro, as suas objeções não mudam nada, porque você continua repetindo teses preconceituosas: simplesmente não é verdade que "todos" ou "quase todos os

historiadores" acham que as guerras que mencionou são causadas sobretudo pela religião, e considerar o conflito entre palestinos e israelenses dessa forma é

isso sim negar a realidade. Antes de tudo porque o judaísmo é muito mais que uma religião: é uma etnia e uma forma de organização política. E depois porque é

evidente que se os palestinos não tivessem sido expulsos de sua terra não haveria conflito algum [para não falar na importância geopolítica da região (penso

na China, no Irã e na Rússia)]. -- Há muitos judeus ortodoxos, portanto religiosos, que são contra o Estado de Israel e que pensam que o conflito com os

palestinos vai de encontro aos princípios de sua fé. Encontra-se farta informação sobre isso na net.

Mas o mais importante de tudo é o seguinte. A sua intolerância é tal que você nem se deu conta da confusão que faz entre as religiões e os religiosos. Jamais

neguei que religiosos estiveram e estão metidos em vários conflitos. O que afirmo é que a religião como tal não é violenta nem, muito menos, bárbara. Em

segundo, que o religiosos violentos têm outros motivos além dos religiosos, em geral de ordem étnica e político-econômica. Além disso, considero como ingênua

a crença no simples depoimento dos religiosos. Os caras que explodiram o WTC podiam acreditar piamente que estavam fazendo isso em nome de Alá e que seriam

premiados com o paraíso. Mas é óbvio que eles foram instrumentos de outro poder que não o de Alá. E queria que me mostrasse onde e quando as igrejas católica

e protestante incentivaram ou justificaram os conflitos da Irlanda etc.

É muito simplismo e ingenuidade acreditar que o ser humano seria menos bárbaro se não houvesse religião. As pessoas se matam até por um time de futebol!

Cicero, nesse assunto, eu não sou um interlocutor válido para você. Nâo sou idiota nem vou deixar que me transformem em um. Sei que não está fazendo isso por

má-fé. Ponho sua intolerância na conta dessa "religião" que é o laicismo.

Agora, que tal mudar de assunto?

Abraço,
edg

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

se eu tivesse querido dizer que a religião foi um dos motivos mais importantes da guerra do Iraque, te-lo-ia feito. É evidente que a guerra do Iraque foi arquitetada por motivos econômicos e geopolíticos, aproveitando o pretexto que a estupidez religiosa do Al Qaeda deu de bandeja a Bush.

Sobre as outras guerras, eu já disse o que tinha a dizer e não vou me repetir.

Sobre a religião também. Para mim, qualquer ideologia comunitária que, postulando uma verdade absoluta e de natureza positiva, tenha-se imunizado contra críticas, enseja que os piores crimes, discriminações e maldades possam ser praticados com boa consciência. Isso vale para não só para as religiões, mas também para todas as ideologias totalitárias de natureza secular, como o fascismo, o nazismo, o comunismo etc.

Antes de me acusar de querer transformá-lo em idiota – coisa que jamais me passou pela cabeça – você devia reler os seus comentários sobre os textos que escrevo.

Também acho que devemos mudar de assunto. Aliás, fui eu que sugeri isso, já há algum tempo.

Abraço

Aetano disse...

Caros,

Acredito em Deus, mas não engulo essa coisa de que a "ideia de Deus" tenha uma utilidade pública. Não entendo também por que diabos se insiste nisso. Na verdade, desconfio que por trás desse pensamento esteja uma inclinação para doutrinar (tem coisa mais vulgar?). Não por acaso, Ratzinger pensa igualzinho...

Abcs

Saulo disse...

Edson,

Só acho que filosofia não é teologia; a gente sabe os perigos dessa confusão, porque as idéias convencem até as pessoas a se matar, em nome da fide dogmatica, e a matar os outros. As idéias não comportam uma fé como essa (Kant sabia disso). Vamos deixar que a filosofia nos traga luz, para que a fé possa nos guiar nas nossas sombras, se necessário for. Não façamos doutrina daquilo que não pode ter a forma de uma doutrina, como disse Spinoza (que suspeita-se ter sido assassinado por um fanático religioso).

Um abraço,

Anônimo disse...

