28.7.07

Barbárie e civilização

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da “Ilustrada” da Folha de São Paulo sábado, 28 de julho de 2007:





ANTONIO CICERO

Barbárie e civilização
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O civilizado é aquele que reconhece que as convicções de qualquer cultura são falíveis
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"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.
Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".
É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".
Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".
Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?
Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.
Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.
Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.
Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade.
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.
Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas freqüentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.
A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a conseqüente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.
Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista -e não a partir de crença alguma- que se constitui a civilização.

8 comentários:

Marcello Jardim disse...

Prezado Cicero,
Concordo e considero muito importante o caráter de distanciamento crítico que você destaca de forma precisa,sobretudo como visada ética nos dias de hoje onde a política tem se confundido com mecanismos identificatórios.Mas fiquei um pouco perplexo diante do que seja possível distinguir quando você valorou verdadeiro ou falso como verificadores daquelas "convicções fundamentais".Que falsas sejam as crenças que se arvoram em identidades e verdadeiras as que imbuídas daquele distanciamento prudente da razão crítica,penso que esta seja uma leitura possível.Mas aqui a questão da verdade não se insinuaria,sendo ela possivelmente refratária em se deixar determinar por um fatalismo binário tipo verdadeiro ou falso?Por exemplo:a fé em Deus é verdadeira ou falsa?Considerando que a palavra fé pode guardar sob si uma vasta latitude de aproximações,desde a via das certezas medrosas até a própria vontade em meio ao desamparo da lucidez diante do absurdo e do nada(ainda que investida da mais bem acabada razão crítica),resta-me a impressão de que,diante da razão,a verdade é sempre selvagem,mas não necessariamente bárbara.
Obrigado por ler,
Marcello.

Antonio Cicero disse...

Caro Marcello,

Obrigado pelo seu comentário. Confesso que não sei se entendo bem a sua crítica. O problema talvez seja que você tenha querido dizer muita coisa num espaço pequeno. Na verdade, entendo isso porque tive o mesmo problema no artigo que você comenta, cujo espaço, no entanto, foi maior.
Não me ficou claro se você acha que (A) determinadas crenças não devem ser qualificadas de verdadeiras ou falsas, pois essas categorias não fariam jus a elas, ou se (B) é a própria verdade que é selvagem demais para ser estabelecida pela razão.
Quando você pergunta se “a fé em Deus é verdadeira ou falsa”, parece que tem (A) em mente: parece que acha absurdo que se pergunte se a fé em Deus é verdadeira ou falsa. Ora, nos termos em que a sua pergunta é formulada, essa pergunta parece, de fato absurda. No meu texto, porém, eu não falo em “fé”, e sim em “crença”. São coisas diferentes. A fé, de “fides” isto é, fidelidade ou lealdade, não é propriamente verdadeira ou falsa, senão quando essas palavras são usadas no sentido de “autêntica” ou “inautêntica”. A fé em Deus não é a crença na existência de Deus, mas a confiança em Deus ou a fidelidade a Deus ou à comunidade dos que são fiéis a Deus. A fé é antes de natureza ética do que gnoseológica.
Já a crença é, em primeiro lugar, de natureza gnoseológica. Crer em alguma proposição é achar que ela é verdadeira; não crer nela, achar que ela é falsa. Por isso, faz perfeitamente sentido perguntar se a crença na existência de Deus é verdadeira ou falsa. Essa crença tem, com efeito, sido objeto de discussão há milênios. Há tentativas de provar a existência de Deus e tentativas de demonstrar que é absurdo crer na existência de Deus. Ora, o que digo no meu artigo? Exatamente que é concebível que qualquer crença – e isso, naturalmente, inclui a crença em Deus – seja falsa.
Quanto a (B), não acho que a classificação de “selvagem” (ou “bárbara” ou “civilizada”) se aplique à verdade. A verdade (ou a falsidade) pode, em determinado ponto, estar com um selvagem e não com um civilizado ou com um bárbaro; ou com um civilizado e não com um bárbaro ou um civilizado; ou com um bárbaro e não com um selvagem ou um civilizado. A própria verdade, porém, não será nunca nem selvagem, nem bárbara, nem civilizada, mas simplesmente a verdade.
Seria mais correto, às vezes, chamar a razão de selvagem, pois o que não vem da cultura vem da natureza; ora, a razão não vem da cultura; logo, ela vem da natureza; e às vezes ela é capaz de sobrepujar a cultura; e, quando a natureza sobrepuja a cultura, diz-se que ela é selvagem.
Um abraço,
Antonio Cicero

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Esse é um artigo muito interessante e apresenta um novo lado da importante questão que acompanha seu trabalho: "A Modernidade". A cada novo artigo compreendo melhor sua visão do assunto, com a qual tendo a concordar cada vez mais.
Acho interessante, contudo, expressar alguns questionamentos, em especial uma resposta a seu último comentário.

