.
Ano Novo
Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.
31.12.08
30.12.08
Fernando Ferreira de Loanda: "Madagascar"
.
Madagascar
Madagascar é uma gota de licor
meteorito ou anêmona, vagando
por minhas veias e artérias,
formiga-me, é um grito repetido
por inúmeros ecos no meu arcabuço,
é um sonho erodido de tão sonhado.
Os búzios, se os ouço, trazem-me
apelos do Índico, vestígios do sopro
das sereias: há-as, creiam,
só Ulisses e Vasco da Gama resistiram
por surdos que eram à linhagem
das aromáticas consoantes douradas.
De: LOANDA, Fernando Ferreira de. Kuala Lumpur. São Paulo: Massao Ohno, 1991.
Madagascar
Madagascar é uma gota de licor
meteorito ou anêmona, vagando
por minhas veias e artérias,
formiga-me, é um grito repetido
por inúmeros ecos no meu arcabuço,
é um sonho erodido de tão sonhado.
Os búzios, se os ouço, trazem-me
apelos do Índico, vestígios do sopro
das sereias: há-as, creiam,
só Ulisses e Vasco da Gama resistiram
por surdos que eram à linhagem
das aromáticas consoantes douradas.
De: LOANDA, Fernando Ferreira de. Kuala Lumpur. São Paulo: Massao Ohno, 1991.
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Poema
29.12.08
Luís Miguel Nava: "Ars poetica"
.
Ars poetica
O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.
De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. 1979-1994. Organização e posfácio de Gastão Cruz. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
Ars poetica
O mar, no seu lugar pôr um relâmpago.
De: NAVA, Luís Miguel. "Onde à nudez". In: Poesia completa. 1979-1994. Organização e posfácio de Gastão Cruz. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
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Poema
25.12.08
Paul Celan: "Lob der Ferne" / "Elogio da distância: traduzido por João Barrento e Y.K. Centeno
.
Elogio da distância
Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.
Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.
Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.
Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.
Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.
Lob der Ferne
Im Quell deiner Augen
leben die Garne der Fischer der Irrsee.
Im Quell deiner Augen
hält das Meer sein Versprechen.
Hier werf ich,
ein Herz, das geweilt unter Menschen,
die Kleider von mir und den Glanz eines Schwures:
Schwärzer im Schwarz, bin ich nackter.
Abtrünnig erst bin ich treu.
Ich bin du, wenn ich ich bin.
Im Quell deiner Augen
treib ich und träume von Raub.
Ein Garn fing ein Garn ein:
wir scheiden umschlungen.
Im Quell deiner Augen
erwürgt ein Gehenkter den Strang.
De: CELAN, Paul. "Mohn und Gedächtnis". In: Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.
Elogio da distância
Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.
Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.
Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.
Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.
Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.
Lob der Ferne
Im Quell deiner Augen
leben die Garne der Fischer der Irrsee.
Im Quell deiner Augen
hält das Meer sein Versprechen.
Hier werf ich,
ein Herz, das geweilt unter Menschen,
die Kleider von mir und den Glanz eines Schwures:
Schwärzer im Schwarz, bin ich nackter.
Abtrünnig erst bin ich treu.
Ich bin du, wenn ich ich bin.
Im Quell deiner Augen
treib ich und träume von Raub.
Ein Garn fing ein Garn ein:
wir scheiden umschlungen.
Im Quell deiner Augen
erwürgt ein Gehenkter den Strang.
De: CELAN, Paul. "Mohn und Gedächtnis". In: Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Cotovia, 1996.
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Paul Celan,
Poema,
Y.K. Centeno
24.12.08
Fernando Pessoa: "Natal"
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NATAL
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
NATAL
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
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Poema
23.12.08
Segundo volume de "Humano, demasiado humano", de Nietzsche, traduzido por Paulo César de Souza
.
Em comentário sobre que fiz no dia 3/12 sobre uma postagem minha intitulada “Comentários de Aetano sobre Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas”, de 2/12, cito um trecho Humano, demasiado humano, de Nietzsche, comentando que, infelizmente, a segunda parte desse livro, de onde eu retirara a citação, ainda não havia sido traduzida. Pois bem, hoje mesmo recebi da Companhia das Letras um exemplar da tradução dessa segunda parte, feita pelo nosso grande tradutor de filosofia alemã, Paulo César de Souza. Já li várias páginas e, como eu já esperava, verifiquei que se trata de uma tradução primorosa, que recomendo vivamente.
Em comentário sobre que fiz no dia 3/12 sobre uma postagem minha intitulada “Comentários de Aetano sobre Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas”, de 2/12, cito um trecho Humano, demasiado humano, de Nietzsche, comentando que, infelizmente, a segunda parte desse livro, de onde eu retirara a citação, ainda não havia sido traduzida. Pois bem, hoje mesmo recebi da Companhia das Letras um exemplar da tradução dessa segunda parte, feita pelo nosso grande tradutor de filosofia alemã, Paulo César de Souza. Já li várias páginas e, como eu já esperava, verifiquei que se trata de uma tradução primorosa, que recomendo vivamente.
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Tradução
22.12.08
Joseph Brodsky: "Я был только тем, чего" / "Eu era apenas quanto" : traduzido por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher
.
Eu era apenas quanto
Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.
Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.
Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.
Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.
Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.
E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.
Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.
Я был только тем, чего
Я был только тем, чего
ты касалась ладонью,
над чем в глухую, воронью
ночь склоняла чело.
Я был лишь тем, что ты
там, внизу, различала:
смутный облик сначала,
много позже - черты.
