19.8.11

Rubem Braga: "Homem no mar"





Agradeço a André Parente por me ter enviado a seguinte bela crônica do Rubem Braga:


Homem no Mar

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.

Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.

Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.

É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".
Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.

Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

Janeiro, 1953.


5 comentários:

João Renato disse...

O texto é tão natural, tão suave, e no entanto, é tão difícil perceber a poesia naquele episódio e escrevê-lo sem escorregar para o piegas nem o vazio.
Tem uma outra crônica do Rubem Braga - "A mulher que ia navegar" -, de que também gosto muito.
E pensar que na maioria das vezes elas eram publicadas numa página de revista ou coluna de jornal, e que na semana seguinte embrulhavam carne, banana ou batatas.
JR.

bia reinach disse...

Antonio Cicero,
Primeiro gostaria de agradecer o curso na Maria Antonia. Continuo a ler os poemas que você selecionou ouvindo ao fundo o que você, sobre eles, disse. Mas o que quero mesmo aqui é te enviar dois poemas de um poeta que você e coincidentemente uma amiga me apresentaram no mesmo dia. Cinquenta anos sem sequer ouvir falar nele e em um dia duas pessoas de cantos diversos me falam dele.
Aqui vão:

IMPRESSÃO DIGITAL

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São Gigantes.

Antonio Gedeão

VIDRO CÔNCAVO

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.

Antonio Gedeão

J Alexandre Sartorelli disse...

Rubem Braga é um dos grandes estilistas de nossa língua e nosso maior cronista. Ele coloca o texto de prosa no limiar da poesia.
Ele é da estatura de Guimarães Rosa,Gonçalves Dias, Machado de Assis,Manuel Antonio de Almeida,Joaquim Nabuco, Dalton Trevisan, Manuel Bandeira e João Cabral.
Mas a crônica não é considerada tão nobre quanto o romance, o conto ou a poesia... (os concursos literários aliás são sempre desses gêneros)

Anônimo disse...

Não sei bem o que escrever como comentário. É muito bonito. Não tem nada a ver, mas isso me fez lembrar um pouco do filme "Morte em Veneza".

ADRIANO NUNES disse...

Cicero,

Adorei!!!

Sei que não é um poema aqui, mas o texto tem algo poético, por isso posto aqui o meu mais novo soneto:

"versos, que são?" - Para Péricles Cavalcanti



dentro do ver-
so, habita um ser
que a tudo ser-
ve: vem viver...

esse prazer
dentro do ver-
so, deve haver!
o que fazer

dessa ilusão
a se instalar
no coração?

de volta ao lar
- linda emoção -
versos, que são?



Abração,
Adriano Nunes