31.10.15
Fernanda Torres: "Da Natureza"
O seguinte artigo de Fernanda Torres foi publicado ontem em sua coluna da Folha de São Paulo:
Da Natureza
Sou católica, mas rejeito o mea-culpa cristão, estranho o sotaque andrógeno dos padres, não creio em redenção pós-mortem e sou propensa às tentações da carne.
Na missa de sete anos da morte do meu pai, no belo Mosteiro de São Bento, tentei, mais uma vez, me ater ao rito, mas foi em vão.
Na saída, padre Matias, um clérigo de vocação, permitiu que visitássemos o claustro.
Na calma atemporal do pátio interno, admirei a dedicação do sacerdote à biblioteca do mosteiro. Ali, sim, comunguei de sua devoção à Igreja.
A arte e o intelecto são a luxúria de Matias, prazeres que não enxergo como pecado.
Meu filho, ainda mais avesso à cruz do que eu, acha impossível conciliar a compaixão de Cristo com a morbidez dos dogmas e a riqueza acumulada do clero.
Não o condeno.
O caráter maniqueísta, culposo, masoquista de uma crença nascida do fundo arcaico do Mediterrâneo, destoa do histórico de opulência do Vaticano e do paganismo greco-romano que, ainda hoje, nos rege.
Ganhei de aniversário do poeta Antonio Cicero um livraço que esclarece o paradoxo.
"A Virada" (Companhia das Letras), do teórico e professor de Harvard Stephen Greenblatt, narra a descoberta, em 1417, do poema "De Rerum Natura", "Da Natureza", de Tito Lucrécio Caro, por um dos primeiros humanistas, calígrafo e caçador de livros, Poggio Bracciolini.
Escrito no séc. 1 a.C., o poema permaneceu esquecido em um dos tantos monastérios que, depois do apagão do Império Romano, guardaram o que restou do saber da antiguidade.
"Da Natureza" resistiu aos incêndios das bibliotecas, à fúria bárbara e à censura cristã. Seu conteúdo é fiel ao atomismo de Demócrito, ao prazer de Epicuro e à ideia de que o destino dos homens não é regido pela vontade dos deuses.
A ligação entre o poema de Lucrécio e Epicuro veio à luz muito tempo depois do feito de Poggio. Em 1753, rolos de papiro com trechos de "Da Natureza" foram encontrados nas escavações do balneário de Herculano, vizinho à Pompeia, também soterrado pelo Vesúvio em 79 d.C.
A biblioteca da casa abastada de Herculano pertenceu a uma elite epicurista que cultivava uma existência livre do medo da danação divina.
"A Virada" explica o porquê de Platão e Aristóteles terem sido absorvidos pelo cristianismo, enquanto Epicuro foi jogado no lixo da história.
Seu universo sem ideal ou alma transcendente, regido por partículas, com deuses indiferentes à necessidade humana e espécies evoluindo ao acaso não caberia na fé cristã. Difamado, a felicidade terrena que pregava foi transformada em escárnio e excesso.
Os 7.400 versos de Lucrécio serviram de estopim para a Renascença e a modernidade. Bruno, Galilei, Shakespeare, Maquiavel e Botticelli os leram, e também o avô de Darwin, Montaigne, More, Moliére e Thomas Jefferson.
Quem diria que, 600 anos depois de "Da Natureza" renascer das cinzas, a Guerra Santa voltasse à baila e o humanismo caísse em desuso?
Preservamos muitos dos pavores medievais, mas evoluímos ateus. Somos materialistas que rezam o Pai Nosso.
Vem daí a minha dificuldade de comungar na missa, vem de Poggio o prazer intelectual do padre Matias e de Epicuro a profunda empatia que sinto ao caminhar por Pompeia e pensar que, sim, eu poderia ser um deles.
Fernanda Torres
29.10.15
Katia Maciel: "sono parece nuvem"
sono parece nuvem
nuvem parece branco
branco parece cor
cor parece amor
amor parece suor
suor parece torpor
torpor parece taça
taça parece água
água parece mar
mar parece tudo
nada parece nada
MACIEL, Katia. "sono parece nuvem". In:_____. Repetir. Rio de Janeiro: +2, Editora Circuito, 2015.