Это ты, горяча,
ошую, одесную
раковину ушную
мне творила, шепча.
Это ты, теребя
штору, в сырую полость
рта вложила мне голос,
окликавший тебя.
Я был попросту слеп.
Ты, возникая, прячась,
даровала мне зрячесть.
Так оставляют след.
Так творятся миры.
Так, сотворив их, часто
оставляют вращаться,
расточая дары.
Так, бросаем то в жар,
то в холод, то в свет, то в темень,
в мирозданьи потерян,
кружится шар.
De: BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Introdução e textos complementares de Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
Eu era apenas quanto
Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.
Eu era, embaixo, quanto
notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.
Foste quem logo, ardente,
criou-me a sussurrar,
seja à direita, à esquerda,
a concha auricular.
Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.
Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.
E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.
Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.
Я был только тем, чего
Я был только тем, чего
ты касалась ладонью,
над чем в глухую, воронью
ночь склоняла чело.
Я был лишь тем, что ты
там, внизу, различала:
смутный облик сначала,
много позже - черты.
Это ты, горяча,
ошую, одесную
раковину ушную
мне творила, шепча.
Это ты, теребя
штору, в сырую полость
рта вложила мне голос,
окликавший тебя.
Я был попросту слеп.
Ты, возникая, прячась,
даровала мне зрячесть.
Так оставляют след.
Так творятся миры.
Так, сотворив их, часто
оставляют вращаться,
расточая дары.
Так, бросаем то в жар,
то в холод, то в свет, то в темень,
в мирозданьи потерян,
кружится шар.
De: BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Introdução e textos complementares de Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
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Poema
20.12.08
Robert Graves: "In broken images" / "Com imagens quebradas"
.
Com imagens quebradas
Ele é rápido, pensando com imagens claras;
Eu sou lento, pensando com imagens quebradas.
Ele se torna obtuso, confiando em suas imagens claras;
Eu me torno agudo, desconfiando das minhas imagens quebradas.
Confiando em suas imagens, ele pressupõe a importância delas;
Desconfiando das minhas imagens, questiono a importância delas.
Pressupondo a importância delas, ele pressupõe o fato;
Questionando a importância delas, questiono o fato.
Quando o fato o decepciona, ele questiona seus sentidos;
Quando o fato me decepciona, aprovo meus sentidos.
Ele continua rápido e obtuso com suas imagens claras;
Eu continuo lento e agudo com minhas imagens quebradas.
Ele numa nova confusão de seu entendimento;
Eu num novo entendimento da minha confusão.
In broken images
He is quick, thinking in clear images;
I am slow, thinking in broken images.
He becomes dull, trusting to his clear images;
I become sharp, mistrusting my broken images.
Trusting his images, he assumes their relevance;
Mistrusting my images, I question their relevance.
Assuming their relevance, he assumes the fact;
Questioning their relevances, I question the fact.
When the fact fails him, he questions his senses;
When the facts fails me, I approve my senses.
He continues quick and dull in his clear images;
I continue slow and clear in my broken images.
He, in a new confusion of his understanding;
I, in a new understanding of my confusion
De: GRAVES, Robert. Poems selected by himself. London: Penguin, 1961.
Com imagens quebradas
Ele é rápido, pensando com imagens claras;
Eu sou lento, pensando com imagens quebradas.
Ele se torna obtuso, confiando em suas imagens claras;
Eu me torno agudo, desconfiando das minhas imagens quebradas.
Confiando em suas imagens, ele pressupõe a importância delas;
Desconfiando das minhas imagens, questiono a importância delas.
Pressupondo a importância delas, ele pressupõe o fato;
Questionando a importância delas, questiono o fato.
Quando o fato o decepciona, ele questiona seus sentidos;
Quando o fato me decepciona, aprovo meus sentidos.
Ele continua rápido e obtuso com suas imagens claras;
Eu continuo lento e agudo com minhas imagens quebradas.
Ele numa nova confusão de seu entendimento;
Eu num novo entendimento da minha confusão.
In broken images
He is quick, thinking in clear images;
I am slow, thinking in broken images.
He becomes dull, trusting to his clear images;
I become sharp, mistrusting my broken images.
Trusting his images, he assumes their relevance;
Mistrusting my images, I question their relevance.
Assuming their relevance, he assumes the fact;
Questioning their relevances, I question the fact.
When the fact fails him, he questions his senses;
When the facts fails me, I approve my senses.
He continues quick and dull in his clear images;
I continue slow and clear in my broken images.
He, in a new confusion of his understanding;
I, in a new understanding of my confusion
De: GRAVES, Robert. Poems selected by himself. London: Penguin, 1961.
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Robert Graves
17.12.08
Donald Hall: "The master"
.
O mestre
Onde o poeta pára, o poema
começa. O poema só pede
que o poeta saia do caminho.
O poema se esvazia
para se preencher.
O poema está mais perto do poeta
quando o poeta lamenta
que ele sumiu para sempre.
Quando poeta desaparece
o poema se torna visível.
Que pode o poema escolher
de melhor para o poeta?
Escolherá que o poeta
não escolha por si.
The master
Where the poet stops, the poem
begins. The poem asks only
that the poet get out of the way.
The poem empties itself
in order to fill itself up.
The poem is nearest the poet
when the poet laments
that it has vanished forever.
When the poet disappears
the poem becomes visible.
What may the poem choose,
best for the poet?
It will choose that the poet
not choose for himself.
De: HALL, Donald. White apples and The taste of stone. Selected poems 1946-2006. New York: Houghton Mifflin, 2006.
