O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de novembro de 2007:
A ciência e Deus
AS MAIS TRADICIONAIS "provas" da existência de Deus -a "prova ontológica", de Anselmo de Canterbury, e as "cinco vias", de Tomás de Aquino- jamais se recuperaram da refutação que sofreram, por obra de Kant, no século 18. Assim, entende-se que, em seu livro "Deus, um Delírio", Richard Dawkins não lhes dedique muita atenção.
Por outro lado, sendo um biólogo, Dawkins se preocupa principalmente com as pretensões dos defensores do "intelligent design" (que, numa de suas típicas tiradas, ele chama de "criacionismo de smoking"). Estes alegam que a vida, os seres vivos, o ser humano etc. são complexos demais para terem sido produzidos pelo acaso.
Segundo eles, pensar o contrário seria como supor que um furacão que varresse um ferro-velho seria capaz de montar um Boeing 747. Como não dá para crer que algo tão improvável ocorra, eles inferem que tais coisas só podem ter sido produzidas por um designer ou projetista, isto é, por Deus.
A partir dessas considerações, explica-se que Dawkins trate a existência de Deus à maneira de uma hipótese científica como outra qualquer. Aqui não há como não lembrar a lapidar resposta do grande astrônomo Laplace a Napoleão, quando este lhe perguntou por que não mencionara Deus ao explicar o funcionamento do sistema solar: "Excelência, não precisei dessa hipótese".
Pois bem, Dawkins se propõe a considerar a hipótese científica de que "existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que deliberadamente projetou ("designed') e criou o universo e tudo o que nele se encontra, inclusive a nós".
A que conclusões chega? Em primeiro lugar, ele concorda que realidades tão complexas não podem ter sido produzidas pelo mero acaso. Em segundo lugar, porém, ele nega que elas possam ser satisfatoriamente explicadas por um designer. Por quê? Porque, dado que o designer de alguma coisa não pode deixar de ser mais complexo do que essa coisa, seria ainda mais difícil explicar a existência dele do que a dela. Será preciso então apelar a um outro designer para explicar o primeiro, e depois a outro para explicar o segundo, e assim ao infinito: o que desqualifica essa explicação. Desse modo, revela-se inaceitável a hipótese da existência de Deus.
Segundo Dawkins, o que realmente dá conta da produção de coisas extremamente improváveis como o ser humano não é nem o mero acaso nem o design, mas o processo de seleção natural. Este consiste na produção de algo improvável por meio de inúmeras etapas. "Cada uma das etapas", diz ele, "é um tanto improvável, mas não irrealizável. Quando um grande número desses eventos um tanto improváveis se acumula numa série, o produto final da acumulação é de fato muito improvável, tão improvável que não poderia ter sido produzido pelo mero acaso".
É esse resultado final do processo de seleção natural que é usado pelos proponentes do "intelligent design" (incapazes de compreender o poder da acumulação gradativa de improbabilidades) como argumento para a sua modalidade de criacionismo.
Os filósofos ou teólogos que alegam, contra o procedimento de Dawkins, que ele não está levando em conta o fato de que Deus não tem causa imanente, uma vez que é transcendente, de que Deus é uma primeira causa incausada etc., não têm cabimento aqui, já que Dawkins não está senão examinando a hipótese fundamental do "intelligent design", que se pretende puramente científica, e rechaçando-a nos próprios termos em que ela se propõe.
E a verdade é que a argumentação de Dawkins que acabo de descrever só tem sentido se entendida desse modo, como uma espécie de redução ao absurdo da teoria do "intelligent design". Por quê? Porque o "intelligent design" jamais poderia realmente ser considerado como uma hipótese científica.
Quando Laplace diz que não precisa da hipótese de Deus, está, na verdade, explicitando a principal regra do jogo constitutivo da própria ciência: de toda ciência. Deus não vale como hipótese porque tal hipótese explicaria tudo e qualquer coisa: logo, não explicaria nada. Assim, ainda que, pessoalmente, um cientista acredite na existência de Deus, ele não pode, sem trair a sua ciência, aduzir Deus para "explicar" coisa alguma.
