15.7.07

A relevância da política

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada da Folha de São Paulo, sábado, 14 de julho de 2007:


A RELEVÂNCIA DA POLÍTICA

Lembro-me de que quando eu era estudante universitário, no final da década de sessenta, parecia evidente a todo o mundo (ou pelo menos a todo o mundo de esquerda) que nos Estados Unidos não havia nenhuma diferença substancial entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Essa era a tese dos marxistas, mas ela havia encontrado apoio também, desde a década de cinqüenta, em autores independentes, como Wright Mills. E era o que Herbert Marcuse e, de maneira geral, os filósofos e ideólogos da contra-cultura pensavam.
Nessa época, a guerra do Vietnam, que havia tomado corpo com um democrata (Kennedy), engrossado com outro (Johnson), e que continuava sua “escalada” com um republicano (Nixon), parecia confirmar que a cara de um partido era o focinho do outro.
De lá para cá, também entre grande parte dos intelectuais americanos tornou-se senso comum a opinião – expressa, por exemplo, por Chomsky e por vários representantes locais do pós-estruturalismo – de que nos Estados Unidos as eleições não são muito relevantes. As enormes taxas de absenteísmo eleitoral que lá se verificam levam a supor que talvez até uma parte considerável dos eleitores americanos – entre os quais muitos jovens e muitos pretos – também pensem assim.
A verdade, porém, é que ultimamente não tem mais sido possível acreditar nessa tese. Tendo em vista o verdadeiro ataque perpetrado pela administração republicana de George Bush à razão, ao Estado de direito e à democracia nos Estados Unidos, seria inteiramente absurdo pensar que não haja uma diferença extremamente relevante entre ele e, por exemplo, o seu predecessor democrata, Bill Clinton.
Para prová-lo, bastaria citar o fato de que, brandindo o pretexto do terrorismo, Bush conseguiu fazer aprovar pelo Congresso, então majoritariamente republicano, o “Military Commissions Act”, uma lei que, em certas circunstâncias, torna admissível a tortura e põe fora de ação o instituto do habeas corpus: retrocesso jurídico simplesmente inconcebível há poucos anos e que constitui uma afronta inominável aos direitos humanos. Por ocasião da sua aprovação, o jornal “New York Times” (28/9/2006), com toda razão, declarou em editorial que, no futuro, os americanos se lembrarão de que, “em 2006, o Congresso passou uma lei tirânica que será considerada como um dos pontos baixos da democracia americana”. E poderíamos lembrar que, ainda antes da aprovação dessa lei, o governo Bush já se permitira seqüestrar, encarcerar e submeter pessoas que jamais sequer haviam sido formalmente acusadas de qualquer crime específico a torturas e tratamentos indignos.
E que dizer do fato de que ele subverte o princípio de controles e equilíbrios (checks and balances) que garante a independência dos poderes, ao pressionar, ameaçando de demissão, os juízes que não se conformem com os seus desígnios? Ou da sua tentativa de solapar a autonomia da ciência, ao incentivar, contra a teoria científica da evolução, a divulgação e o ensino da teoria pseudo-científica do “intelligent design”? Ou da parcialidade do seu governo às iniciativas religiosas em todos os campos, minando o caráter laico do Estado?
Eu poderia continuar, falando, por exemplo, da sua política econômica, que acaba por redistribuir a renda a favor dos mais ricos; ou da sua destruição sistemática do sistema de saúde pública. O principal, porém, é outra coisa: é que devemos compreender que a tese da irrelevância da política não somente contribuiu para pôr Bush no poder, como é a tese que mais convém a ele e a seus aliados, pois o que eles atacam é precisamente a política; e é a que menos convém àqueles que defendem a liberdade nos Estados Unidos ou em qualquer outro país.
Fala-se às vezes da “democracia direta”, como um antídoto à “irrelevância da política”. Mas os atos citados de Bush seriam condenáveis, ainda que houvessem sido apoiados pelo povo inteiro através de plebiscitos, como certamente teriam sido, logo após o 11 de setembro. A "democracia direta" pode ser uma ditadura plebiscitária, como a de Chávez. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras sanguinárias de Hitler, de Stalin, de Mao Tsé-tung e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só.
Por isso, mesmo para lutar contra as desigualdades sociais, devemos defender a sociedade aberta e laica, o Estado de direito, a livre expressão, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. E defender isso é defender a relevância da política.

Antonio Cicero

5 comentários:

Anônimo disse...

Acho que normalmente a razão não anda mesmo com a maioria. Há um tempo, li uma matéria na revista Caros Amigos sobre o caso do iraquiano suspeito de terrorismo preso e submetido a torturas por soldados americanos. A foto dele saiu na intenet. Falou-se até sobre uma pesquisa realizada em Harvard, eu acho, sobre o comportamento das pessoas qnd assumem a função de agente carcerário. Bem, como elas agem diante dos prisioneiros. A pesquisa não foi concluída pq os voluntátios piraram. Ah, e possívelmente é impossível não se tornar um terrível torturador qnd se tem o poder nas mãos, segundo a pesquisa. Não sei, não. Isso não justifica. Mesmo sob pressão esses soldados tão preparados para tudo deveriam manter o mínimo de controle. Tanto q alguns soldados americanos não agiam dessa forma, quero dizer, torturando, segundo as palavras do prisioneiro iraquiano. Os caras se acham superhomens e esse é o problema. Com uma farda e arma na mão, o super falo, ferrou tudo. Mas acredito q haja aqueles q tenham um pouco de senso crítico e até ajudem alguns prisioneiros. E isso acontece no mundo inteiro. Quero dizer, esses métodos terríveis. No caso da crueldade aplicada por terroristas, aqueles q matam e explodem tudo, é mais ou menos compreendida pq os caras são bandidos mesmo e entram naquela onda religiosa, só pensam em matar, matar por Alah e não sacam de mais nada. São estúpidos mesmo. Mas um cara da civilização ocidental q teve acesso à educação, fortinho e bem alimentado, pai de família, cara, se ele sai dos eixos e fica violento é pq não presta mesmo. Babel, o recente filme, mostra q as pessoa podem ser boas ou más em qualquer tipo de situação e em qualquer lugar do mundo. A pressão não justifica a violência desmedida. Bush é o anticristo.

DBI disse...

Cicero, você leu a Piauí que falava da tortura? Os artigos relativos estavam bastante bons.

Lucas Nicolato disse...

Excelente, Antônio. Infelizmente vivemos um período em que a didatura parece ter se atingido novamente o status de "solução aceitável". Espero que o processo democrático no Brasil não sofra o mesmo retrocesso. Não obstante, parece que há muitos que estão interessados em aplicar o mesmo princípio em nosso país, afirmando que não há mais diferença em quem elegemos, já que todos são igualmente corruptos. São necessárias vigilância e crítica constantes, para que essa ideologia não justifique um retorno ao passado negro ainda tão doloroso em nossa memória.

um abraço,
Lucas

Anônimo disse...

Corrigindo, a matéria saiu na Piauí.

Anônimo disse...

Eu gostaria de acrescentar um detalhe para fazer justiça aos republicanos: o grupo de Bush representa um ponto extremo do partido, obscurantista, provinciano e irracional; mas os republicanos, historicamente, ainda que estejam "mais" à direita que os democratas, não são necessariamente "piores" do que qualquer direita da história, Thatcher, por exemplo. Bush é uma aberração mesmo no seio de seu partido.