O mestre
Onde o poeta pára, o poema
começa. O poema só pede
que o poeta saia do caminho.
O poema se esvazia
para se preencher.
O poema está mais perto do poeta
quando o poeta lamenta
que ele sumiu para sempre.
Quando poeta desaparece
o poema se torna visível.
Que pode o poema escolher
de melhor para o poeta?
Escolherá que o poeta
não escolha por si.
The master
Where the poet stops, the poem
begins. The poem asks only
that the poet get out of the way.
The poem empties itself
in order to fill itself up.
The poem is nearest the poet
when the poet laments
that it has vanished forever.
When the poet disappears
the poem becomes visible.
What may the poem choose,
best for the poet?
It will choose that the poet
not choose for himself.
De: HALL, Donald. White apples and The taste of stone. Selected poems 1946-2006. New York: Houghton Mifflin, 2006.
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Poema
16.12.08
Johann Wolfgang von Goethe: de "Wilhelm Meisters Lehrjahre"
.
Palavras de Therese:
Simplesmente não consigo compreender como é que se pode acreditar que Deus fale conosco através de livros e de histórias. Se o mundo não te revela imediatamente de que modo se relaciona contigo, se teu coração não te diz o que deves a ti próprio e aos outros, jamais o farão os livros, que na verdade só servem para dar nomes aos nossos erros.
De: GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Buch VII. München: DTV, 1988.
Palavras de Therese:
Simplesmente não consigo compreender como é que se pode acreditar que Deus fale conosco através de livros e de histórias. Se o mundo não te revela imediatamente de que modo se relaciona contigo, se teu coração não te diz o que deves a ti próprio e aos outros, jamais o farão os livros, que na verdade só servem para dar nomes aos nossos erros.
De: GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Buch VII. München: DTV, 1988.
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Deus,
Johann Wolfgang von Goethe
15.12.08
Cioran: sobre Nietzsche
.
Ainda jovens, exercitamo-nos na filosofia, menos para nela buscar uma visão que um estimulante; encarniçamo-nos com as idéias, adivinhamos o delírio que as produziu, sonhamos imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz com o malabarismo das altitudes; num pensador, ela ama o saltimbanco; em Nietzsche, amamos Zaratustra, suas poses, sua clowneria mística, verdadeira feira dos cumes...
Sua idolatria da força deriva menos de um esnobismo evolucionista que de uma tensão interior projetada para o exterior, de uma embriaguez que interpreta o devir e o aceita. Disso resultaria uma imagem falsa da vida e da história. Mas era preciso passar por lá, pela orgia filosófica, pelo culto da vitalidade. Os que se recusaram a fazê-lo não conhecerão jamais a recaída, o antípoda e os trejeitos desse culto: ficarão fechados às fontes do engano.
Tínhamos com Nietzsche acreditado na perenidade dos transes; graças à maturidade do nosso cinismo, fomos mais longe que ele. A idéia do super-homem não nos parece mais que uma elucubração; ela nos dava a impressão de ser tão exata quanto um dado da experiência. Assim se esvaece o encantador da nossa juventude. Mas quem dele – se ele foi muitos – permanece ainda? É o especialista em degradações, o psicólogo, psicólogo agressivo, não somente observador como os moralistas. Escruta como inimigo e se cria inimigos. Mas seus inimigos, tira-os de si, como os vícios que denuncia. Encarniça-se contra os fracos? É que faz introspecção; e quando ataca a decadência, descreve o seu estado. Todos os seus ódios vão indiretamente contra si próprio. Suas fraquezas, ele as proclama e as eleva a ideal; se ele se execra, quem sofre é o cristianismo ou o socialismo. Seu diagnóstico do niilismo é irrefutável: é que ele mesmo é niilista, e que o confessa. Panfletário amoroso de seus adversários, não conseguiria suportar-se se não tivesse consigo combatido contra si, se não tivesse colocado suas misérias em outro lugar, nos outros: vingou-se neles do que ele era. Tendo praticado a psicologia como herói, propõe, aos apaixonados pelo Inextricável, uma diversidade de impasses.
Medimos sua fecundidade pelas possibilidades que nos oferece de renegá-lo continuamente sem esgotá-lo. Espírito nômade, ele sabe variar seus desequilíbrios. Em todas as coisas, sustentou o pró e o contra: espalhar-se em múltiplos destinos é o procedimento daqueles que se entregam à especulação por não conseguirem escrever tragédias. – De todo modo, exibindo suas histerias, Nietzsche nos livrou do pudor das nossas: suas misérias foram-nos salutares. Ele abriu a época dos “complexos”.
De: CIORAN. "L'escroc du gouffre". In: Syllogismes de l'amertume. Paris: Folio, 1980.
Ainda jovens, exercitamo-nos na filosofia, menos para nela buscar uma visão que um estimulante; encarniçamo-nos com as idéias, adivinhamos o delírio que as produziu, sonhamos imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz com o malabarismo das altitudes; num pensador, ela ama o saltimbanco; em Nietzsche, amamos Zaratustra, suas poses, sua clowneria mística, verdadeira feira dos cumes...
Sua idolatria da força deriva menos de um esnobismo evolucionista que de uma tensão interior projetada para o exterior, de uma embriaguez que interpreta o devir e o aceita. Disso resultaria uma imagem falsa da vida e da história. Mas era preciso passar por lá, pela orgia filosófica, pelo culto da vitalidade. Os que se recusaram a fazê-lo não conhecerão jamais a recaída, o antípoda e os trejeitos desse culto: ficarão fechados às fontes do engano.