"Maomé uma vez se referiu a disputas e contendas, dizendo: 'Elas surgirão no tempo em que o conhecimento abandonar o mundo'. Ao que Ziad redarguiu: 'Ó mensageiro de Deus, como o conhecimento abandonará o mundo se nós lemos o Corão e o ensinamos aos nossos filhos, e assim até o último dia?'. Então Maomé respondeu: 'Ó Ziad, e o que dizer dos judeus e cristãos que leem a Biblia e os Evangelhos, eles porventura os põem em prática e agem segundo seu espírito?" [Hadith]

"Quando constatamos quão poucos são os homens genuinamente religiosos, quão pequeno o número de defensores da verdade; quando vemos ignorantes imaginando que o princípio da religião é extravagância e brutalidade -- é tempo de repetir estas palavras: 'A paciência é bela, e Deus é a fonte de todo socorro'." [Corão, 12:18]

"Não há imposição em matéria de religião." [Corão, 256:2]

"Cuidado com o homem de um livro só." [Tomás de Aquino]

"Tem-se a impressão que os fundamentalistas são inerentemente conservadores e aferrados ao passado, no entanto suas ideias são essencialmente modernas e inovadoras." [Karen Armstrong, Em nome de Deus]

"Feliz daquele que pode compreender as causas das coisas." [Virgílio]

Antonio Cicero disse...

Caro Edson,

Certamente, para Kant, as “provas” da existência de Deus não foram arquitetadas por nenhum sofista para enganar ninguém, pois derivam de uma ilusão constitutiva à própria razão. Mas o próprio Kant as considerava como sofismas da razão pura. Ao falar da divisão da lógica transcendental em analítica e dialética, por exemplo, ele afirma que

“a segunda parte da lógica transcendental deve [...] ser uma crítica dessa aparência dialética, e se chama dialética transcendental, não por ser a arte de produzir tal ilusão dogmaticamente (arte infelizmente muito comum entre prestidigitadores metafísicos), mas como uma crítica do entendimento e da razão tendo em vista seu uso hiperfísico, para descobrir a falsa aparência de suas pretensões infundadas, e reduzir suas pretensões a descobrir e ampliar o conhecimento meramente por meio de princípios transcendentais a simples julgamento e armamento da razão pura contra as fantasmagorias SOFÍSTICAS [ênfase minha]”.

Essas fantasmagorias são, para ele, “sofisticações [Sophistikationen], não dos homens, mas da razão pura mesma, das quais mesmo os mais sábios dos homens não conseguem se livrar [...]”.

Ao final da Crítica da razão pura, exatamente a propósito do assunto que nos interessa, ele diz:

“O primeiro erro que surge do fato de que se usa a ideia de um ser supremo não apenas regulativamente, mas (o que é contra a natureza de uma ideia) constitutivamente é a razão preguiçosa (ignava ratio).” E explica, em nota:

“Assim chamavam os velhos dialéticos uma falácia que dizia: Se o teu destino traz consigo que devas curar-se dessa doença, então isso acontecerá, quer uses um médico, quer não. Cicero dizia que essa espécie de argumento assim se chama porque, quando nos conformamos a ele, não sobra nenhum uso da razão na vida. É essa a causa pela qual chamo o argumento SOFÍSTICO da razão pura pelo mesmo nome”.

Finalmente, como se pode ler no penúltimo parágrafo, segundo Kant, a diferença entre Deus e a ideia de Deus é que esta não pode ser usada constitutivamente.

Com isto, despeço-me das fantasmagorias teológicas, que me enfadonham.

Abraço

Anônimo disse...

"Deus não é pois uma ilusão [um delírio]" (Kant)

"Die sittliche Vollkommenheit, obgleich sie nicht ganz erreicht werden kan, ist doch kein wahn. Schwärmerischer und abergläubischer wahn. Gott ist doch kein wahn." [KANT (6220. ψ3. Th 1. 15-17)]

Anônimo disse...

Aetano,

Não entendi direito o que você disse sobre a ideia de Deus, e, sobretudo, o que o Ratzinger tem a ver com isso. Você poderia por favor explicar melhor?

Obrigado,
edg

Aetano disse...

Edson,

Estou deveras ocupado hoje, mas prometo que amanhã eu deixo aqui uma explicação, assinada pelo próprio Ratzinger.

Abraço

Aetano disse...

Edson,

Segue a explicação, nas palavras de Ratzinger:

"Parece-me que, neste nosso mundo, existem valores que compartilhamos - tanto eles, os ateus, quanto nós, os crentes. E parece-me de uma enorme importância que, apesar da profunda divisão que existe entre a fé, no sentido da fé cristã, e o ateísmo, aqui estamos em um terreno onde temos uma responsabilidade comum.

Pode ser que o ateu se sinta ofendido porque nós pensamos que esses valores derivam, afinal, da convicção de que o SER mesmo é o portador de uma mensagem moral, que o SER em sim mesmo não é neutro, mas indica uma perspectiva para o amor e contra o ódio, para a verdade e contra a mentira. Essa perspectiva já é inata no SER; depende da origem do SER; DEPENDE de Deus. Portanto, nós pensamos que a convicção, e também o compromisso, em favor de valores da humanidade e da dignidade humana dependem, afinal, de uma presença oculta de tudo aquilo que nós não podemos manipular."

