31.3.19
Jacques Prévert: "Le fusillé" / "O fuzilado": trad. por Carlos Drummond de Andrade
O fuzilado
As flores, os jardins, os repuxos, os risos,
e a doçura da vida.
Jaz um homem no chão e banha com seu sangue
as lembranças, as flores, repuxos e jardins
e sonhos infantis.
Jaz um homem no chão, qual embrulho sangrento,
e flores e jardins, repuxos e lembranças
e doçura da vida.
Jaz um homem no chão, criança adormecida.
Le fusillé
Les fleurs les jardins les jets d'eau les sourires
Et la douceur de vivre
Un homme est là par terre et baigne dans son sang
Les souvenirs les fleurs les jets d'eau les jardins
Les rêves enfantins
Un homme est là par terre comme un paquet sanglant
Les fleurs les jets d'eau les jardins les souvenirs
Et la douceur de vivre
Un homme est là par terre comme un enfant dormant.
PRÉVERT, Jacques. "Le fusillé"/"O fusilado". Trad. por Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia traduzida. Org. e notas de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
29.3.19
Antonio Cícero: “Os maiores intelectuais que já conheci têm a poesia na mais alta conta”
Seguindo a sugestão de meu grande amigo Adriano Nunes, publico a seguir uma entrevista que concedi à Revista Forum em 2017, logo depois de ter sido eleito para a ABL:
Revista Forum
https://www.revistaforum.com.br/antonio-cicero-os-maiores-intelectuais-que-ja-conheci-tem-poesia-na-mais-alta-conta/
13 DE AGOSTO DE 2017
Antonio Cícero: “Os maiores intelectuais que já conheci têm a poesia na mais alta conta”
Por Ivan Longo
“Modernamente, alguns dos maiores poetas contemporâneos são ‘letristas’. No Brasil, temos, por exemplo, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso e Chico Buarque”, avalia Cícero, recém eleito para a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras. Confira sua entrevista à Fórum
Por Lucas Vasques
Filósofo, escritor, poeta, letrista, ensaísta e mais. Há muitos Antonio Cícero em um só. No último dia 10 de agosto, em reconhecimento à sua rica trajetória intelectual, ele foi eleito para a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL), sucedendo Eduardo Portella. Antes, os ocupantes da cadeira 27 foram Joaquim Nabuco (fundador da cadeira e que escolheu como patrono Maciel Monteiro), Dantas Barreto, Gregório da Fonseca, Levi Carneiro e Otávio de Faria.
“Antonio Cícero é um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea”, definiu Domício Proença Filho, presidente da ABL. E sua trajetória foi longa. Autor dos livros de poemas Guardar, A cidade e os livros, Porventura e O livro de sombras, este em parceria com o artista plástico Luciano Figueiredo, também publicou ensaios filosóficos, além de ter uma intensa militância na cena cultural brasileira, organizando e participando ativamente de coletâneas e conferências.
Cícero escreve poesia desde jovem, mas sua escrita passou a ser mais conhecida popularmente depois que começou a compor as letras das canções de sua irmã Marina Lima, como Fullgás, Para Começar e À Francesa, as duas primeiras em parceria com Marina e a última com Cláudio Zolli. Também teve outros parceiros na música, com destaque para Waly Salomão, João Bosco, Orlando Moraes, Adriana Calcanhoto e Lulu Santos (coautor, junto com Cícero e Sérgio Souza, do grande sucesso O Último Romântico).
Fórum – A poesia, de alguma forma, é encarada com certo menosprezo, inclusive dentro do universo intelectual. Sua eleição à ABL pode representar uma mudança nesse paradigma?