Tínhamos com Nietzsche acreditado na perenidade dos transes; graças à maturidade do nosso cinismo, fomos mais longe que ele. A idéia do super-homem não nos parece mais que uma elucubração; ela nos dava a impressão de ser tão exata quanto um dado da experiência. Assim se esvaece o encantador da nossa juventude. Mas quem dele – se ele foi muitos – permanece ainda? É o especialista em degradações, o psicólogo, psicólogo agressivo, não somente observador como os moralistas. Escruta como inimigo e se cria inimigos. Mas seus inimigos, tira-os de si, como os vícios que denuncia. Encarniça-se contra os fracos? É que faz introspecção; e quando ataca a decadência, descreve o seu estado. Todos os seus ódios vão indiretamente contra si próprio. Suas fraquezas, ele as proclama e as eleva a ideal; se ele se execra, quem sofre é o cristianismo ou o socialismo. Seu diagnóstico do niilismo é irrefutável: é que ele mesmo é niilista, e que o confessa. Panfletário amoroso de seus adversários, não conseguiria suportar-se se não tivesse consigo combatido contra si, se não tivesse colocado suas misérias em outro lugar, nos outros: vingou-se neles do que ele era. Tendo praticado a psicologia como herói, propõe, aos apaixonados pelo Inextricável, uma diversidade de impasses.
Medimos sua fecundidade pelas possibilidades que nos oferece de renegá-lo continuamente sem esgotá-lo. Espírito nômade, ele sabe variar seus desequilíbrios. Em todas as coisas, sustentou o pró e o contra: espalhar-se em múltiplos destinos é o procedimento daqueles que se entregam à especulação por não conseguirem escrever tragédias. – De todo modo, exibindo suas histerias, Nietzsche nos livrou do pudor das nossas: suas misérias foram-nos salutares. Ele abriu a época dos “complexos”.
De: CIORAN. "L'escroc du gouffre". In: Syllogismes de l'amertume. Paris: Folio, 1980.
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14.12.08
A autonomia da arte
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 13 de dezembro:
A autonomia da arte
Lançado neste ano no Brasil, o livro de Peter Bürger "Teoria da Vanguarda" (Cosac Naify) afirma que o conceito de autonomia da arte não passa de uma categoria ideológica burguesa. Segundo ele, é a separação relativa na sociedade burguesa entre, por um lado, a obra de arte, e, por outro lado, a prática da vida, que favorece a extrapolação para a idéia errônea de que a obra de arte é totalmente independente da sociedade.
Na verdade, são o esteticismo e o formalismo que defendem a independência total da arte em relação à sociedade. Bürger comete o equívoco de confundir a tese da autonomia da arte com o esteticismo ou o formalismo. Por ser um equívoco comum, parece-me importante tentar dissipá-lo.
A fonte do conceito de autonomia da arte é o pensamento estético de Kant. Pois é numa formulação kantiana que está também a origem do equívoco em questão. É que Kant fala da apreciação estética como independente de todo interesse. Isso é comumente interpretado como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando conteúdo ou significado.
O que o desinteresse e a autonomia realmente significam, porém, é que aquilo que é objeto de apreciação estética não tem, enquanto tal, nenhuma função prática, moral ou cognitiva. Ora, consideramos que aquilo que não tem função prática, moral ou cognitiva simplesmente não serve para nada.
Sendo assim, praticamente tudo o que fazemos na vida é o oposto da apreciação estética, pois praticamente tudo o que fazemos serve para alguma coisa, ainda que apenas para satisfazer um desejo. Praticamente nada do que fazemos vale, portanto, por si. A própria linguagem funciona como um instrumento através do qual classificamos, isto é, seccionamos o mundo em objetos, para melhor conhecê-lo e usá-lo.
Enquanto objeto de apreciação estética, uma coisa não obedece a essa razão instrumental: enquanto tal, ela não serve para nada, ela vale por si. Assim são as obras de arte tomadas enquanto obras de arte. As hierarquias que entram em jogo nas coisas que obedecem à razão instrumental, isto é, nas coisas de que nos servimos, não entram em jogo nas obras de arte tomadas enquanto tais.
Um retrato numa carteira de identidade serve para identificar seu portador. Um retrato feito por artista como Manet, por exemplo, na medida em que é apreciado esteticamente, jamais tem esse sentido. A identidade do retratado pode até ter alguma relevância, mas não mais do que as demais figuras, o fundo, a luz, a sombra, a composição, os planos, as formas, as linhas, as cores, o tom do quadro, a maneira de todas essas coisas se relacionarem etc. A matéria (tela e tinta) não é menos importante do que as formas; estas não são menos importantes do que o motivo; este não é menos importante do que a identidade do retratado etc. Tudo é relevante; e nenhuma coisa é automaticamente mais relevante que outra. É sem nenhum fim ulterior que a obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, o nosso intelecto, a nossa imaginação e sensibilidade.
Tudo – matérias, formas, significantes, significados –, tudo é relevante para a apreciação estética de uma obra de arte. Ao ler um poema de Brecht, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como nele se manifesta; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais o julgo: e ela é mediatizada por todos os demais elementos da obra, que, por sua vez, são por ela mediatizados. É nisso que consiste a apreciação estética de uma obra. Isso nada tem a ver com o formalismo ou o esteticismo, pois, longe de excluir qualquer conteúdo social, inclui todos eles.
Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo, e tudo é matéria e tudo é pensamento. Voltando ao quadro de Manet, no final ele não é sobre o retratado, embora o retratado faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, a obra de arte existe para ser um objeto que valerá por si, de modo que, sem nenhuma finalidade ulterior, isto é, desinteressadamente, teremos prazer de pensar sobre ela, e de pensar sobre ela com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Sendo assim, a luta contra a autonomia da arte tem por fim submeter também a arte à razão instrumental, isto é, tem por fim eliminar também da arte a dimensão em virtude da qual, sem servir para nada, ela vale por si. Trata-se, em suma, da luta pelo empobrecimento do mundo.
A autonomia da arte
Lançado neste ano no Brasil, o livro de Peter Bürger "Teoria da Vanguarda" (Cosac Naify) afirma que o conceito de autonomia da arte não passa de uma categoria ideológica burguesa. Segundo ele, é a separação relativa na sociedade burguesa entre, por um lado, a obra de arte, e, por outro lado, a prática da vida, que favorece a extrapolação para a idéia errônea de que a obra de arte é totalmente independente da sociedade.
Na verdade, são o esteticismo e o formalismo que defendem a independência total da arte em relação à sociedade. Bürger comete o equívoco de confundir a tese da autonomia da arte com o esteticismo ou o formalismo. Por ser um equívoco comum, parece-me importante tentar dissipá-lo.
A fonte do conceito de autonomia da arte é o pensamento estético de Kant. Pois é numa formulação kantiana que está também a origem do equívoco em questão. É que Kant fala da apreciação estética como independente de todo interesse. Isso é comumente interpretado como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando conteúdo ou significado.
O que o desinteresse e a autonomia realmente significam, porém, é que aquilo que é objeto de apreciação estética não tem, enquanto tal, nenhuma função prática, moral ou cognitiva. Ora, consideramos que aquilo que não tem função prática, moral ou cognitiva simplesmente não serve para nada.
Sendo assim, praticamente tudo o que fazemos na vida é o oposto da apreciação estética, pois praticamente tudo o que fazemos serve para alguma coisa, ainda que apenas para satisfazer um desejo. Praticamente nada do que fazemos vale, portanto, por si. A própria linguagem funciona como um instrumento através do qual classificamos, isto é, seccionamos o mundo em objetos, para melhor conhecê-lo e usá-lo.
Enquanto objeto de apreciação estética, uma coisa não obedece a essa razão instrumental: enquanto tal, ela não serve para nada, ela vale por si. Assim são as obras de arte tomadas enquanto obras de arte. As hierarquias que entram em jogo nas coisas que obedecem à razão instrumental, isto é, nas coisas de que nos servimos, não entram em jogo nas obras de arte tomadas enquanto tais.
Um retrato numa carteira de identidade serve para identificar seu portador. Um retrato feito por artista como Manet, por exemplo, na medida em que é apreciado esteticamente, jamais tem esse sentido. A identidade do retratado pode até ter alguma relevância, mas não mais do que as demais figuras, o fundo, a luz, a sombra, a composição, os planos, as formas, as linhas, as cores, o tom do quadro, a maneira de todas essas coisas se relacionarem etc. A matéria (tela e tinta) não é menos importante do que as formas; estas não são menos importantes do que o motivo; este não é menos importante do que a identidade do retratado etc. Tudo é relevante; e nenhuma coisa é automaticamente mais relevante que outra. É sem nenhum fim ulterior que a obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, o nosso intelecto, a nossa imaginação e sensibilidade.
Tudo – matérias, formas, significantes, significados –, tudo é relevante para a apreciação estética de uma obra de arte. Ao ler um poema de Brecht, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como nele se manifesta; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais o julgo: e ela é mediatizada por todos os demais elementos da obra, que, por sua vez, são por ela mediatizados. É nisso que consiste a apreciação estética de uma obra. Isso nada tem a ver com o formalismo ou o esteticismo, pois, longe de excluir qualquer conteúdo social, inclui todos eles.
Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo, e tudo é matéria e tudo é pensamento. Voltando ao quadro de Manet, no final ele não é sobre o retratado, embora o retratado faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, a obra de arte existe para ser um objeto que valerá por si, de modo que, sem nenhuma finalidade ulterior, isto é, desinteressadamente, teremos prazer de pensar sobre ela, e de pensar sobre ela com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.
Sendo assim, a luta contra a autonomia da arte tem por fim submeter também a arte à razão instrumental, isto é, tem por fim eliminar também da arte a dimensão em virtude da qual, sem servir para nada, ela vale por si. Trata-se, em suma, da luta pelo empobrecimento do mundo.
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11.12.08
Robinson Jeffers: "Time will come"
.
Chegará um tempo, sem dúvida,
em que também o sol morrerá; os planetas congelarão e o ar sobre eles;
gazes congelados, com flocos de ar
serão a poeira:
que nenhum vento jamais bulirá: essa poeira mesma a cintilar à luz baixa dos astros
é o vento morto, o corpo branco do vento.
Também a galáxia morrerá; o brilho da Via Láctea, nosso universo, todos os astros que têm nomes estão mortos.
Vasta é a noite. Cresceste tanto, querida noite, andando por teus salões vazios, tão alta!
Time will come, no doubt,
When the sun too shall die; the planets will freeze, and the air on them;
frozen gases, white flakes of air
will be the dust:
which no wind ever will stir; this very dust in dim starlight glistening
is dead wind, the white corpse of wind.
Also the galaxy will die; the glitter of the Milky Way, our universe, all the stars that have names are dead.
Vast is the night. How you have grown, dear night, walking your empty halls, how tall!
JEFFERS, Robinson. The double axe and other poems. New York: Liveright, 1977.