(Ratzinger, Joseph. "Deus existe?". Tradutora Sandra Martha Dolinsky. Planeta, 2009, pp. 38/39. Grifos originais)


Noutro trecho da mesma obra (p. 67), Ratzinger diz:

"[...] qual é o FUNDAMENTO dessa inviolabilidade de alguns direitos? A tradição católica diz: é a criação."

(grifei)

Pois bem, o que quis dizer é que não aceito Deus como fundamento da moral (como "necessidade" pública - retiro "utilidade", que usei ironicamente, mas que, no jargão filosófico, pode suscitar questionamentos ociosos). Como já disse, receio que por trás dessa ideia esteja uma - nem sempre disfarçável - vontade de DOUTRINAR, IMPOR e SUBJUGAR.

Aliás, cheguei a essa conclusão depois das MINHAS leituras de e sobre Kant.

Espero ter esclarecido.

Abcs.

Aeta

Luiz disse...

Caro Edson,

Que tal ‘baixar a guarda’?
Não disse que Ferry é contra a religião.

Não acho que seu argumento “é bem diferente da posição do Cicero”.
Quando Ferry diz que “mais do que nunca, vivemos num mundo no qual a religião não é suficiente para dar ao homem as respostas que ele procura”, diz algo muito distinto de Cicero - que “as religiões traem a verdadeira divindade”?

Quanto à “minha tese” sobre as barbáries, apenas reproduzo esta constatação feita pelo ex-ministro Luc Ferry:

“É verdade que todas as guerras de hoje ainda são de origem religiosa: é o caso tanto nos Bálcãs quanto no Sudão, na Irlanda, no Oriente Médio. As comunidades que se afrontam sempre o fazem em nome da religião que as uniu.” (Zero Hora, março 2007)

Abraço,
Luiz

Anônimo disse...

Aetano,

Não sei se entendi bem. Se você acredita em Deus, no Absoluto, então não faz sentido não querer fundar a moral nEle. Se a moral não tiver uma fundação última, então não tem nenhuma.

Você pode achar que fundar a moral na razão é melhor ou que isso dispensa Deus. Mas aí voltamos a Kant --e à minha pergunta: qual é a diferença? Pois ou a razão está fundada em Deus ou ela é o próprio Deus. Enfim...

O que o trecho dá a pensar é que, para o papa, como para todo realista crítico, o dever ser já está contido no ser e, por conseguinte, pode ser derivado deste. Mas, para evitar-se a falácia naturalista, deve-se distinguir entre ser empírico ou positivo [= ente] e ser como tal.

Abraço,
edg

Anônimo disse...

Luiz,

Eu sou leitor de Ferry, a quem admiro como filósofo e como escritor. [Como político, não.]

Ele tem seus problemas com a religião, mas está longe de odiá-la.

Além disso, não confunde a religião com os religiosos.

Eu acho que o humanismo transcendental do Ferry está muito mais próximo da religião, em especial, do cristianismo do que
ele mesmo gostaria. Parece que ele nunca leu K. Rahner...
Daí a minha intervenção.

O problema deste tipo de discussão --virtual, por meio de uma caixa de diálogo de um blog-- é que muitas vezes somos levados a disparar comentários precipitados ou insuficientemente refletidos, sem falar na verve. Mas, enfim, esse é o preço...

Abraço,
edg

Flavius disse...

Caros,

não pude me manter à margem do debate bem interessante que está a desenrolar. Embora não seja assunto próprio da postagem do Antonio Cícero, porém por ele mesmo aqui apontado, o assunto religião causa reserva, visto pelo prisma que ele aqui expôs. Também tenho muita simpatia em certos pontos destacados pelo Edson Dognaldo.

Com a devida vênia, entendo que o termo religião sob crítica de Antonio Cícero equivale à seita de Maomé. Este profeta distingue seita de religião. Sim, há uma frase polêmica na sura 3, versículo 19, que assim principia: "Para Deus, a religião é o Islã, a submissão a Sua vontade.". Aqui cabe um cuidado redobrado, pois o termo Islã não pode ser positivado historicamente por comunidade que se autodenomine islã, islâmico. Islã não pode ser apropriado historicamente por nenhuma comunidade.

Tanto é assim que não se vê contradição com a sura 2, v. 62: "Os que crêem e os que abraçaram o judaísmo e os cristãos e os sabeus, todos os que crêem em Deus e no último dia e praticam o bem obterão sua recompensa de Deus e nada terão a recear e não se entristecerão." As expressões "último dia", "Deus" não podem ser tomadas em sentido ordinário, pois pertencem a uma gramática e glossário erigidos pelos semíticos há mais de 2000 anos, sendo a Bíblia e Alcorão estampas dessa construção linguística para a espiritualidade esotérica que eles cultivavam.