A ciência é exatamente a tentativa de explicar o mundo como se Deus não existisse. Não ter deixado isso suficientemente claro -talvez por não o ter suficientemente compreendido- é certamente um dos maiores erros cometidos pelo autor de "Deus, um Delírio".
4.11.07
A ciência e Deus
Labels:
Ciência,
Deus,
Epistemologia,
Filosofia,
Intelligent design,
Richard Dawkins
Assinar:
Postar comentários (Atom)
12 comentários:
Caro ACicero,
Acho que você foi mais feliz neste último artigo da série. Só duas observações. Em primeiro lugar, não creio que o Dawkins tenha plena consciência da diferença entre uma proposição científica e uma não-científica. Não me parece que ele saiba distinguir causa de razão. Em segundo lugar, para sermos coerentes, uma vez aceita a distinção entre causa e razão, deveríamos admitir que a ciência, todas as contas feitas, não explica nada. Ela só diz as causas, ou seja, só mostra como as coisas se constituem e se comportam, mas não diz o que elas são nem por que são o que são. Para isso seria necessário aceder às razões das coisas, no limite, à razão.
Abraço,
edg
Sempre penso que a fé é uma questão de aposta pessoal. Vinícius de Moraes disse uma vez que, do ponto de vista lógico, cartesiano, nada metafísico tinha solução. Mas "eu creio", disse ele, "creio e ponto final". Sinto o movimento da fé e sua contrapartida em mim, por isso escrevi um poema que envio agora (não é a primeira vez aue mando ele para o seu blog)
A Miscigenação do Espírito
A dúvida se instaura em pleno cerne de onde eu penso o mundo.
A fé responde prontamente a como eu sinto o mundo.
Entre um e outro,meu ser navega.
Não existe o Léo de ceticismo sem mais nada.
E não existe o misticismo sem cogito interferente.
Dentro de mim habita um grego que trafega pela pólis.
Um cristão primivíssimo rezando em catacumbas.
Um africano e seus ebós à meia-noite em plena mata.
Um indiano reverente.
Um chinezinho muito sábio com suas poções.
A seu lado um índio livre (brasileiro) evoca deuses naturais.
Mas há também um francesinho renitente,de olhos vesgos,
desacreditando em tudo com Le Monde pela mão.
Cícero: me fale um pouco sobre o seu Curso la no Pensamento Contemporâneo..sobre a A arte do poeta.
Obrigada e bom Domingo pra vc.
Lia,
Acabo de postar a ementa do curso.
Abraço,
Antonio Cicero
Caro Antônio,
Acho que esse último artigo retoma a discussão daquele outro sobre ética. Existindo ou não, Deus não pode ser usado em uma argumentação lógica (seja científica ou ética) porque pode justificar tudo, o que acabaria por tornar toda a lógica inútil. É necessário que os seres humanos encontrem uma forma objetiva de discussão, construção de conhecimento e consenso, sem o uso (porque no fundo, usa-se para tudo) de Deus.
Na veradade, tenho uma teoria que gostaria que você comentasse. O Deus onipotente, onisciente e infinitamente bom e justo, quando tomado do ponto de vista lógico, não é mais do que a materialização de um argumento de autoridade puro. Ora, o parecer de autoridades deve ser sempre levado em conta, mas não é essencial nem absoluto: depende da competência da autoridade no assunto em questão e é falível. De fato, argumentos de autoridade válidos são apenas uma forma de delegar parte do trabalho lógico a pessoas competentes, embora não sem crítica. Deus é uma autoridade inquestionável, e que não escolhe seus próprios posicionamentos, podendo ser evocada a favor de qualquer tese. Bakunin tem um texto interessante (não me recordo qual) em que discute a diferença entre autoridade técnica e autoridade política, e o quanto a última não tem qualquer fundamento lógico. Parece que o (ab)uso de Deus é apenas o argumento daqueles que desistiram de argumentar, evocando uma autoridade fantasmagórica para justificar suas imposições ideológicas.
um abraço,
Lucas
Cicero,
Sou estudante de Filosofia. Não me vejo como um ateu, mas também não sou o religioso. A Deus me apego pessoalmente, mas racionamente haverá sempre a dúvida. Nas aulas sempre procuro sinceramente verificar, me convencer da existência de Deus, mas é realmente difícil.