Labels:
Katia Maciel,
Poema
26.10.15
"A casa": Letra: Vinícius de Moraes / Música: Sergio Bardotti / Canto: Adriana Calcanhotto
A casa
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque a casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos Bobos
Número zero.
Vejam que delícia Adriana Calcanhotto a cantar a canção "A casa", de Vinícius de Moraes e Sergio Bardotti, durante o lançamento do seu livro Antologia ilustrada da poesia brasileira, publicado pela Editora Casa da Palavra:
Labels:
Adriana Calcanhotto,
Canção,
Poema,
Sergio Bardotti,
Vinícius de Moraes
24.10.15
Fernando Pinto do Amaral: "Palavras"
Palavras
Sentas-te ainda à mesa – escreves
palavras tão compactas, tão opacas
como a luz que te cega. Cada dia
promete o infinito em meia dúzia
de palavras – o amor,
a vida, o tempo, a morte, a esperança,
o coração. Repete-as,
repete-as muitas vezes em voz alta
e escuta a sua música
até não quererem dizer nada.
AMARAL, Fernando Pinto do. "Palavras". In:_____. Pena suspensa. Lisboa: Dom Quixote, 2004.
Labels:
Fernando Pinto do Amaral,
Poema
20.10.15
Odylo Costa, filho: "Campo largo, campo maior"
Campo largo, campo maior
A Francisco Pereira da Silva
Fascinam-me os levantes da alvorada.
No alpendre da casa adormecida
a rede traz o dia e o despedaça
na garganta dos galos-de-campina.
As árvores se esbatem na neblina.
Chifres riscam os ventos da chapada.
Choram bois no curral. Vaqueiros leves
pulam no dorso dos cavalos bravos.
Pisadas pelo gado e pelas gentes
miúdas flores do chão morrendo cheiram,
no pedregulho ruivo ressuscitam.
Riachos vão brotando por aí.
E na mão da menina uma cutia
se junta arisca a um nambu que chora.
COSTA Filho, Odylo. "Campo largo, campo maior". In:_____. "Notícias de amor". In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Aeroplano / Fundação Biblioteca Nacional, 2010.
Labels:
Odylo Costa Filho,
Poema
18.10.15
Hans Magnus Enzensberger: "Middle class blues": trad. Markus J. Weininguer e Rosvitha Friesen Blume
Middle class blues
Nós não temos nada a reclamar.
Nós temos o que fazer.
Nós estamos servidos.
Nós estamos comendo.
A grama cresce,
A curva do PIB,
A unha,
As épocas passadas.
As ruas estão vazias.
As planilhas de balanço perfeitas.
As sirenes se calam.
Aquilo passa.
As pessoas falecidas fizeram seu testamento.
A chuva diminuiu.
A guerra ainda não está declarada.
Aquilo não tem pressa.
Nós comemos a grama.
Nós comemos o PIB.
Nós comemos as unhas.
Nós comemos as épocas passadas.
Nós não temos nada a ocultar.
Nós não temos nada a perder.
Nós não temos nada a dizer.
Nós temos.
A corda do relógio está ajustada.
As condições estão bem definidas.
A louça está lavada.
A última condução está passando.
Ela está vazia.
Nós não temos nada a reclamar.
Nós estamos esperando o que afinal?
Middle class blues
Wir können nicht klagen.
Die verhältnisse sind geordnet.
Wir sind satt.
Wir essen.
Das gras wächst.
Das sozialprodukt,
Der fingernagel,
Die vergangenheit.
Die strassen sind leer.
Die abschlüsse sind perfekt.
Die sirenen schweigen.
Das geht vorüber.
Die toten haben ihr testament gemacht.
Der regen hat nachgelassen.
Der krieg ist noch nicht erklärt.
Das hat keine eile.
Wir essen das gras.
Wir essen das sozialprodukt.
Wir essen die fingernägel.
Wir essen die vergangenheit.