Assim o apóstolo Paulo emprega em 1Coríntios 10:11, ao destacar o cunho esotérico das escrituras, notadamente o Pentateuco/Torah em que extraía leitura, como destinado a ele e alguns companheiros, aqueles que detinham a condição de "atingidos pelo fim dos tempos", "fim dos séculos" ou "fim do mundo", conforme dada tradução.

Maomé não censura aí o judaísmo e o cristianismo, pelo contrário, inclui no rol ainda os sabeus, porque vê neles a persecução da Religião, da realização do Islã. É o judaísmo e cristianismo ideal aí destacados. Noutras suras destila censura, dirigindo-se ao cristianismo e judaísmo positivados por deturpação do propósito originário, pois em vez de exercerem a Religião, antes ocupavam-se em ser seitas. A essa crítica maomentana, a história bem acolhe o islamismo positivo. É próprio de seitas o cultivo de ordenações humanas estapafúrdicas, da idolatria, por mais que aparentem cumprir o que está na letra das escrituras. A maturidade aí é ainda não completamente desenvolvida.

Cabe ressalvar, entretanto, que mesmo na linhagem abraâmica, tanto judaica, cristã ou islâmica, em forma quase imperceptível, aparentemente nem sempre em linha contínua, um pequeno ramo, mal ou bem, constituída de poucas pessoas, perseguiu e realizou o ideal de Religião.

Eu achei que caberia essa distinção aqui, pois entendo que o referente visado no termo religião de Antonio Cicero e do Edson não é exatamente o mesmo. Abraços.

Saulo disse...

A história do pensamento filosófico, em seus acontecimentos decisivos, é pontuada pela maneira radical como a filosofia atua, capaz de provocar rupturas com ordens de conhecimentos já consagradas e exauridas. Um verdadeiro filósofo jamais negocia a sua atividade por uma crença, seja ela qual for, sobretudo a doutrina do seu mestre, e também de Deus. Diferentemente dos profetas, que falam dos seus êxtases e do texto que receberam dois céus, o filósofo fala da sua lucidez, apontando até onde ela pode nos conduzir, sem nenhum milagre. A luz filosófica é tão rara como a luz dos profetas, mas elas atingem inclinações diferentes, uma busca o contentamento, a outra quer a dificuldade (como falou o Cícero), recusando a satisfação religiosa do milagre a um rebanho de homens escolhidos, ao mesmo tempo em que dá a todo homem um outro lugar, o da investigação. A teologia explica Deus, mas a filosofia não explica nada, mas problematiza, permitindo ver algo novo, de forma que até mesmo o Papa Hatzinger tem que se adequar a tais rupturas.

O problema do ser obviamente não é um problema exclusivamente religioso, e Tomás de Aquino sabia disso, apesar de ter feito dele o fundamento simultâneo da doutrina cristã e do conhecimento. Mas para filosofias mais radicais (que querem pensar de forma mais consistente, sem o auxílio de motores pressupostos), ele não é, de forma alguma, um problema religioso. É o caso de Duns Scot, o Doutor Sutil. Para ele, as verdades da fé não poderiam jamais ser compreendidas pela razão. A filosofia, assim, deveria deixar de ser uma serva da teologia, como vinha ocorrendo ao longo de toda a Idade Média, e adquirir autonomia.

Acho que vale a pena dar uma olhada nesse trecho, no qual ele começa a desenvolver a sua descoberta da essência neutra e a tese da univocidade do ser, que reivindica todo o ser para a filosofia, para que a fé não busque na razão o fundamento que esta não pode lhe dar, como havia dado Tomás de Aquino. Esta é mais uma das gêneses da modernidade, e acho que a filosofia é, de fato, inegociável, e que isto implica necessariamente o ateísmo como método (como ele é compreendido pela religião), o ceticismo na base de tudo (como ele é compreendido entre os filósofos). Deste modo, a filosofia também demonstra que o ateísmo não depende do teísmo (não se pode admitir que ele tenha esta derivação originariamente, a não ser na etimologia), isto é, para que ele seja entendido como método cético ou filosófico, pois nunca houve filósofo verdadeiro - na minha opinião - sem um método como esse.

