31.12.19

Gastão Cruz: "Saio do sonho quando só da noite"




Saio do sonho quando só da noite


Saio do sonho quando só da noite
a cúpula do céu resta indecisa
cobrindo o dia como se precisa
nos espelhos da noite a noite fosse

A noite ainda guarda
o céu do dia
Na noite reflectida
é um réptil de luz a madrugada





CRUZ, Gastão. "Saio do sonho quando só da noite". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.
 

28.12.19

Daniel Faria: "Sei bem que não mereço um dia entrr no céu"




"Sei bem que não mereço um dia entrar no céu"


Sei bem que não mereço um dia entrar no céu
Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra.






FARIA, Daniel. "Sei bem que não mereço um dia entrar no céu". In:_____. Poesia. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2006.

26.12.19

Carlos Drummond de Andrade: "Mãos dadas"




Mãos dadas


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.



ANDRADE, Carlos  Drummond de. "Mãos dadas". In:_____. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.




24.12.19

Pedro Mexia: "Percepção"




Percepção

Entre mergulhos
uma pedra rasa salta três vezes
na água.
E assim se divide,
assim se parte
o rio. A infância
dum lado. Do outro
a terra firme
onde isto se passou.





MEXIA, Pedro. "Percepção". In:_____. Memória. Lisboa: Gótica, 2000.

21.12.19

Tavinho Paes: "Todo santo dia (ou qualquer dia)"




TODO SANTO DIA
(ou QUALQUER DIA)


não sei mesmo
o que seria
não poder
escrever
uma nova poesia
todos os dias
não sei
como me sentiria
se não pensasse em você
todo santo dia
não sei mesmo
se escrevo poemas
para pensar em você
todo dia
ou se é
por pensar em você
que escrevo poesias
todos os dias
não sei se devo saber
se, lá na essência,
todos esses poemas
são feitos só pra você
nem sei se sem você
eu os escreveria
só sei que você
é a minha poesia
os poemas são todos seus
e, intimamente, eu desejo
que, como são para você
eles possam ser meus
um dia





PAES, Tavinho. "Todo santo dia (ou qualquer dia)". In:_____. Etéreo éter. Rio de Janeiro: Paes & Filhos Edições Ltda., 2019.

19.12.19

Constantinos Caváfis: "O quanto possas": trad. de José Paulo Paes




O quanto possas


Se não podes afeiçoar tua vida como queres,
deves ao menos tentar, o quanto
possas, isto: não a rebaixes
no excessivo comércio do mundo,
no excesso de palavras e de gestos.

Não a rebaixes levando-a para dar
passeios, exibindo-a o tempo todo
nas reuniões e comemorações
em que a tolice diária se compraz,
até fazeres dela uma estranha importuna.




CAVÁFIS, Constantinos. "O quanto possas". In: PAES, José Paulo (org e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

16.12.19

Jorge Salomão: "fogo"




fogo


falo o que falo
minha voz não treme
nem tremula o ímpeto que nela há
ela é límpida
como o sol
sobre o varal de roupas penduradas
é certa, afiada
não carrega mentiras
essa é sua estrada
não camufla verdades
nem esconde emoções
é linguagem





SALOMÃO, Jorge. "fogo". In:_____. "Alguns poemas e + alguns". In:_____. 7 em 1. Rio de Janeiro: Gryphus, 2019. 

14.12.19

Philip Larkin: "This be the verse" / "Seja assim o poema": trad. de Ruy Carvalho Homem




Seja assim o poema


Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
    Mesmo que não seja essa a intenção.
Deixam-te todos os vícios que tenham
    E mais dois ou três, por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram fodidos
    Por tolos trajando jaquetão e coco,
Que quando não estavam piegas ou hirtos
    Saltavam, raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a infelicidade,
    Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
    E quanto a teres filhos — isso nem pensar.





This be the verse


They fuck you up, your mum and dad. 
    They may not mean to, but they do. 
They fill you with the faults they had
    And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
    By fools in old-style hats and coats, 
Who half the time were soppy-stern
    And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.
    It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
    And don’t have any kids yourself.






LARKIN, Philip. "This be the verse" / "Seja assim o poema". In:_____. Janelas altas. Tradução de Rui Carvalho Homem. Lisboa: Cotovia, 2004.   