Antonio Cícero – Há muitos “universos intelectuais”. Não acho que a poesia seja encarada com menosprezo nos melhores universos intelectuais. Ao contrário: os maiores intelectuais que já conheci – e conheci muitos, tanto no Brasil quanto no exterior – têm a poesia na mais alta conta. Que intelectual de peso pode desprezar as obras de Homero, Virgílio, Horácio, Dante, Shakespeare, Camões, Antero de Quental, Calderón de la Barca, Keats, Wordsworth, Goethe, Hölderlin, Baudelaire, Mallarmé, Fernando Pessoa, T.S. Eliot, Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral, Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Armando Freitas Filho ou tantos e tantos outros?
Fórum – Você, além de filósofo e poeta, também ficou conhecido por ser um letrista de destaque na MPB. Uma velha discussão que permeia o mundo acadêmico é se letra de canção é poesia. Há poesia em letra de canção? E quais as intersecções entre ambas?
Antonio Cícero – A poesia começou sendo cantada. Os poemas de Homero eram recitativos, isto é, eram meio recitados e meio cantados. Os poemas líricos gregos, como a própria palavra “lírico” indica, eram cantados, acompanhados pela lira. Assim, alguns dos maiores poemas da tradição ocidental eram o que chamamos de “letras de música”. Modernamente, alguns dos maiores poetas contemporâneos são “letristas”. No Brasil, temos, por exemplo, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso e Chico Buarque.
Fórum – Dentro desse debate, o fato de Bob Dylan ter sido escolhido para ganhar o Prêmio Nobel de Literatura indica que a literatura pode ser encarada de uma forma mais ampla?
Antonio Cícero – Sim, claro.
Fórum – Em sua avaliação, o que há de filosofia na sua poesia?
Antonio Cícero – Na poesia podem entrar todas as faculdades humanas: razão, intelecto, emoção, sensação, sentimento, emoção, memória, cultura etc. Assim, o que pensamos filosoficamente pode, de um modo ou de outro, entrar num poema. Contudo, a filosofia não é, num poema, necessariamente mais importante do que um gosto, uma impressão, um amor, um ódio, um corpo, um rosto… Quando está presente, ela não passa de um elemento, muitas vezes inteiramente secundário. Não é, de maneira nenhuma, a filosofia que torna um poema bom ou ruim. Mesmo quem não é marxista pode, por exemplo, admirar imensamente um poema de Brecht em que estejam presentes ideias marxistas.
Fórum – Um poema, apesar de ser uma forma bem particular de linguagem, pode funcionar como crítica ou narrativa filosófica?
Antonio Cícero – Sim. O poema de Lucrécio De rerum natura pretende ser um tratado filosófico epicurista. Mas o que o torna bom enquanto tratado epicurista não é necessariamente o que torna alguns de seus trechos esplêndidos enquanto poesia. Por exemplo, os seguintes dois versos têm sido considerados como versos insuperáveis em qualquer literatura, mesmo por quem não é epicurista:
“nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat”,
que podem ser traduzidos como
“tudo é em vão, pois da própria fonte da doçura
súbito surge algo que nos amargura”
Fórum – O presidente da ABL, Domício Proença Filho, afirmou que você é um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea. Você encara isso como uma forma de reconhecimento por seus anos de trabalho?
Antonio Cícero – Sim. E fico muito grato ao presidente Domício Proença Filho por ter afirmado isso.
Foto: Eucanaã Ferraz/Divulgação
CICERO, Antonio. “Os maiores intelectuais que já conheci têm a poesia na mais alta conta”. In: Revista Forum: https://www.revistaforum.com.br/antonio-cicero-os-maiores-intelectuais-que-ja-conheci-tem-poesia-na-mais-alta-conta/
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26.3.19
Moacyr Félix: "O erotismo"
O erotismo
Instruído pelo demônio, seu confidente
e seu irmão, inventor da liberdade além
da temporalidade oca, o poeta sabe outra vez
que a imaginação é erótica e que o erotismo é
uma explosão de infinitos se movendo
entre os silêncios da vida em nossa boca.
FÉLIX, Moacyr. "O erotismo". In:_____. Em nome da vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; São Paulo: Massao Ohno, 1981.