«Todo filósofo estava certo de que o que postulava como primeiro princípio era um ser; por exemplo, um estava certo de que o fogo era um ser, e outro de que a água era um ser. Mas não estava certo de que era um ser criado ou incriado, primeiro ou não-primeiro. De fato, não estava certo de que era primeiro, pois então estaria certo de algo falso e o falso não é susceptível de saber rigoroso. Nem estava certo de que fosse um ser não-primeiro, porque então não teria postulado o oposto.
Este primeiro argumento é confirmado da seguinte maneira: Alguém, vendo os filósofos discordarem entre si, pode estar certo de que o que quer que seja que qualquer um deles postulou como primeiro princípio é um ser. No entanto, por causa da contrariedade das opiniões dos filósofos, poderia duvidar se o primeiro princípio é este ou aquele ser. Se se fizesse, para tal pessoa em dúvida, a demonstração conclusiva ou refutativa de algum destes conceitos inferiores, por exemplo, de que o fogo não é o ser primeiro, mas um determinado ser posterior ao ser primeiro, não se destruiria o primeiro conceito certo que esta pessoa teve [de que é um ser], mas tal conceito ainda se encontraria no conceito particular que fosse provado do fogo. Assim prova-se a proposição suposta na última consequência deste argumento, isto é, que o conceito que de si não é nenhum dos dois conceitos duvidosos encontra-se em ambos.» Opus Oxoniense, I, d. 3, parte 1, q. 1

Aetano disse...

Edson,

Não sei por que pra vc o que eu disse não faz sentido, pois Kant - que era cristão - disse exatamente o mesmo, senão vejamos:

"[...] suponhamos que possamos atingir um conhecimento da existência de Deus pela experiência (mesmo que não se consiga imaginar nem por um instante sequer sua possibilidade) ou por outro método, suponhamos ainda que possamos nos convencer dela tão positiva e factualmente quanto por uma percepção, então, TODA MORALIDADE DESAPARECERIA. Em toda ação, o homem imaginaria imediatamente Deus como aquele que recompensa ou vinga. Essa imagem se imprimiria involuntariamente em sua alma e, NO LUGAR DAS MOTIVAÇÕES MORAIS, INTERVIRIAM A ESPERANÇA DE UMA RECOMPENSA E O TEMOR DE UMA PUNIÇÃO; o homem seria então virtuoso em razão de impulsões sensíveis."

(Kant, I. "apud" Ferry, Luc. "Kant: uma leitura das três "Críticas". Tradução de Karina Jannini, DIFEL, 2009, p. 84. Grifei.)

Agora veja o que, logo em seguida, Ferry comenta:

"Esse texto oculta duas ideias cruciais, sobre as quais veremos mais adiante como estão ligadas entre si. A primeira é a de que A DIGNIDADE HUMANA - que inicialmente está ligada à liberdade do homem - é suficiente para FUNDAR A MORAL, ou seja, o respeito que devemos uns aos outros, sem que seja necessário fazer intervir uma referência ao COSMOS ou a Deus, uma apelo a entidades supostamente externas e superiores à humanidade. A segunda é a de que a hipótese de Deus, se tivesse de se transformar pela fé em certeza, longe de fundar melhor a moral, viria, ao contrário, arruiná-la: pois seria então por interesse, por temor ou por esperança - por 'impulsão sensível', como diz Kant - que agiríamos de modo virtuoso, de maneira que a noção de ato desinteressado, que sozinha dá todo seu valor à virtude, seria inevitavelmente corrompida e, depois, destruída."

(somente o grifo em "cosmos" é original).

Ao que se vê, um Deus vivo não seria um bom fundamento para a moral. A propósito, será que não está suficientemente claro qual a diferença entre fundar a moral num Deus pessoal - e irracional - e fundá-la na razão?

Será que fundar a moral na razão é atribuir a esta as características de um Deus particular ou será que isso atende ao requisito da "universalidade"? Só porque EU acredito em Deus isso me dá o direito de querer que Ele funde uma moral UNIVERSAL? Se eu quisesse assim, não estaria tentando IMPOR uma crença pessoal?

E agora, o que é que não faz sentido?

Abcs

Aeta

Anônimo disse...

Aetano,
Não se trata, para mim, nem de UM Deus nem de UMA moral.
A objeção de Kant é de natureza psicológica. Ele parece pensar ser melhor, do ponto de visa moral, não se saber da existência de Deus, pois isso interferiria nas nossas decisões.
Mas eu acho que quem age por medo de punição ou por esperança de recompensa por parte de Deus, esse não é realmente cristão: "não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita".
Quem age racionalmente, isto é, por dever, age simultaneamente por amor a Deus. Pois o imperativo categórico é o absoluto, o incondicionado em nós.
Abraço,
edgil

Luiz disse...

Edson,

Escrevi ‘ex-ministro’ insinuando que no cargo Ferry deva ter ampliado sua visão do assunto, estando atento à argumentação dos “mais diversos historiadores, observadores a analistas”, e também ciente que dentre esses, “ninguém nega que possa haver outras motivações [para as guerras], mas é claro a todos que as religiosas são preponderantes”.

Em resumo: penso que a experiência de ministro ajudou a retificar suas teses, a afastá-las da... ideologia.

Pensamento alargado!

Abraço,
Luiz

Anônimo disse...

