19.6.07

Alberto Pucheu: Sobre "Poesia e filosofia" de Antonio Cicero

Alberto Pucheu me enviou o seguinte texto, em que faz sérias e interessantes objeções ao artigo que publiquei em 1º de junho, na minha coluna da Ilustrada. Logo publicarei a minha resposta.


Abrindo seu último texto publicado na Ilustrada, Antonio Cicero afirmou: “Existe, entre muitos ensaístas e alguns poetas contemporâneos, uma vontade de apagar as fronteiras entre a poesia e a filosofia, e de escrever textos que sejam simultaneamente as duas coisas, ou que passem imperceptivelmente de uma para a outra. Tentarei mostrar algumas das razões pelas quais considero isso um erro, tanto para a poesia, quanto para a filosofia”.
Não apenas entre os contemporâneos se faz presente a realização rejeitada por Cicero, mas ela se coloca desde o começo, chegando até hoje, seja, como questão implícita para nós, nos poemas de Parmênides e Empédocles, explicitamente em Platão (apesar da exangue leitura da expulsão dos poetas), em Schlegel (“O que se pode fazer, enquanto filosofia e poesia estão separadas, está feito, perfeito e acabado; portanto, é tempo de unificar as duas”), em Novalis (“quanto mais poético, mais verdadeiro”), no Nietzsche desde quase menino (“No momento, arte e filosofia crescem, simultaneamente, em mim, de tal maneira que, aconteça o que acontecer, engendrarei, qualquer dia, um centauro”), em Euclides da Cunha (“o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano”), em Giorgio Agamben (“Por isso, sem dúvida, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa poderão jamais realizar sozinhos seu empreendimento milenar. Apenas uma fala em que, em algum momento, a pura prosa da filosofia interviesse para quebrar o verso da fala poética, e em que o verso do poema sobreviesse para dobrar a prosa da filosofia, seria a verdadeira fala humana”)... À razão de Cicero, tais pensadores e muitos outros contemporâneos, por flagrarem ou criarem o desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, “erraram”.
No que concerne à construção de um pensamento filosófico ou poético, a partir de certo nível muito básico, falar em “erro” me parece, desculpem-me o retorno da triste palavra, o único “erro” possível de se cometer. Não se pode falar em “erro” nem no que se refere à indiscernibilidade entre poesia e filosofia nem, tampouco, no que diz respeito ao caminho de diferenciação entre elas. Tais posições são experimentações criadas por uma tática que quer manifestar o que mais afeta cada um dos que se propõem a pensar tal questão. Negar uma das duas é negar a própria poesia e a filosofia como um todo, em suas múltiplas diretrizes. O fim de seu texto, que afirma “que esses dois pólos do pensamento não podem ser reduzidos um ao outro”, me faz pensar que Cicero pode estar brigando com um fantasma criado por si mesmo, porque, do lado dos que pleiteiam a possibilidade de miscigenações, nunca se tratou de querer “reduzir” a poesia à filosofia nem esta àquela. O que sempre se quer são alargamentos e desdobramentos imprevisíveis do pensamento e da escrita, nos quais, sem que se apaguem as diferenças, zonas de hibridismos são criadas.
Cicero deixa ver seu ponto de apoio: “Enquanto um poema não pode ser dito em outras palavras, aquilo que um artigo de filosofia diz pode perfeitamente ser expresso em outras palavras”. Falar de um texto filosófico com outras palavras é perder, necessariamente, seu modo de pensamento, já que, nele, a inseparabilidade entre o pensamento e as palavras se faz tão presente quanto no poético. Pelo menos desde Platão, sabe-se que a força de criação de qualquer pensamento respeitável recai na encruzilhada entre o que deve ser dito e o como deve ser dito, em que não se pode separar o assunto do modo de abordá-lo. O modo como o assunto se acomoda nos arranjos de palavras que criam um sentido turbinado é o primeiro passo exigido a qualquer pensamento para que se torne irredutível a um outro que lhe é alheio.
Por isso, nenhum comentador, ainda que possa ajudar na compreensão dele, esgota um grande texto original, que, insubstituível, permanece aberto à releitura que dele fazemos para redescobrirmos, nele, a cada vez, uma nova possibilidade. Quando grande, um texto diz o que tem a ser dito infinitamente melhor do que um secundário acerca dele; a não ser quando o secundário se torna tão grande quanto o primário, mas aí já é um outro grande texto filosófico também primário, que não fala apenas sobre o primeiro, mas por sobre ele, constituindo-se em outra obra grandiosa, irredutível também àquela, que não pode jamais ser substituído por outras palavras senão as com que existe.

Alberto Pucheu

4 comentários:

Anônimo disse...

Apesar de muito bem escrito, o texto de Pucheu comete um "erro" básico que é o de ignorar a natureza da linguagem de ambos os gêneros.
Um poema, como se costuma dizer, não pode ser resumido. Já um texto filosófico, sim, pode.
Quando Pucheu afirma que um texto filosófico também não pode ser resumido, ele confunde o que há de "filosofia" no texto filosófico com o que há de "literatura" neste.
O estilo "literário" de Platão realmente não pode ser copiado, resumido, mas o "conteúdo" dos seus textos, suas idéias, certamente pode.
Abraços.

