5.7.07

Arthur Schopenhauer: de O mundo como vontade e representação

O seguinte capítulo de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (que aqui publico na tradução portuguesa de Sá Correia), traça uma distinção entre a idéia singular e concreta e o conceito, universal e abstrato. Texto profundo e, no entanto, claríssimo, considero-o um tour de force de filosofia.

O princípio que constitui o fundamento de tudo o que dissemos até aqui sobre a arte é que o objecto da arte, o objecto que o artista se esforça por representar, o objecto cujo conhecimento deve preceder e engendrar a obra, como o germe precede e engendra a planta, esse objecto é uma Ideia, no sentido platónico do termo, e absolutamente mais nada; não é a coisa particular, visto que não é o objecto da nossa concepção vulgar; também não é o conceito, visto que não é o objecto do entendimento, nem da ciência. Sem dúvida a Ideia e o conceito têm qualquer coisa de comum, na medida em que ambos são unidades que representam uma pluralidade de coisas reais; apesar de tudo, há entre eles uma grande diferença; e é esta diferença que explica duma maneira suficientemente clara e luminosa o que disse acerca do conceito no primeiro livro e acerca das Ideias neste. Teria já Platão concebido claramente esta diferença? não quero de modo nenhum afirmá-lo: ele dá, a propósito das Ideias, numerosos exemplos e explicações que se poderiam aplicar a simples conceitos. Deixemos entretanto esta questão sem resposta e continuemos o nosso caminho, felizes todas as vezes que nos encontrarmos sobre as marcas dum grande e nobre espírito, mais preocupados ainda, apesar de tudo, em prosseguir o nosso fim do que por nos ligarmos aos seus passos. - O conceito é abstracto e discursivo; completamente indeterminado, quanto ao seu conteúdo, nada nele é preciso a não ser os seus limites; o entendimento é suficiente para o compreender e para o conceber; as palavras, sem outro intermediário, são suficientes para o exprimir; a sua própria definição, enfim, esgota-o completamente. A Ideia, pelo contrário, que se pode rigorosamente definir como o representante adequado do conceito, é absolutamente concreta; por mais que ela represente uma infinidade de coisas particulares, não é menos determinada em todos os seus aspectos; o indivíduo, enquanto indivíduo, nunca a pode conhecer; é preciso, para a conceber, despojar toda a vontade, toda a individualidade, e elevar-se ao estado de puro sujeito que conhece; também se pode dizer que ela está escondida de todas, excepto do génio e daquele que, graças a uma exaltação da sua faculdade de conhecimento puro (devido quase sempre às obras de arte), se encontra num estado vizinho do génio: a Ideia não é essencialmente comunicável, ela só o é relativamente, visto que, uma vez concebida e expressa na obra de arte, ela só se revela a cada um proporcionalmente ao valor do seu espírito; eis precisamente por que as obras mais excelentes de todas as artes, os monumentos mais gloriosos do génio, são destinados a permanecer eternamente cartas fechadas para a estúpida maioria dos mortais; para estes as obras de arte são impenetráveis, elas estão à parte, separadas por um largo abismo e assemelham-se ao príncipe cujo acesso não é permitido ao povo. Apesar de tudo, os mais tolos dos homens não confiam menos nas obras de arte consagradas, visto que não querem de modo nenhum deixar ver a sua tolice, mas estão dispostos, no seu foro íntimo, a condenar essas mesmas obras de arte, desde que se lhes faça esperar que possam fazê-lo sem nenhum perigo de se revelarem; então descarregam com deleite esse ódio muito tempo alimentado em segredo contra o belo e contra aqueles que o realizam; não podem perdoar às obras de arte o terem-nos humilhado não lhes dizendo nada: visto que, em geral, para apreciar de boa vontade e livremente o valor do outro, para o fazer valer, é necessário possuí-lo o próprio. É aí que se funda a necessidade de ser modesto, uma vez que se tenha mérito; é também aí que assenta a estima excessiva que se tem pela modéstia: sozinha, entre todas as suas irmãs, essa virtude nunca é esquecida, desde que se ouse fazer o elogio dum homem de mérito; é que se espera, ao elogiá-la, fazer prova de intenções conciliantes e apaziguar a cólera dos imbecis. O que é, com efeito, a modéstia, senão uma fingida humildade, pela qual, no seio deste mundo infectado pela mais detestável inveja, se pede desculpa pelas vantagens e pelos méritos a pessoas que são desprovidas de ambos? Porque aquele que não se atribui nem vantagens nem méritos, pela simples razão de que efectivamente não os possui, esse não é de modo nenhum modesto, é só honesto.