Chegará um tempo, sem dúvida,
em que também o sol morrerá; os planetas congelarão e o ar sobre eles;
gazes congelados, com flocos de ar
serão a poeira:
que nenhum vento jamais bulirá: essa poeira mesma a cintilar à luz baixa dos astros
é o vento morto, o corpo branco do vento.
Também a galáxia morrerá; o brilho da Via Láctea, nosso universo, todos os astros que têm nomes estão mortos.
Vasta é a noite. Cresceste tanto, querida noite, andando por teus salões vazios, tão alta!
Time will come, no doubt,
When the sun too shall die; the planets will freeze, and the air on them;
frozen gases, white flakes of air
will be the dust:
which no wind ever will stir; this very dust in dim starlight glistening
is dead wind, the white corpse of wind.
Also the galaxy will die; the glitter of the Milky Way, our universe, all the stars that have names are dead.
Vast is the night. How you have grown, dear night, walking your empty halls, how tall!
JEFFERS, Robinson. The double axe and other poems. New York: Liveright, 1977.
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Ludwig Wittgenstein: de "Zettel"
.
455. (O filósofo não é cidadão de uma comunidade de pensamento. É isso que faz dele um filósofo.)
455. (Der Philosoph ist nicht Bürger einer Denkgemeinde. Das ist, was ihn zum Philosophen macht.)
De: WITTGENSTEIN, Ludwig. Zettel. ANSCOMBE, G.E.M. e WRIGHT, G.H. von (orgs.). Berkeley: University of California Press, 1967.
455. (O filósofo não é cidadão de uma comunidade de pensamento. É isso que faz dele um filósofo.)
455. (Der Philosoph ist nicht Bürger einer Denkgemeinde. Das ist, was ihn zum Philosophen macht.)
De: WITTGENSTEIN, Ludwig. Zettel. ANSCOMBE, G.E.M. e WRIGHT, G.H. von (orgs.). Berkeley: University of California Press, 1967.
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Ludwig Wittgenstein
8.12.08
Cioran: "Genealogia do fanatismo"
.
Genealogia do fanatismo
Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé -- dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de urna verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça — vícios mais nobres do que todas as suas virtudes —, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas conseqüências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo — tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror —, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque — verdadeiros benfeitores da humanidade — destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos; a administração, com seus regulamentos — metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.
Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas só possuem caprichos
e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...
O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir: e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre per urna idéia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança uma calamidade...
De: CIORAN. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
Genealogia do fanatismo
Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé -- dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de urna verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.
No momento em que nos recusamos a admitir o caráter intercambiável das idéias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometéica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça — vícios mais nobres do que todas as suas virtudes —, embrenhou-se em uma via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo suas conseqüências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo — tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror —, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque — verdadeiros benfeitores da humanidade — destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Em um espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos; a administração, com seus regulamentos — metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.
Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve a eles os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas só possuem caprichos
e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...
O fanático é incorruptível: se mata por uma idéia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir: e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre per urna idéia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança uma calamidade...
De: CIORAN. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
7.12.08
Lêdo Ivo: "Valsa fúnebre de Hermengarda
.
Valsa fúnebre de Hermengarda
Eis-me junto à tua sepultura, Hermengarda,
para chorar a carne pobre e pura que nenhum de nós viu apodrecer.
Outros viriam lúcidos e enlutados,
porém eu venho bêbado, Hermengarda, eu venho bêbado.
E se amanhã encontrarem a cruz de tua cova jogada ao chão
não foi a noite, Hermengarda, nem foi o vento.
Fui eu.
Quis amparar a minha embriaguez à tua cruz
e rolei ao chão onde repousas
coberta de boninas, triste embora.
Eis-me junto à tua cova, Hermengarda,
para chorar o nosso amor de sempre.
Não é a noite, Hermengarda, nem é o vento.
Sou eu.
De: IVO, Lêdo. "As imaginações". In: Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
Valsa fúnebre de Hermengarda
Eis-me junto à tua sepultura, Hermengarda,
para chorar a carne pobre e pura que nenhum de nós viu apodrecer.
Outros viriam lúcidos e enlutados,
porém eu venho bêbado, Hermengarda, eu venho bêbado.
E se amanhã encontrarem a cruz de tua cova jogada ao chão
não foi a noite, Hermengarda, nem foi o vento.
Fui eu.
Quis amparar a minha embriaguez à tua cruz
e rolei ao chão onde repousas
coberta de boninas, triste embora.
Eis-me junto à tua cova, Hermengarda,
para chorar o nosso amor de sempre.
Não é a noite, Hermengarda, nem é o vento.
Sou eu.
De: IVO, Lêdo. "As imaginações". In: Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
5.12.08
Angela Melim: "Meu pai nos abandonou"
.
Meu pai nos abandonou.
Minha mãe casou e mudou.
Vovó morreu.
Os irmãos sumiram no mundo
ou submundo.
Sem explicação
Yvonne nunca mais falou comigo
e, para Ronaldo,
sou fantasma do passado.
Vejo meus filhos já voando.
Nem um pássaro na mão.
De: MELIM, Angela. Possibilidades. Rio de Janeiro, agosto de 2006.
Meu pai nos abandonou.
Minha mãe casou e mudou.
Vovó morreu.
Os irmãos sumiram no mundo
ou submundo.
Sem explicação
Yvonne nunca mais falou comigo
e, para Ronaldo,
sou fantasma do passado.
Vejo meus filhos já voando.
Nem um pássaro na mão.
De: MELIM, Angela. Possibilidades. Rio de Janeiro, agosto de 2006.