DBI disse...

Eu concordo com o Paulo e, em parte, com o que você disse no post que originou esta discussão. Eu já estava pensando em fazer um post sobre isso...

Como comentei na sua postagem do texto em questão, gosto que você tem o ímpeto de colocar cada coisa em seu devido lugar: letra de música/poesia, filosofia/poesia, "só é possível filosofar em alemão" etc. E acho que vc fez bem a separação entre poesia e filosofia, o que é muito necessário.

Acho que o texto do Pucheu se confunde mesmo nas citações: será que a maioria desses autores não pediu que o texto trouxesse uma filosofia e não que fosse, em sentido estrito, filosofia? O Novalis, por exemplo, criticou "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe, não propriamente pela filosofia, mas porque era um "livro sem poesia" -- tanto que ele começou um romance em resposta ao do Goehte. Se fôssemos ler, por exemplo, Alberto Caeiro puramente por sua filosofia, poderíamos tranqüilamente fazer um "esquema" -- o que, entretanto, não é possível quanto a sua poesia.

Há, também, a questão de um texto ser bom -- e o texto em si não pode ser suprido, enquanto seus conceitos podem. Aquele "Narrar ou descrever", do Lukács, por mais que ele diga coisas com as quais já é difícil concordar, de vez em quando recorro a ele, sobretudo por sua estética. A estética de um texto não pode ser resumida; e se foi isso o que o Pucheu quis dizer, aí eu concordo plenamente.

Porque o pensamento que tem num texto, os movimentos de um pensamento, nada disso pode ser resumido -- vem daí o que ele possibilita de reflexão. Mas, conceitualmente, textos teóricos podem ser resumidos. Mas a arte nunca é apenas teórica, e a obra artística necessariamente precisa ser vista, já que sua primeira função é a estética. Acho que esse é um dos problemas da crítica atual, que diz que determinado autor não é bom porque a questão da "subjetividade do eu" já foi superada por Baudelaire. A filosofia em si pode até ser superada, suponho, mas a arte não.

Baudelaire diz, citando Stendhal, que o Belo "é a promessa de felicidade"; e complementa que também é "o vazio". No texto ele não deixou muito claro, mas acho que ele queria dizer que a arte não implica no que é certo/errado ou puro/horroso, mas no que é Belo. E é por isso que há grandes poetas herméticos, como Rimbaud, que em determinado momento de sua obra ficou no "desconhecido", no Belo exclusivamente.

Escrevi demais, mas acho que é isso!

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,
Li o seu texto na Folha. Mas vejo diferenças entre problematização universal e poesia. Faço notar a clivagem que deve haver também entre filosofia e ensaio. Há muitos ensaístas e poucos filósofos. Os ensaístas bem mais próximos à doxa - no que tange à opinião e à glória nas suas duas acepções helenas.
grato
wilson luques costa

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Já havia exposto minhas considerações no artigo anterior, mas, à luz dos novos comentários e novas reflexões, gostaria de tecer novo comentário.

O seu argumento baseia-se em uma distinção teleológica entre os gêneros poético e filosófico, isto é, na diferença fundamental entre a intenção filosófica, necessariamente referencial, pois remete à realidade extra-textual, e a intenção poética. Essa diferença é caracterizada pela impossibilidade da paráfrase do poema e a possibilidade (ou mesmo necessidade) da paráfrase do texto filosófico.

Por outro lado, Pucheu defende a indicernibilidade das formas utilizadas em ambos os casos, citando diversos exemplos. Ainda, chama a seu favor declarações de diversos pensadores renomados.

Ora, se, como muito bem colocado no artigo sobre poesia e letra, "todo texto pode a princípio ser poesia", não há absolutamente nada que impeça um texto filosófico de ser também profundamente poético, mesmo a despeito das pretensões de seu autor. Igualmente, toda enunciação também é referencia a algo exterior à ela, mesmo que seja uma referência às próprias limitações da língua. Podemos dizer, então, que do ponto de vista teórico, não há nada que distingua necessariamente a forma poética da filosófica, da mesma forma que não há nada que impeça necessariamente um poema de tornar-se, também, letra de música.

Não obstante, há questões contingentes que podem limitar sim a possibilidade de união entre os dois gêneros. Compreendo e aprovo, então, sua posição ante uma tal tentativa. Se o seu compromisso primordial é, de um lado com a verdade, e, de outro, com a beleza, é realmente um "erro" apostar em uma viagem com destino duvidoso, da qual talvez não surjam nem verdades nem belezas. Mas a viagem, justamente por ter um caráter de dúvida, tem um valor intrínseco - o da experimentação. "Aventura intelectual", tomando emprestada a expressão de Carlito Azevedo.

A diferença entre o erro e a aventura errante (se me permite o recurso poético) é, na realidade, a clareza e coerência com relação às nossas próprias escolhas intelectuais.

Um abraço,
Lucas Nicolato