Caros,

Este link http://edsongil.wordpress.com/2008/07/28/por-uma-espiritualidade-sem-deus/ aponta para a entrevista concedida por Luc Ferry, em 2007, citada pelo Luiz. Gostaria que a lessem e depois me dissessem se e em quê, no que diz respeito à religião, o filósofo francês concorda com o ACicero.

Abraço,
edg

Aetano disse...

Edson,

Deixo aqui minhas alegações finais (rs):

1. Segundo Mateus 6,1-4, Jesus disse (grifei):

"Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. DO CONTRÁRIO, NÃO TEREIS RECOMPENSA JUNTO DE VOSSO PAI que está no céu.

Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: JÁ RECEBERAM A RECOMPENSA. Quando deres esmola, QUE TUA MÃO ESQUERDA NÃO SAIBA O QUE FEZ A DIREITA. Assim, a tua esmola se fará em segredo; E TEU PAI, que vê escondido, RECOMPENSAR-TE-Á."

Pois bem, Nietzsche já disse que o único cristão tinha sido Cristo, mas, segundo seu curioso método hermenêutico - para o qual "quem age por medo de punição ou por esperança de recompensa por parte de Deus, esse não é realmente cristão" -, nem mesmo ele o foi.

2. A objeção de Kant, para mim, não é psicológica, mas lógica, já que, para ele, a moral deve ser DESINTERESSADA e UNIVERSAL.

Imensamente grato pela conversa.

Abcs.

Aeta

Anônimo disse...

Aetano,

Cito outra versão da mesma passagem de Mateus:

"Cuidado! não pratiques vossa justiça na frente dos outros, só para serdes notados. De outra forma, não recebereis recompensa do vosso Pai que está nos céus."

Não consigo enxergar aí nada que vá de encontro ao que eu afirmei. Onde está dito que se deva ou se possa praticar o bem ou deixar de praticar o mal por recompensa ou por punição?

Quanto a Kant, eu me referia à tese segundo a qual, se conhecesse a Deus, o homem o imaginaria imediatamente como aquele que recompensa ou vinga.

Também não consigo enxergar aí nenhuma lógica... De fato, o "homem medíocre" poderia comportar-se assim como Kant supõe, mas não há nenhuma necessidade de que isso de fato aconteça.

Abraço,
edg

Aetano disse...

Edson,

Segue meu "post scriptum" (rs):

1. Sem ironia, que versão bonita! Agradeço. Gostaria da referência, porquanto hoje a Justiça anda tão exibicionista (e, na versão que vc trouxe, essa denúncia fica bem mais evidente);

2. Admiro - mas também me cansa - sua capacidade de transformar o diálogo numa corrida do cachorro contra o rabo: infindável. Vc sabe Filosofia... e Erística: "um método sem grande valor cognoscitivo e bom somente para polemizar";

3. Estou de saída porque, segundo Kant, "quando é permitido discutir, deve-se também ter a esperança de entrar em acordo". Não é o caso...

4. Obrigado mais uma vez. Agradeço também a Cicero, sempre admiravelmente generoso, o artigo e o espaço.

Abcs

Aeta

Anônimo disse...

Ainda sobre a *Kehre*, dois trechos do próprio Heidegger:

"Em *Ser e tempo*, o sentido tem uma significação totalmente precisa, mesmo que ela hoje tenha se tornado insuficiente. Que quer dizer "sentido do ser"? Isso se entende a partir da região do projeto, desdobrada pela "compreensão do ser". A compreensão, por sua vez, deve ser concebida no sentido originário de estar-diante de, manter-se à altura do que vem ao nosso encontro, ser forte o suficiente para aguentar.
"Sentido" deve ser entendido a partir do "projeto" que se explica pela "compreensão".

"O incoveniente desse modo de formular a pergunta [pelo ser] está no fato de deixar demasiadamente aberta a possibilidade de compreender o "projeto" como uma performance humana; em conformidade com isso, o projeto pode ser tomado por uma estrutura da subjetividade -- é o que faz Sartre, apoiando-se em Descartes (em cuja obra a *aletheia* não se apresenta como *aletheia*).

"A fim de evitar esse engano e de preservar ao "projeto" a significação na qual ele foi tomado (a de abertura franqueadora), o pensamento substituiu, depois de *Ser e tempo*, a expressão "sentido do ser" por "verdade do ser". E, no intuito de evitar toda falseação da verdade, de impedir que ela seja entendida como correção, "verdade do ser" foi esclarecida como "localidade do ser" -- verdade como localidade do ser. ..."

"Na medida em que abandona a palavra sentido do ser a favor da verdade do ser, o pensamento proveniente de Ser e tempo enfatiza doravante mais a abertura do ser ele mesmo do que a abertura do *Dasein* em vista da abertura do ser.

