21.10.13
Gustavo Binenbojm: "Falso dilema"
Creio que o melhor artigo que li sobre a questão das biografias foi o seguinte, do professor Gustavo Binenbojm, publicado ontem em O Globo:
Falso dilema
Gustavo Binenbojm
(de O Globo - 20/10/2013)
O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de obras biográficas sem o consentimento dos personagens biografados tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada.
O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim. Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade. Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.
Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós. Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias:
( 1) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras;
(II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.
Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento. Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo. O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.
Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!”. O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo. É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.
A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.
Gustavo Binenbojm é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e advogado da Associação Nacional dos Editores de Livros
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9 comentários:
Cicero,
excelente artigo, embora leve mais em conta questões histórico-sociais que jurídicas. Juridicamente, o meu artigo explica o real motivo da polêmica em torno dos artigos do Código Civil e sua relação com a Constituição.
http://astripasdoverso.blogspot.com.br/2013/10/adriano-nunes-e-regis-bonvicino.html
Caro Adriano
O seu próprio artigo cita o artigo 5º, inciso X, segundo o qual “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Ou seja, a pessoa que sinta que a violação de sua intimidade lhe causou ou poderá causar dano material ou moral, poderá processar o violador e conseguir ser indenizada, caso a justiça decida a favor dela.
Esse artigo, porém, não dá a ninguém o direito de proibir a publicação em questão. Isso é o que pretendem fazer os artigos 20 e 21 do código civil que, nessa medida, são anticonstitucionais, pois contradizem o mesmo artigo 5º, já que este garante que são invioláveis "a liberdade de manifestação do pensamento, vedado o anonimato; a liberdade da expressão da atividade intelectual e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e o acesso de todos à informação"; e contradiz também o artigo 220, que garante que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação não sofrerão qualquer restrição, sob qualquer forma, processo ou veículo".
Em outras palavras, a constituição brasileira garante o direito à indenização de quem a justiça reconheça que tenha sido efetivamente lesado, mas não admite a censura prévia das biografias que os referidos artigos do código civil admitem. Tais artigos devem, portanto, ser riscados, por inconstitucionalidade.
Cicero,
o que atento, juridicamente, é para o fato de que censura prévia não deve prevalecer baseada em artigos de Código Civil como querem fazer os biografados & CIA, pois o Código é uma lei infraconstitucional, logo não pode se impor sobre a Constituição. Claro que, com a exclusão dos artigos do Código Civil ou com a inconstitucionalidade deles declarada, isso não muda muita coisa até porque na Constituição esses mesmos artigos praticamente coexistem. E não podem ser retirados! O que pode ser feito, então é um entendimento jurídico durante o julgamento se alguma das partes estiver se sentindo lesada, isto é, há uma bilateralidade característica do Direito e não uma unilateralidade característica da censura. Estando as normas e os Princípios Constitucionais em choque e em conflito, há várias maneiras de analisá-los, tais como descreve Robert Alexy. Aliás, o meu artigo (o publicado no blog) é um fragmento do artigo original que será exposto no Congresso Internacional de Direito Constitucional em maio de 2014.
Beijo imenso,
Adriano Nunes
Ainda não consigo ter uma opinião sobre isso, no momento em que acabo de ler a bio do Paulo Coelho.
Para mim a colisão de normas constitucionais é clara: preservação da intimidade X livre expressão do pensamento.
Lendo Caetano, Chico, Marco Aurélio Mello, Benjamim Moser, ou mesmo vendo Paula Lavigne no Saia Justa, consigo entender cada um em seu argumento.
Mas um argumento que afasto de plano é: se a pessoa é uma figura pública, sua vida é pública. Acho isso uma falácia. Roberto Carlos tem o direito de retirar de circulação passagens da sua vida que ele não gostaria de ver difundidas. Ou não?
Ou: publica-se, e depois, indeniza-se? Dependendo do que se publica - ainda que seja a "verdade verdadeira" - tal publicação não pode causar sofrimento àquele que teve sua vida devassada.
Veja bem: as vezes o biógrafo pode colher um depoimento de um desafeto do biografado, e fatos podem vir a conhecimento público (ainda que sejam verdadeiros). Não consigo achar isso justo, ainda que haja a possibilidade de uma compensação. O dano moral é sempre incalculável.
E não tem o STJ, que vem revigorando o "direito ao esquecimento"?