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Ângela Melim,
Poema
3.12.08
Alteração na tradução do poema "Remordimiento" / "Remorso"
.
Uma falha da minha tradução resultou numa negligência interpretativa. É que traduzi “naderias” por “ninharias”. Ora, “naderias” vem de “nada”, enquanto “ninharias” vem de “niño”, isto é, “menino”, “criança”. A diferença não é inconsequente. Percebendo o erro, pensei em traduzir “naderias”, palavra que não existe em português, por “nonadas”. Mas “nonada” inevitavelmente traz o mundo de Guimarães Rosa à mente, o que normalmente não é ruim, mas não é adequado ao mundo do poema em questão. Além disso, o “nada” está muito “pesado” em “nonada”, enquanto que parece leve, quase leviano, em “naderia”. Como penso que todo o vocabulário latino – e, em particular, o das línguas latinas ibéricas – é praticamente todo, se quisermos, também nosso (feitas as devidas adaptações que, em alguns casos, são necessárias), resolvi propor a incorporação do substantivo “naderia” ao português, uma vez que ele é imediatamente inteligível pelo leitor. Feita essa alteração, corrigi, na resposta às observações do Aetano, também a negligência interpretativa mencionada acima.
Uma falha da minha tradução resultou numa negligência interpretativa. É que traduzi “naderias” por “ninharias”. Ora, “naderias” vem de “nada”, enquanto “ninharias” vem de “niño”, isto é, “menino”, “criança”. A diferença não é inconsequente. Percebendo o erro, pensei em traduzir “naderias”, palavra que não existe em português, por “nonadas”. Mas “nonada” inevitavelmente traz o mundo de Guimarães Rosa à mente, o que normalmente não é ruim, mas não é adequado ao mundo do poema em questão. Além disso, o “nada” está muito “pesado” em “nonada”, enquanto que parece leve, quase leviano, em “naderia”. Como penso que todo o vocabulário latino – e, em particular, o das línguas latinas ibéricas – é praticamente todo, se quisermos, também nosso (feitas as devidas adaptações que, em alguns casos, são necessárias), resolvi propor a incorporação do substantivo “naderia” ao português, uma vez que ele é imediatamente inteligível pelo leitor. Feita essa alteração, corrigi, na resposta às observações do Aetano, também a negligência interpretativa mencionada acima.
2.12.08
Comentários de Aetano sobre Jorges Luís Borges e Fernando Pessoa, e respostas minhas
Dois comentários de Aetano, um sobre o poema de Borges, e outro sobre o do Alberto Caeiro – em ambos ele se refere a Nietzsche –, provocaram-me a escrever respostas um pouco mais longas do que o normal. Achei que tanto os comentários como as respostas mereciam ser postadas aqui.
Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:
Aetano disse:
"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta
Minha resposta:
Aetano,
Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.
O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".
“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.
Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.
É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.
Antonio Cicero
Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:
Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.
Minha resposta:
Aetano,
Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:
“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.
De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.
Outro trecho:
“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”
De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.
E um trecho um pouco mais forte:
“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”
De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.
Antonio Cicero
Começo com o segundo, sobre o poema do Borges:
Aetano disse:
"Não cometamos covardia em relação a nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso."
Nietzsche. "Crepúsculo dos ídolos", p. 10.
Grato pelo poema, anyway.
@eta
Minha resposta:
Aetano,
Aparentemente, você pretende usar o aforismo de Nietzsche para criticar o poema do Borges. Para mim, isso é o exemplo de uma confusão que deve ser evitada. O aforismo consiste numa proposição que se quer verdadeira. Ela diz que o remorso é indecente, pois representa uma espécie de deserção do ato a que se refere, logo, uma covardia.
O poema não deve ser lido como uma proposição, pois ele consiste num objeto artístico, e um objeto artístico de verdade é muito mais complexo que qualquer proposição. Ele não está, de fato, afirmando coisa alguma. Quem é o sujeito do poema? O Borges? É provável que não. Trata-se de um personagem. Será que Borges concorda com ele? Certamente há ironia no poema. O “pecado” que o sujeito do poema cometeu é o oposto do “pecado” religioso, que desvaloriza esta vida em nome da “outra”. Ele diz não ter sido feliz aqui na terra. Por que? Porque a vida que seus pais – e que o senso comum considera uma vida feliz – não foi a vida que ele livremente escolheu, não foi a vida que o fascinou e fisgou, isto é a vida de artista. Normalmente, julgamos feliz aquele que faz o que quer. Aqui, porém, o artista se considera infeliz porque fez o que quis, e não o que, segundo os outros, traria a felicidade. É que o sujeito do poema é artista, e justamente o artista (embora não só ele) se fascina pelas vidas que não teve, que não escolheu, que poderia ter escolhido. Assim, muitas vezes ele é capaze de questionar as escolhas que fez, pois elas sempre representam um empobrecimento das infinitas possibilidades que a vida lhe abria antes que elas tivessem sido feitas. Essa é “sombra” que acompanha todos nós, quer a vejamos, quer não. O sujeito do poema, artista, vê a sombra, e reconsidera sua vida. Tal é o Leitmotif da vida de um poeta como Valéry, que observou uma vez: "Que me faz o que já fiz? Há algo mais burro que o remorso: é o contentamento".
“Remorso” é, etimologicamente, “morder de novo”, como o título original do poema: “Remordimiento”, remordimento. O “remorso” aqui é o ato pelo qual o artista incessantemente tenta morder e remorder, através da sua arte, aquilo que não mordeu na vida. Não se trata, ao contrário do remorso de que fala Nietzsche, de renegar o que fez da vida, mas de querer provar também até daquilo que ele não fez dela.