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23.3.19
Paul Éluard: "Nusch": trad. por Maria Gabriela Llansol
Nusch
Os sentimentos aparentes
A leveza de abordagem
A cabeleira das carícias
Sem cuidados sem cuidar o mal
Teus olhos são entregues ao que vêem
Reflectidos por aquilo que olham
Confiança de cristal
Entre dois espelhos
De noite teus olhos extraviam-se
Para reunir ao desejo o despertar.
Nusch
Les sentiments apparents
La légèreté d’approche
La chevelure des caresses
Sans soucis sans soupçons
Tes yeux sont livrés à ce qu’ils voient
Vus par ce qu’ils regardent.
Confiance de cristal
Entre deux miroirs
La nuit tes yeux se perdent
Pour joindre l’éveil au désir.
ÉLUARD, Paul. "Nusch". In:_____. Derniers poèmes d'amour/Últimos poemas de amor. Trad. por Maria Gabriela Llansol. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2002.
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Paul Éluard
22.3.19
Qinho convida Antonio Cicero
Hoje, sexta-feira, 22de março, às 21:00, terei o prazer de dizer
alguns poemas meus durante o show que o admirável cantor Quinho fará no Clube
Manouche. Qinho, aliás, intitulou esse show “Qinho convida Antonio Cicero”: o
que muito me honra.
O Clube Manouche fica no subsolo da Casa Camolese, que se
localiza na rua Jardim Botânico, 983, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
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19.3.19
Jorge Salomão: "duplo"
duplo
eu e minha sombra
na poça d’água
na lama
no carnaval
no circo
no disco a rolar
no alto mar
no deserto dos dias
no negro de nós
eu ela
a voar
juntos a brincar
conforme a luz
jogo de amar
SALOMÃO, Jorge. "duplo". In:_____. Mosaical. Rio de Janeiro: Gryphus, 1994.
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16.3.19
Wallace Stevens: "The planet on the table" / "O planeta na mesa": Trad. por Paulo Henriques Britto
O planeta na mesa
Ariel gostou de ter escrito seus poemas.
Eram de um tempo relembrado
Ou de algo visto que o agradara.
Outros feitos do sol
Eram agrura e tumulto
E o arbusto maduro retorcido.
Seu ser e o sol eram um só
E seus poemas, embora feitos de seu ser,
Não eram menos feitos do sol.
Que perdurassem não era importante.
O importante era que portassem
Algum traço ou caráter,
Uma afluência, mesmo quase imperceptível,
Na pobreza de suas palavras,
Do planeta do qual faziam parte.
The planet on the table
Ariel was glad he had written his poems.
They were of a remembered time
Or of something seen that he liked.
Other makings of the sun
Were waste and welter
And the ripe shrub writhed.
His self and the sun were one
And his poems, although makings of his self,
Were no less makings of the sun.
It was not important that they survive.
What mattered was that they should bear
Some lineament or character,
Some affluence, if only half-perceived,
In the poverty of their words,
Of the planet of which they were part.
STEVENS, Wallace. "The planet on the table" / "O planeta na mesa". In:_____. O imperador do sorvete e outros poemas. Trad. por Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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Wallace Stevens
13.3.19
Marcial: "Epigramma XVI": trad. de Nelson Ascher
1/16
Algo de bom, muito de médio e mais de ruim
lerás, Avito, aqui: um livro é feito assim.
I/XVI
Sunto bona, sunt quaedam mediocria, sunt mala plura
quae legis hic: aliter non fit, Avite, liber.
MARCIAL. "Epigramma I.XVI". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
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Poema
11.3.19
Cassiano Ricardo: "Poética"
Poética
1
Que é a Poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.
3
Que é o Poeta?
um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.
RICARDO, Cassiano. "Poética". In: Jeremias sem-chorar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.
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Poema
10.3.19
Constatinos Caváfis: "O primeiro degrau"
O primeiro degrau
Foi a Teócrito queixar-se um dia
Eumene, poeta ainda jovem:
“Faz dois anos que escrevo e até agora
compus apenas um idílio.