"É isso que significa a "virada", na qual o pensamento se dirige de modo cada vez mais decidido para o ser enquanto ser." [HEIDEGGER, M. *Seminário em Le Thor, 1969* [GA 15, p. 334-5; 345]. Apud LOPARIC,Z. *Heidegger*. Rio: Jorge Zahar, 2004. p. 74-5.)

-- Posso estar enganado, mas, para mim, aqui Heidegger reconhece o fracasso do projeto "idealista" de *Ser e tempo*, e tenta justificar a virada para o "realismo" ["ser enquanto tal"]. Ele diz que foi "o pensamento" que trocou de vocabulário etc. Como se não fosse ele a pensar, mas o próprio pensamento do Ser que se pensasse nele. Ora, ninguém tem de aceitar essa autointerpretação escandalosamente idiossincrática, para dizer o mínimo.

edg

Antonio Cicero disse...

Edson,

Mal acredito que você volte a essa questão; e que, no que só posso atribuir à sua ansiedade ante a possibilidade de que tenha estado errado em alguma coisa – algo que, na sua onisciência, não pode conceber – acaba trazendo um texto que, longe de provar o que você quer, confirma tudo o que antes afirmei. Vejamos.

Heidegger diz aí que

“O incoveniente desse modo de formular a pergunta [pelo ser] está no fato de deixar demasiadamente aberta a possibilidade de compreender o "projeto" como uma performance humana; em conformidade com isso, o projeto pode ser tomado por uma estrutura da subjetividade -- é o que faz Sartre, apoiando-se em Descartes (em cuja obra a *aletheia* não se apresenta como *aletheia*).”

É, portanto, o “MODO DE FORMULAR A PERGUNTA” que é, para ele, “INCONVENIENTE”. Por que? Porque deixa aberta a possibilidade de mal-entendidos como o de Sartre, por exemplo, que toma o projeto como uma estrutura da subjetividade.

Assim,

“A fim de evitar esse engano e de preservar ao "projeto" a significação na qual ele foi tomado (a de abertura franqueadora), o pensamento substituiu, depois de *Ser e tempo*, a expressão "sentido do ser" por "verdade do ser". E, no intuito de evitar toda falseação da verdade, de impedir que ela seja entendida como correção, "verdade do ser" foi esclarecida como "localidade do ser" -- verdade como localidade do ser. ..."

Trata-se, portanto de “EVITAR ESSE ENGANO” e de “PRESERVAR AO PROJETO A SIGNIFICAÇÃO NA QUAL ELE FOI TOMADO (A DE ABERTURA FRANQUEADORA)”.

Só se PRESERVA em alguma coisa o que já está lá. Para evitar esse ENGANO, “O PENSAMENTO SUBSTITUIU, DEPOIS DE *SER E TEMPO*, A EXPRESSÃO "sentido do ser" por "verdade do ser". Ou seja, trata-se de empregar outra EXPRESSÃO. E é no inutuito de evitar toda FALSEAÇÃO DA VERDADE , isto é, para impedir que ela SEJA ENTENDIDA COMO CORREÇÃO que ele ESCLARECE a “verdade do ser” como “localidade do ser”.

E adiante:

"Na medida em que abandona a palavra sentido do ser a favor da verdade do ser, o pensamento proveniente de Ser e tempo enfatiza doravante mais a abertura do ser ele mesmo do que a abertura do *Dasein* em vista da abertura do ser.”

Trata-se de abandonar uma PALAVRA em favor de outra. Com isso, o pensamento PROVENIENTE DE SER E TEMPO, (isto é, essencialmente o mesmo pensamento) enfatiza a abertura do ser mais do que a abertura do Dasein em vista da abertura do ser.

Finalmente:

É isso que significa a "virada", na qual o pensamento se dirige de modo cada vez mais decidido para o ser enquanto ser."

Eis o que é a Kehre: o resultado do esclarecimento do pensamento original, a partir do qual ele “se dirige DE MODO CADA VEZ MAIS DECIDIDO para o ser enquanto ser”. Ou seja, ele já se dirigia para o ser enquanto ser, mas esses os esclarecimentos acima o tornaram cada vez mais decidido.
Nada nesses textos têm coisa nenhuma a ver com “idealismo” ou “realismo”.

Vê-se que, longe do que você afirmava que a Kehre consistia em “uma virada de 180 graus no pensamento heideggeriano” tudo isso está muitíssimo mais próximo do que eu, que afirmava uma relativa continuidade nesse pensamento, venho dizendo.

Para terminar: como eu já disse muitas vezes, não gosto de me repetir. Ora, sinto que estamos a nos repetir, sem fazer nenhum progresso. Prefiro abandonar esse assunto.

Abraço

Luiz disse...