Um último detalhe: o poeta diz ter aplicado sua mente “às simétricas porfias / da arte, que entretece naderias”. Trata-se de ninharias, do ponto de vista dos que o queriam ver feliz. Essas ninharias se opõem, na cabeça deles, às coisas substanciais, às coisas que têm valor (e que são feitas pelos homens “valentes”, entre os quais o artista não se conta), às atividades práticas e positivas que eles julgam trazer a felicidade. Mas a palavra “naderia” vem de “nada”. O artista entretece naderias, coisas vindas do nada, à sua arte. Assim são as considerações do poeta sobre o que ele poderia ter sido mas não foi, sobre o que não mais será, sobre o não ser da felicidade que lhe propunham, sobre o não ser entrelaçado à sua própria vida. Mas só da vida dele? Não será a vida de todo homem, pela sua própria mortalidade, pela sua própria finitude, entrelaçada ao nada? Não faz parte de toda vida humana a sombra do que não foi, do que não fez, do que poderia ter sido ou feito, do que não pode mais ser ou fazer? Nenhuma vida humana é pura positividade, sem traço da negatividade, do nada: ao contrário, toda vida humana é inteiramente entrelaçada com o nada. É, portanto, uma espécie de mentira a tentativa de reduzir a “ninharias” as “naderias” do artista. Trata-se de uma espécie de tentativa de recalcar o nada, uma incapacidade de aceitar a sombra. Mas, nesse caso, é o artista, que enfrenta a sombra, que é verdadeiramente valente. Paradoxalmente, então, a afirmação da vida do homem "positivo" é superficial, pois, escamoteando a negatividade, não afirma toda a vida; e é o poema intitulado “Remorso”, que incorpora em sua própria tessitura também a sombra e o nada, e tanto o que é quanto o que poderia ter sido, que constitui uma afirmação trágica porém profunda da vida.
É claro que o que acabo de dizer é apenas uma das muitas leituras que esse poema oferece. Comparado com ele, infinitamente profundo e rico, o aforismo de Nietzsche é superficial e pobre. Ao dizer isso não pretendo, de modo nenhum, dizer que Nietzsche fosse superficial ou pobre. Ele era freqüentemente profundo e rico. É a poesia que é mais profunda e rica do que as proposições filosóficas.
Antonio Cicero
Outro comentário do Aetano, este sobre o poema do Alberto Caeiro:
Há pouco tempo procurei saber da influência de Nietzsche na poesia de Pessoa, mas não encontrei nada (nem continuei a busca). Mas há muito do "profeta sem morada" na poesia de Pessoa. Seria possível postar textos de Nietzsche que guardam grande semelhança com esse poema de Caeiro, por exemplo, e reconhecer em ambos (textos e poema) um ataque a Kant e à sua "coisa em si". Mais. Seria possível entender o presente poema como uma negação de todo o IDEAL, de toda METAFÍSICA, enfim, de toda idéia que divida o mundo em duas realidades distintas, quais sejam, essência e aparência.
Grato pelo espaço.
@eta.
Minha resposta:
Aetano,
Fernando Pessoa de fato leu Nietzsche, mas é muito crítico em relação a ele. Algumas críticas me parecem perfeitas, outras nem tanto. Ele afirma, por exemplo:
“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.
De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980.
Outro trecho:
“O ódio de Nietzsche ao cristismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”
De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.
E um trecho um pouco mais forte:
“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui - mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor - a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”
De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.
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1.12.08
Jorge Luis Borges: "El remordimiento" / "O remorso"
.
El remordimiento
He cometido el peor de los pecados
Que un hombre puede cometer. No he sido
Feliz. Que los glaciares del olvido
Me arrastren y me pierdan, despiadados.
Mis padres me engendraron para el juego
Arriesgado y hermoso de la vida,
Para la tierra, el agua, el aire, el fuego.
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida
No fue su joven voluntad. Mi mente
Se aplicó a las simétricas porfías
Del arte, que entreteje naderías.
Me legaron valor. No fui valiente.
No me abandona. Siempre está a mi lado
La sombra de haber sido un desdichado.
O remorso
Cometi o pior dos pecados
Que um homem pode cometer. Não fui
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, desapiedados.
Meus pais me engendraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida,
Para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se aplicou às simétricas porfias
Da arte, que entretece naderias.
Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.
De: BORGES, Jorge Luís. "La moneda de hierro". In: Obras completas II: 1975-1985. Buenos Aires, 1989.
El remordimiento
He cometido el peor de los pecados
Que un hombre puede cometer. No he sido
Feliz. Que los glaciares del olvido
Me arrastren y me pierdan, despiadados.
Mis padres me engendraron para el juego
Arriesgado y hermoso de la vida,
Para la tierra, el agua, el aire, el fuego.
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida
No fue su joven voluntad. Mi mente
Se aplicó a las simétricas porfías
Del arte, que entreteje naderías.
Me legaron valor. No fui valiente.
No me abandona. Siempre está a mi lado
La sombra de haber sido un desdichado.
O remorso
Cometi o pior dos pecados
Que um homem pode cometer. Não fui
Feliz. Que os glaciares do esquecimento
Me arrastem e me percam, desapiedados.
Meus pais me engendraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida,
Para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se aplicou às simétricas porfias
Da arte, que entretece naderias.
Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.
De: BORGES, Jorge Luís. "La moneda de hierro". In: Obras completas II: 1975-1985. Buenos Aires, 1989.
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