Wir haben nichts zu verheimlichen.
Wir haben nichts zu versäumen.
Wir haben nichts zu sagen.
Wir haben.
Die uhr ist aufgezogen.
Wir haben zu tun.
Die teller sind abgespült.
der letzte autobus fährt vorbei.
Er ist leer
Wir können nicht klagen.
Worauf warten wir noch?
ENZENSBERGER, Hans Magnus. "Middle class blues". In: BLUME, Rosvitha Friesen; WEININGUER, Markus J. (organização e traduções). Seis décadas de poesia alemã. Do pós-guerra ao início do século XXI. Antologia bilingue. Florianópolis: Editora UFSC, 2012.
15.10.15
Elizabeth Bishop: "Insomnia" / "Insônia": trad. Paulo Henriques Britto
Insônia
A lua no espelho da cômoda
está a mil milhas, ou mais
(e se olha, talvez com orgulho,
porém não sorri jamais)
muito além do sono, eu diria,
ou então só dorme de dia.
Se o Mundo a abandonasse,
ela o mandava pro inferno,
e num lago ou num espelho
faria seu lar eterno.
— Envolve em gaze e joga
tudo que te faz sofrer no
poço desse mundo inverso
onde o esquerdo é que é o direito,
onde as sombras são os corpos,
e à noite ninguém se deita,
e o céu é raso como o oceano
é profundo, e tu me amas.
Insomnia
The moon in the bureau mirror
looks out a million miles
(and perhaps with pride, at herself,
but she never, never smiles)
far and away beyond sleep, or
perhaps she's a daytime sleeper.
By the Universe deserted,
she'd tell it to go to hell,
and she'd find a body of water,
or a mirror, on which to dwell.
So wrap up care in a cobweb
and drop it down the well
into that world inverted
where left is always right,
where the shadows are really the body,
where we stay awake all night,
where the heavens are shallow as the sea
is now deep, and you love me.
BISHOP, Elizabeth. "Insomnia" / "Insônia". In:_____. Poemas escohidos de Elizabeth Bishop. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Labels:
Elizabeth Bishop,
Paulo Henriques Britto,
Poema
13.10.15
Ivan Junqueira: "A mão que escreve"
A mão que escreve
A mão que escreve é aquela
que não pôde, inepta,
agarrar o que lhe era
devido nesta gleba:
glória, insígnias, troféus
e algo enfim que soubesse
àquilo a que, incrédulos,
chamamos vida eterna.
A mão que escreve é aquela
cujas linhas, babélicas,
descumpriram o périplo
que lhes previa a esfera
de um trismegístico Hermes,
e que, por dolo e inércia,
deixou rolar a pérola
que arrancara do pélago.
A mão que escreve é aquela
que foi, além de réproba
e amiúde analfabeta,
muitas vezes canhestra:
enfiou por ínvias vielas,
urdiu frases sem nexo,
bateu-se em tolos duelos
e excedeu-se, sem rédeas.
A mão que escreve é aquela
que compôs alguns versos,
odes, canções de gesta
e elegias sem metro,
às quais ninguém deu crédito
nem ouvidos. Aquela
que ergueu um brinde aos féretros
de uma insepulta Grécia.
JUNQUEIRA, Ivan. "A mão que escreve". In:_____. O outro lado. 1998-2006. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Labels:
Ivan Junqueira,
Poema
11.10.15
Dante Milano: "Descobrimento da poesia"
Descobrimento da poesia
Quero escrever sem pensar.
Que um verso consolador
Venha vindo impressentido
Como o princípio do amor.
Quero escrever sem saber,
Sem saber o que dizer,
Quero escrever urna coisa
Que não se possa entender,
Mas que tenha um ar de graça,
De pureza, de inocência,
De doçura na desgraça,
De descanso na inconsciência.
Sinto que a arte já me cansa
E só me resta a esperança
De me esquecer do que sou
E tornar a ser criança.
MILANO, Dante. "Descobrimento da poesia". In:_____. "Algumas canções". In:_____. Poesias. Rio de Janeiro: Editora Sabiá / Instituto Nacional do Livro - MEC, 1971.