A Ideia é a unidade que se transforma em pluralidade por meio do espaço e do tempo, formas da nossa apercepção intuitiva; o conceito, pelo contrário, é a unidade extraída da pluralidade, por meio da abstracção que é um procedimento do nosso entendimento; o conceito pode ser chamado unitas post rem, a Ideia, unitas ante rem. Indiquemos, finalmente, uma comparação que exprime bem a diferença entre conceito e Ideia: o conceito assemelha-se a um recipiente inanimado; aquilo que lá se deposita permanece bem colocado na mesma ordem, mas não se pode tirar de lá (através dos juízos analíticos) nada mais do que aquilo que lá se colocou (através da reflexão sintética); a Ideia, pelo contrário, revela àquele que a concebeu representações completamente novas do ponto de vista do conceito de mesmo nome: ela é como um organismo vivo, que cresce e é prolífico, capaz, numa palavra, de produzir aquilo que não se introduziu lá.

Consequentemente, qualquer que seja, na prática, a utilidade do conceito, quaisquer que sejam as suas aplicações, a sua necessidade, a sua fecundidade nas ciências, não permanece menos eternamente estéril sob o ponto de vista artístico. Pelo contrário, uma vez concebida, a Ideia torna-se a fonte verdadeira e única de toda a obra de arte digna deste nome. Completamente cheia duma vigorosa originalidade, residindo no seio da vida e da natureza, ela é apenas acessível ao génio ou ao homem cujas faculdades se elevam por um instante até ao génio. É apenas duma visão tão directa que podem nascer as obras verdadeiras, aquelas que trazem em si a imortalidade. Como a Ideia é e permanece intuitiva, o artista não tem nenhuma consciência in abstracto da intenção nem da finalidade da sua obra; não é um conceito, é uma Ideia que paira diante dele; não pode igualmente dar conta do que faz; trabalha, como se diz vulgarmente, por palpite, inconscientemente, instintivamente. Completamente ao contrário, os imitadores, os maneiristas, «imitatores, servum pecus», passam do conceito para a arte: eles anotam aquilo que agrada, o que provoca o efeito nas verdadeiras obras de arte; analisam-no, concebem-no sob a forma de conceito, isto é, abstractamente; fazem dele, enfim, à força de prudência e de aplicação, uma imitação confessada ou não. Semelhantes às plantas parasitas, sugam a sua alimentação, tiram-na das obras dos outros e tomam a cor dos seus alimentos como pólipos. Levando mais longe a comparação, poder-se-ia ainda dizer que eles se assemelham a máquinas que cortam muito miúdo e misturam tudo o que lá se lança, mas não podem nunca digeri-lo; deste modo os elementos estranhos podem sempre ser reconhecidos, isolados, distinguidos. Só o génio pode ser comparado a um corpo organizado que digere, elabora e produz. Sem dúvida que ele se forma na escola dos seus predecessores no exemplo das suas obras, mas só se torna fecundo pelo contacto imediato com a vida e com o mundo, sob a influência da intuição; eis por que a educação, por mais perfeita que seja, nunca eclipsa a sua originalidade. Todos os imitadores, todos os maneiristas concebem sob a forma de conceito as obras estranhas que lhes servem de modelos; ora nunca um conceito poderá dar a uma obra a vida interior. Os contemporâneos, isto é, tudo o que a época produz de pessoas medíocres, conhecem apenas os conceitos e são incapazes de se desligarem deles; eis por que acolhem com prontidão e entusiasmo as obras imitadas. Mas poucos anos bastarão para tornar essas mesmas obras enfadonhas, visto que o único fundamento sobre que repousa o seu encanto, isto é, o espírito do tempo e o conjunto dos conceitos familiares à época, serão bem depressa transformados.