Enfim, minha opinião é que crer nos números pode ser um ato de fé tão grande quando acreditar em deus. Este ano escrevi no meu blog em um texto chamado Grandezas (http://back.wordpress.com/2007/02/05/grandezas/) o seguinte trecho: "prefiro deixar esta criação humana chamada Deus com os tolos à moda antiga, pois eu prefiro ser um tolo contemporâneo: crer no acaso."
Caro Lucas,
Acho que o que você diz ocorre, de fato, em muitos casos. No que diz respeito à ciência, por exemplo, o apelo a Deus é inaceitável. O apelo à teleologia, por exemplo, pressupõe o conhecimento das intenções de Deus: ora a pretensão a tanto não só prejudica a ciência, mas, do ponto de vista da religião pura, constitui um sacrilégio. E são justamente as religiões positivas que costumam cometer esse sacrilégio. Antes, como o Gustavo Guilherme Back, ter um apego inefavelmente pessoal a Deus.
Abraços,
Antonio Cicero
Prezado Antonio Cicero,
09/03/2007 17:24
O ATEU
EXISTEM DOIS TIPOS DE ATEUS: OS QUE TIVERAM FÉ; E OS QUE NUNCA A TIVERAM. OS QUE ACREDITARAM EM DEUS, PRECISAM JUSTIFICAR AGORA POR QUE NÃO MAIS ACREDITAM; OS QUE NUNCA ACREDITARAM TAMBÉM PRECISAM JUSTIFICAR POR QUE NUNCA ACREDITARAM. EIS AÍ RETORNANDO O EMBATE ENTRE FÉ E RAZÃO. O PROBLEMA É QUE OS ATEUS NECESSITAM SEMPRE DE UMA DOSE A MAIS DE FÉ DO QUE DE RAZÃO PARA JUSTIFICAR AS SUAS RAZÕES. O PROBLEMA DA RAZÃO TEM SIDO, ULTIMAMENTE, MAIS UM EXERCÍCIO DE FÉ DO QUE DA PRÓPRIA RAZÃO; E O PROBLEMA DA FÉ TEM SIDO BUSCAR RAZÕES SUFICIENTES (EMPIRIA) ALÉM DA PRÓPRIA FÉ.
09/03/2007 17:18
Penso que a fé é um baluarte de quase todas, senão todas, religiões; mas penso também que as religiões trabalham com um sensu de ciência. É ciência quando tentam se embasar em seus milagres.
meu queridíssimo poetósofo (entendeu? - rs),
que lindo artigo o seu!
sabe o que me causa abismos de espanto? eu já lhe escrevi algumas vezes: a sua capacidade de concatenar idéias e pensamentos, clarificando tudo.
não há o que acrescentar. só posso concordar. por quê? justifico: porque o que você propõe, quando pensa, quando concatena, é o uso da razão esgarçado de tão estimulado, o seu uso decantado. as conclusões seguem a lógica em seu estado esgotado. isso é o máximo, é colocar os pingos nos "is", fazendo raciocinar fundo, naufragar: o afogamento em funduras do pensar.
que bom contar com as suas linhas, cicero. bom verdadeiramente.
a você,
o meu beijo gostoso,
o meu carinho absurdo
e a ad-miração de náufrago náugrafo.
Paulinho,
Muitíssimo obrigado! Que felicidade ter um leitor como você!
Um beijo,
Antonio Cicero
Antônio Cícero,
Mais uma pergunta humilde:
-Não estará a ciência a trilhar um caminho permitido por Deus?
Esta teoria: "acumulo de improbabilidades" não é mais do mesmo? A mesma novela evolucionista?
A própria teoria do "designer parece símile às teorias "criacionistas", só que expostas por um outro viés...
Será que a contraposição de ciência e Deus não resulta, unicamente, em andar em círculos?
Julgo que este foi um debate importante na "época" do iluminismo, mas, e hoje?
PS. concordo com o "amigo" que comentou a sua capacidade de tornar claras as águas mais turvas do conhecimento...
por isso apareço com as minhas humildes perguntas, porque sei que sua explicção será compreensível.
obrigado.
Edson.
Postar um comentário