Abrçs!
Adriano,
acho que, com a exclusão dos artigos do código civil, muita coisa muda sim, pois não concordo que eles sejam, como você diz, "praticamente o mesmo" que o artigo 5º, inciso 10 da constituição. Os do código civil permitem a censura prévia; já o da constituição prevê apenas o "direito a indenização". Ora, dado que a mesma constituição diz que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação não sofrerão qualquer restrição, sob qualquer forma, processo ou veículo", não vejo como ela poderia admitir que os biografados censurem suas biografias. Eles poderiam, sim, receber indenizações, caso provem ter sido difamados.
Caro Nobile,
suponha que eu decida escrever minha autobiografia e que nela conte as relações amorosas que efetivamente tive com diversas pessoas. Você acha certo, então, que essas pessoas possam censurar a minha biografia, porque não queiram ter suas vidas devassadas?
O que uma pessoa -- pública ou não -- fez no passado e deixou consequências e testemunhas já não pertence a ela, mas é objeto que pertence ao mundo, e pode ser relatado por qualquer um.
Cicero,
eu não disse que são praticamente "os mesmos". Eu disse que praticamente "coexistem", o que é diferente. A presença deles no Código mesmo mantida (como expliquei) não pode ser superior ao que há exposto na Constituição. Você perguntar-me-ia: então por que muitas biografias foram proibidas e os livros recolhidos, se tais artigos são contrários ao da Constituição? Digo-lhe: porque o juiz pode julgar de acordo com o princípio e os argumentos que forem mais racionais, para o caso concreto. Quando os advogados dos biografados atentam para o Código Civil, os dos biógrafos devem atentar para a Constituição. Se um juiz concebe uma sentença (como muitas foram concebidas!)não levando em conta ao que diz a Constituição, então ele age arbitrariamente, pois não devia decidir tomando o Código como maior que as normas constitucionais. Portanto é um erro! Claro que se são excluídos os artigos do Código, não existirá censura prévia. Mas não era pra existir mesmo com o Código tendo tais artigos, pois a Constituição não a permite! Aí está o grande lance.
Abraço forte,
Adriano Nunes
Adriano,
segue-se que os artigos do código civil que entram em conflito com a constituição devem ser riscados.
Abraço
Caro Cicero,
Gostei de ver vc participar do debate. Sempre prezo muito sua opinião. Penso como vc: as normas constitucionais autorizam somente a indenização e não a censura prévia. Essa conclusão decorre de uma mera leitura dos artigos 5º, inciso X, e 220, "caput", da Carta Magna. O STF, quando analisou a ADPF 130/DF -- que examinou a constitucionalidade da Lei de Imprensa, julgando-a inconstitucional --, aplicou a técnica de ponderação preconizada por Robert Alexy, e decidiu do seguinte modo (cito trecho da ementa, os grifos são originais):
"(...) PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. (...)"
Aposto que é esse o entendimento que prevalecerá, nesse caso das biografias: precedência do direito à informação sobre os direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada, que são protegidos "a posteriori", ou seja, através de responsabilização civil, penal e administrativa.
Prevalecendo esse entendimento, e vez que a decisão será em sede de ADI - Ação direta de inconstitucionalidade, os seus efeitos deverão ser observados por todos ("erga omnes") e vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, em todas as esferas de governo. Portanto, discordo de Adriano quando afirma:
"(...) com a exclusão dos artigos do Código Civil ou com a inconstitucionalidade deles declarada, isso não muda muita coisa até porque na Constituição esses mesmos artigos praticamente coexistem. E não podem ser retirados! (...)"
Como disse, se o STF entender que os artigos 20 e 21, do Código Civil, são inconstitucionais; ou se entender que a interpretação que privilegia a "censura prévia" é incompatível com a CF (a ADI não pede a declaração de inconstitucionalidade, mas sim uma interpretação conforme a CF), a decisão é vinculante e para todos, não podendo mais o Poder Judiciário, no julgamento de qualquer caso concreto, adotar outro entendimento, diverso do apontado pelo STF. Ou seja, muda muita coisa, já que nenhum juiz poderá mais proibir a publicação de biografias com base numa leitura própria dos dispositivos legais e constitucionais em jogo. A decisão do STF passa a ser de observância obrigatória. É isso.
Grande abraço em todos!
Aetano
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