12.12.19

Ana Chiara: "XXII"




XXII


Mundos esferas
Sangue passando por veias
Diluição da vida cotidiana
Nada impede o sortilégio
Trens noturnos, estação sob forte neblina
Impossível dizer se embarco
Tudo dependerá de minha fecunda imaginação
E do gosto exagerado pelo real mais erradio.
Improviso com a metade do que me foi dado ler
Assim um drama
Palavras olham para fora
Limite possível e improvável da significação
Andarilhas perdidas no caminho do sagrado
Bolhas ardentes nas solas dos pés.





CHIARA, Ana. "XXII". In:_____. Poema da travessia. Rio de Janeiro: TextoTerritório, 2019.

10.12.19

Bertolt Brecht: "Die Vergessenen" / "Os deslembrados": trad. por André Vallias




Os deslembrados


Eles vivem e morrem por aí –
Numa estrangeira viela
A vida com violência os atropela
E se põe a fugir.
Viveram e morreram e lutaram duro
E criaram suas crianças
E aí na mais distante deslembrança
Terminam seu percurso.




Die Vergessenen


Sie leben und sterben irgendwo
An einem fremden Steg
Das Leben geht vorüber roh
Und über sie hinweg.
Sie lebten und starben und rangen schwer
Und zogen Kinder auf
Und dann in ferner Vergessenheit hehr
Sie enden ihren Lauf.





BRECHT, Bertolt. "Die Vergessenen" / "Os deslembrados". In:_____. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.

9.12.19

Bertolt Brecht: POESIA: Introdução e tradução de André Vallias


É hoje, na Livraria da Travessa de Botafogo, o lançamento das excelentes traduções que o poeta André Vallias fez dos maravilhosos poemas de Bertolt Brecht:




8.12.19

Jorge Luis Borges: "Spinoza": trad. de Augusto de Campos




Spinoza


As translúcidas mãos desse judeu
Em meio à sombra lavram os cristais.
É medo e frio a tarde que morreu
(E às tardes as tardes são iguais.)

Tanto as mãos como o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase inexistem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.

Nem o perturba a gloria, esse reflexo
Dos reflexos do sonho de outro espelho,
Nem o amor temeroso das donzelas.

Liberto da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa do Ser que é todas as estrelas.





Spinoza


Las traslúcidas manos del judío
Labran en la penumbra los cristales
Y la tarde que muere es miedo y frío.
(Las tardes a las tardes son iguales.)

Las manos y el espacio de jacinto
Que palidece en el confín del Ghetto
Casi no existen para el hombre quieto
Que está soñando un claro laberinto.

No lo turba la fama, ese reflejo
De sueños en el sueño de otro espejo,
Ni el temeroso amor de las doncellas.

Libre de la metáfora y del mito
Labra un arduo cristal: el infinito
Mapa de Aquel que es todas Sus estrellas.






BORGES, Jorge Luis. "Spinoza". In:_____. Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista. Traduções de Augusto de Campos. São Paulo: Terracota, 2013.

6.12.19

Antonio Cicero: "Elo"





Elo

Dizem ser Marcelo mar e céu
Dizem ser vão ser e ser poeta
Só sei que desde que me aconteceu
Esse horizonte azul assim sem reta
Quero ser não o poeta
Ser o verso de Marcelo
Ser a rima de Marcelo
Ser esse elo
Entre ar mar céu nome ser não ser Marcelo








CICERO, Antonio. "Elo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.

4.12.19

Friedrich Hölderlin: "Die Liebenden" / "Os amantes": trad. de Paulo Quintela




Os amantes



     Queríamos separar-nos, tínhamos isso por bom e sensato;

          Quando o fizemos, por que nos assustou, como homicídio,
                                                                                          [a ação?

               Ai! Pouco nos conhecemos,

                    Pois em nós reina um Deus.








Die Liebenden



     Trennen wollten wir uns, wähnten es gut und klug;

          Da wir's taten, warum schröckt' uns wie Mord die Tat?

               Ach! Wir kennen uns wenig,

                    Denn es waltet ein Gott in uns.







HÖLDERLIN, Friedrich. "Die Liebenden" / "Os amantes". In:_____. Poemas. Org. e trad. de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1959.

1.12.19

Carlos Drummond de Andrade: "Liberdade"




Liberdade


O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.
Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.





ANDRADE, Carlos Drummond de. "Liberdade". In:_____. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996.