Caro Cicero,

À medida que ia acompanhando o debate sobre religião entre você e o Edson Gil, me perguntava por que (apesar do alto nível) acabou enveredando numa circularidade. Conclui que se transformara numa espécie de “querela entre antigos e modernos”; ainda que ambos usassem um discurso de pretensões cognitivas, apenas um de fato cobrava requisitos lógico-empíricos ao discurso.

Mas afinal, o que teria gerado essa ‘incomensurabilidade’? Creio que o Edson não percebeu que tua afirmação categórica quanto ao fim da religião de maneira nenhuma deslegitima “a energia de projeção mítica” que ele esbanja, mas todos nós possuímos.
Para aclarar um pouco mais o ponto, cito um pequeno trecho da apresentação de um livro (que deves conhecer) de Leszek Kolakowski onde, segundo diz, “tenta oferecer um ponto de vista determinado sobre uma questão crucial que tem atualidade permanente na filosofia da cultura: o lugar que a produção configuradora de mitos ocupa na cultura com relação às propriedades estruturais da consciência”.

Eis o trecho:

“Em A Presença do Mito, Kolakowski procura demonstrar que a energia mitológica participa de quantas dimensões compõem a práxis humana (inclusive a científica), chegando mesmo a declarar secundária, a esse respeito, a diferença entre o mítico religioso e o não-religioso. O mito prospera onde quer que enfrentemos o fenômeno geral da ‘indiferença do mundo’: na angústia diante da morte, na inevitável frustração de toda posse, nos limites da união erótica, na revolta final do suicídio. Sonho de domesticação intelectual do ser, o mito penetra cada um de nossos caminhos existenciais, colorindo cada gesto humano da sua aguda paixão semântica – da sua sede de dar sentido às coisas.” (J. G. Merquior).

Entretanto, adverte Merquior, “a mitogonia em estado puro é uma ilusão”.
Por que então brandir Deus?


Espero ter saído pela tangente...
grande abraço,
Luiz

Saulo disse...

Acho que a questão do mito é relevante para o tema do artigo, além de ser muito pertinente ao que se vinha discutindo, pois
algo que também marca o surgimento do idealismo alemão é o "Programa Sistemático", no qual se pretende - e exorta - a tornar racional a mitologia, invocando-se um novo salvador, para que ela se mostre "por inteiro".
Temos que ser muito cautelosos, para não ver em Heidegger um falso filósofo, mas talvez tenhamos de ser também críticos em reconhecer que o nazismo também foi gerado por diversos fatores, muito até pelo influxo do pensamento alemão precedente, como se vê na citada "obra".
Acho que o mito tem a sua racionalidade, ele supre uma parcela descoberta do desconhecido e a organiza, mas esta operação não é absoluta, pois do contrário não se trataria de um mito, e se deve notar que ele sempre conviveu com outros saberes técnico-especulativos, onde quer que fosse.
O que não se deve é desejar que ele se mostre por inteiro, sob pena de negá-lo em sua parcialidade, já que o pensamento necessita ver o mundo sem explicação alguma, livre de qualquer razão prévia, seja mítica, científica, religiosa, jurídica, psicanalítica, psicológica ou artística.
A mitogonia em estado puro, mais do que uma ilusão, é uma negação da sua própria razão - de responder a uma exigência daqueles que não a testemunharam -, por isto o perigo de se apelar a um deus messias vingador das trevas, confirmador da verdade, de fato inexistente, do mito.
Não podemos jamais discorrer sobre a força do mito e do misticismo, mas sabemos que eles não limitam - nem poderiam - a potência da razão, muito pelo contrário.
Os mitos - segundo a sua própria lógica - devem continuar nos fazendo ver as coisas como são, e não como elas deveriam ser - à falta de um testemunho verdadeiro, pois isto viola o seu princípio. Por esta razão é que há de se ter cuidado sempre ao se ver pregado o disfarce de uma mitologia absoluta, sempre impossível, desde a origem, quando o homem viu o mundo tal como ele já era, pela primeira vez.
Um abraço,

Anônimo disse...

É óbvio que se deve estudar Heidegger nos cursos de graduação em Filosofia. Estudar para fazer provas, seminários, etc. Ou seja, para levar o dia-a-dia do curso. Agora, estudar Heidegger no mestrado ou doutorado é uma coisa muito problemática. A papelada liberada pela família, somada aos arquivos públicos, já colocam o pensador sob luz pouco favorável. Já sabemos que Heidegger admirava as mãos de Hitler, imagine o que virá quando sair o resto da papelada... Qual o sentido de gastar 3 ou 4 anos estudando uma bomba relógio? Enfim, em termos práticos, de vida acadêmica, Heidegger é uma má aposta. Salvo, se os Nazistas voltarem ao poder... Nos corredores das faculdades fala-se muito do lado negro de Heidegger, mas é difícil ler essas porretadas como está nos comentários do seu blog. Falar é uma coisa, escrever é outra.Bem legal!