Esse, o meu único trabalho pronto.
Pobre de mim! Pelo que vejo, é alta,
deveras alta, a escada da Poesia.
Estou no primeiro degrau: jamais,
infeliz que sou, chegarei ao topo.”
“Essas palavras”, respondeu Teócrito,
“são um despropósito, blasfêmias.
Se estás no primeiro degrau, cumpria
te sentires feliz e envaidecido.
Chegar onde chegaste não é pouco,
nem é pequena glória o que fizeste.
Do primeiro degrau da mesma escada
está bem distante o comum das pessoas.
Para pisar esse degrau de ingresso,
necessário é que sejas, por direito,
cidadão da cidade das ideias –
um título difícil: raramente
fazem-se ali naturalizações.
De quantos na sua ágora legislam,
aventureiro algum pode zombar.
Chegar onde chegaste não é pouco,
nem é pequena glória o que fizeste.”
KAVÁFIS, K. "O primeiro degrau". In: PAES, José Paulo (org. e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
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8.3.19
Anna Akhmatova: "Творчество" / "A criação": trad. por Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev
A criação
Acontece deste modo: uma certa languidez;
No ouvido não se calam as pancadas dos relógios;
Ao longe diminui o estrondo do trovão.
E vislumbram-se queixas e gemidos
De aprisionadas vozes que não se reconhecem.
Um certo círculo secreto estreita-se,
Mas nesse abismo de badaladas e murmúrios
Levanta-se um som que tudo venceu.
É tal o silêncio irreparável em seu redor
Que se escuta como no bosque cresce a erva,
Como anda pela terra o mal com um alforge…
Mas as palavras começaram já a ouvir-se
E das rimas leves os tinidos de sinalização, –
É quando eu começo a compreender,
E de modo simples as linhas ditadas
Deitam-se no caderno branco de neve.
Творчество (1936)
Бывает так: какая-то истома;
В ушах не умолкает бой часов;
Вдали раскат стихающего грома.
Неузнанных и пленных голосов
Мне чудятся и жалобы и стоны,
Сужается какой-то тайный круг,
Но в этой бездне шепотов и звонов
Встает один, все победивший звук.
Так вкруг него непоправимо тихо,
Что слышно, как в лесу растет трава,
Как по земле идет с котомкой лихо...
Но вот уже послышались слова
И легких рифм сигнальные звоночки, -
Тогда я начинаю понимать,
И просто продиктованные строчки
Ложатся в белоснежную тетрадь.
AKHMATOVA, Anna. "Творчество"/"A criação". In:_____. Poemas. Trad. por Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2003.
6.3.19
Antonio Cicero: "Simbiose"
Simbiose
Sou seu poeta só
Só em você descubro a poesia
que era minha já
mas eu não via.
Só eu sou seu poeta
Só eu revelo a poesia sua
e à noite indiscreta
você de lua.
CICERO, Antonio. “Simbiose”. In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
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3.3.19
Ferreira Gullar: "O duplo"
O duplo
Foi-se formando
a meu lado
um outro
que é mais Gullar do que eu
que se apossou do que vi
do que fiz
do que era meu
e pelo país
flutua
livre da morte
e do morto
pelas ruas da cidade
vejo-o passar
com meu rosto
mas sem o peso
do corpo
que sou eu
culpado e pouco
GULLAR, Ferreira. "O duplo". In:_____. Em alguma parte alguma. Lisboa: Babel, 2010.
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1.3.19
Casimiro de Brito: "Esta manhã não lavei os olhos --"
71
Esta manhã não lavei os olhos –
pensei em ti.
*
Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.
*
Um fogo em luz transformado.
Subitamente a sombra.
*
Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.
BRITO, Casimiro de. “Esta manhã não lavei os olhos”. In:_____. "Arte de bem morrer". In:_____ 69 poemas de amor. Tavira: 4Águas editora, 2008.
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