Labels:
Dante Milano,
Poema
9.10.15
Séferis, Giórgos: "Rima": trad. José Paulo Paes
Rima
Lábios, vigias de minha paixão outrora acesa
mãos, cadeias da juventude que tão logo passa
cor de um rosto perdido em meio à natureza
árvores... pássaros... caça.
Corpo, rácimo negro sob um sol que te arde
corpo, magnífico navio, que rumo levas?
É esta a hora em que sufoca a tarde
e eu me afadigo a procurar as trevas...
(os dias roem nossa vida sem alarde).
SÉFERIS, Giórgos. "Rima". Trad. José Paulo Paes. In: PAES, José Paulo. Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.
Labels:
Giórgio Seféris,
José Paulo Paes
6.10.15
Arnaldo Niskier: "Um tiro no Sistema S"
Concordo inteiramente com o seguinte, excelente, artigo de Arnaldo Niskier, publicado na Folha de São Paulo no dia 4 do corrente:
Um tiro no Sistema S
É conhecida a dificuldade do governo federal para fazer o seu ajuste fiscal. Em meio a essa confusão toda, até propostas estapafúrdias acabam sendo feitas, como é o caso de sequestrar os recursos financeiros do Sistema S, o conjunto de nove instituições de interesse de categorias profissionais.
Até há pouco, falava-se em prestigiar o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego). Anunciava-se um programa de 12 milhões de técnicos. Depois, o número baixou consideravelmente, mas com a política de despir um santo para vestir o outro.
Retirar R$ 8 milhões do Sistema S e colocar nas contas baleadas do governo é condenar entidades beneméritas como o Senac, o Senai, o Senar, o Sesc, o Sesi, o Sebrae, a ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Exportação e Investimentos) a praticamente fechar as portas, como algumas chegaram mesmo a anunciar.
Só o Sesc estima perder cerca de 27 mil funcionários, além de inviabilizar o atendimento de 200 mil alunos no Rio de Janeiro. No caso do Sebrae, o corte programado, se vier a ser confirmado, pode levar a entidade a cobrar pelos seus serviços ou reduzir o número de 8 milhões de microempresários atendidos por ano. É possível imaginar o tamanho desse prejuízo?
A se confirmar a crise, será a maior dos mais de 70 anos de existência do Sistema S, nascido na década de 1940, quando Gustavo Capanema era ministro da Educação. Foi autor das célebres e consagradas Leis Orgânicas do Ensino Industrial e do Ensino Comercial, até hoje vigentes.
A prova da competência do Senai, por exemplo, pode ser medida pelo fato de mais de 60% dos seus alunos estarem empregados, mesmo com a elevada retração do mercado. A entidade, nos 1.008 cursos que oferece, forma aproximadamente 90 mil alunos por ano em 30 segmentos industriais.
Só mesmo um gênio do mal para mexer no setor, provocando a reação indignada de dirigentes como Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo). Os números do Senai, por exemplo, são espetaculares: 3,64 milhões de matrículas no ano passado, dos quais 1 milhão ministrados na modalidade do ensino à distância. Já o Sesi formou 217 mil jovens e adultos.
Com essa absurda intervenção do governo federal, uma hipótese provável seria passar a cobrar pelos cursos, mas não há dúvida de que isso representaria um baque nas matrículas. É a fórmula encontrada de prestigiar o que entendemos por ensino profissional?
A se confirmar a pretensão oficial, haverá uma série de perdas nos programas hoje vigentes de educação –sobretudo a construção de creches–, saúde, cultura e esporte.
Haverá uma drástica redução de matrículas e a possível perda de gratuidade nos cursos profissionais do Senac. Enfim, uma queda considerável de substância, como se pudéssemos nos dar ao luxo dessa perda inoportuna.ARNALDO NISKIER, 80, é membro da Academia Brasileira de Letras e presidente do CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) no Rio de Janeiro.
Labels:
Arnaldo Niskier,
Brasil,
Cultura,
Educação,
Sistema S
Assinar:
Postagens (Atom)