Só as obras verdadeiras, tiradas directamente do seio da natureza e da vida, permanecem eternamente jovens e sempre originais, como a própria natureza e a própria vida, visto que não pertencem a nenhuma época, são da humanidade. Os contemporâneos, a que elas não se dignam comprazer, acolhem-nas com frieza; não se lhes pode perdoar terem implícita e indirectamente desvendado os erros da época; além disso só se lhes presta justiça tardiamente e de bastante má vontade; mas em compensação elas não podem envelhecer; até nos tempos mais recuados, elas conservam a sua expressão, a sua frescura, a sua juventude sempre renascente; aliás não têm nada a temer nem do desprezo, nem do esquecimento, a partir do momento em que foram coroadas pela aprovação e pelos aplausos desse pequeno número de homens esclarecidos que aparecem em raros intervalos nos séculos (apparent rari nantes in gurgite vasto) e que emitem os seus juízos; são os seus sufrágios, acumulando-se, que constituem por si só a autoridade e o árbitro aos quais se ouve apelar, quando se evoca o juízo da posteridade, visto que no futuro a multidão será e permanecerá sempre tão atrasada e tão estúpida como não deixou de ser no passado. - Remeto o leitor para as lamentações que os grandes génios de cada época elevam contra os seus contemporâneos: têm o aspecto de serem de hoje; é que a raça humana é sempre a mesma. Em todos os tempos e em todas as artes a afectação substitui a inspiração, que é a propriedade exclusiva dum pequeno número; ora a afectação é um vestuário sob o qual o génio brilhou um instante; uma vez usado, rejeita-o e as pessoas apanham-no. Resulta de tudo isto que, em geral, para ter a aprovação da posteridade é preciso renunciar à dos contemporâneos, e reciprocamente.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Trad. de M. Sá Correia. Porto: RÉS, s.d., p.307-312.

3 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Antonio Cicero,

Permita-me colocar mais algumas ponderações quanto ao Princípio da Identidade. Só que lanço mão do Princípio da Identidade Negativa.

Inédito

PRINCÍPIO DA IDENTIDADE NEGATIVA

Se A = A

então

A - A = 0

então

- A = -A

Todos os direitos para
wilson luques costa
grato.

Anônimo disse...

Caro Antonio, belíssimo texto!
Mas, voltando ao nosso amigo Peirce, não seria a Idéia schoppenhauriana equivalente ao Primeiro peirceano, enquanto que o Conceito não seria equivalete ao Terceiro?
Ou seja, a Idéia estaria próxima do Ícone e, por sua vez, o Conceito estaria próximo do Símbolo.
Vejamos:
"O conceito é abstracto e discursivo; completamente indeterminado, quanto ao seu conteúdo, nada nele é preciso a não ser os seus limites; o entendimento é suficiente para o compreender e para o conceber; as palavras, sem outro intermediário, são suficientes para o exprimir; a sua própria definição, enfim, esgota-o completamente."
Quando Schoppenhauer diz que "a sua própria definição, enfim, esgota-o completamente", isto leva-nos ao Símbolo e a sua natureza convencional. O Símbolo, como o Conceito, possuem definições limitadas por convenções. Depois de finalmente definido, o significado de um Conceito torna-se algo convencionalizado, arbitrário.
Quanto à Idéia:
"A Ideia, pelo contrário, que se pode rigorosamente definir como o representante adequado do conceito, é absolutamente concreta; (...) a Ideia não é essencialmente comunicável, ela só o é relativamente, visto que, uma vez concebida e expressa na obra de arte, ela só se revela a cada um proporcionalmente ao valor do seu espírito..."
Portanto, a Idéia é correlata ao Ícone por ser "concreta" e não ser "essencialmente comunicável". Um Ícone, que é sempre um "possível", só é comunicável quando é "fisicalizado", tornando-se, então, um Índice, um "existente".
Enfim, como diria Peirce, o Ícone é o signo da descoberta, é o signo aberto por excelência, como a Idéia, na definição de Schoppenhauer.


Valeu!

Um grande abraço.

Antonio Cicero disse...

Caro Paulo,

Acho que, de fato, essa associação que você faz é perfeitamente legítima.

Como você sabe, continuo tendo uma pequena dificuldade com a palavra "ícone" (você chegou a ver o comentário que deixei sobre a nossa correspondência de 24/6?). Mas estou chegando à conclusão de que, no fundo, essa nossa diferença não é muito substantiva.

Grande abraço,
Antonio Cicero