Nomear a razão como "selvagem" ou "natural" é um tanto perigoso. De fato, a racionalidade é uma possibilidade objetiva de todo ser humano saudável (abstraindo, por ora, dos problemas em relação à definição de saúde), mas isso não quer dizer que o uso efetivo da razão é uma determinação biológica, o que pode talvez ser entendido de suas afirmações. Na verdade, parece-me que os seres humanos em geral usam a razão apenas em alguns momentos raros, e mesmo assim de forma limitada. Talvez tal fato seja até bom, já que o esforço do raciocínio pode exaurir as energias necessárias à ação. A razão, a modernidade, a crítica, antes de serem procedimentos automáticos ou determinísticos, dependem de um esforço e uma decisão conscientes, sendo, portanto, um processo artificial, que age mesmo em sentido contrário à inércia do hábito e do instinto.

Talvez aí se encontre a dificuldade que muitas vezes aparece em aceitarmos que existam verdades objetivas supra-culturais: no fato de que essas verdades não nos chegam sem um grande esforço, e no fato de que podemos simplesmente nos negar a esse esforço.

Transformar a possibilidade teórica da modernidade em um fato social concreto certamente é um desafio enorme e contínuo, e creio que através de discussões como essa podemos caminhar em direção à sua realização.

um abraço,
Lucas Nicolato

Marcello Jardim disse...

Prezado Cicero,
Agradeço sua atenção e suas reflexões e aproveito a oportunidade para retomar o assunto(que acho mto difícil,pois não sou filósofo,sou pintor)onde achei muito propícia a discriminação que você fez entre fé e crença.A fé tem natureza ética.E isto parece apontar já uma postura de honestidade e coerência com o ambiente cultural e natural onde se podem constituir fé e razão crítica.Porque,quando qualquer uma delas se faça crença,degrada-se como pensamento de exceção e compromete-se na afirmação opaca de si mesma,negando assim algo de sua origem feita do diálogo entre alteridades e da sensibilidade em perceber tais alteridades.E toda crença ganharia assim um aspecto de fé ou razão desesperadas, despidas de qualquer galhardia.
Por outro lado,posto que defendo que ambas devem reconhecer suas origens existenciais(possibilidades e limites a um só tempo),não posso deixar de notar a semelhança que elas(fé e razão crítica)guardariam entre si naquilo que respeita o cuidado que devem ter ante o risco de virarem crença.Pisaram o mesmo chão ético.Perceberam talvez a mesma verdade.Pergunto-me agora se a razão crítica pode ser absolutamente infalível assim como é a morte,quer dizer,pergunto com que inteireza a razão não é cultura,mas só natureza?O que seria essa razão fora do âmbito da própria linguagem e o que seria tal linguagem para além ou aquém de qualquer traço de cultura?No caso da razão,a infalibilidade não se reduziria a uma questão de referencial?
Que a razão crítica não me pareça infalível é porque penso que ela não seja indiferente à questão da ética pois,se assim fosse,sua infalibilidade teria de assomar como algo intocável ou inquestionável,como sendo a verdade,simplesmente a própria.E que o que seja verdade não se deixa determinar,isto considero infalível.Fé e razão crítica não se devem degradar em pretensão(ou em crença),isto considero necessário.Mas nem uma ou outra parecem capazes de extrapolar a ordem do possível em que se podem instaurar,não podem negar que aí não determinam verdade alguma mas que,no máximo,podem ser determinadas por alguma verdade.
Instigante é,se parto daqui,pensar alguma relação(e não simples semelhança)entre a natureza dessa verdade indeterminável(anterior à cultura certamente,mas como posicioná-la frente a idéia de natureza?)e a da própria razão,da fé...do mundo que existe e de onde assimilamos a própria verdade da existência.
Obrigado e mesmo abraço,
Marcello.

Anônimo disse...

Eu analiso o que o Marcello disse através de um ângulo distinto do seu, Antonio!

Vejo os termos "bárbaro" e "selvagem" usados mais como metáforas (com relação à razão) do que como "possuidores" dela (assim como vc explicou a razão estar com um bárbaro ou com um selvagem).

Acho que o Marcello quis dizer que é exatamente o fato de a verdade ser dúbia que garante à ela a característica de selvagem diante da razão. E não a característica bárbara, com o sentido de verdade única, a la etnocentrista.

BOm, posso estar falando besteiras, mas foi oque eu entendi. E talvez nem tenha ficado tão bem definido pra e nem muito inteligível pra vc!

Enfim, é isso!

abç

Antonio Cicero disse...

Caro Lucas,
Obrigado pelo seu comentário, que me dá ocasião de explicar melhor o que penso. Entendo a sua objeção porque também já pensei assim. Mas hoje me parece que é por um preconceito romântico, anti-racionalista – que, sem que nos demos conta disso, nos persegue há séculos – que a razão nos parece antes anti-natural do que natural. Contudo, o que não vem da cultura é natural; e a razão, transcendendo todas as culturas, logo, não sendo produto de nenhuma delas, é natural ao ser humano. A alternativa a isso seria que ela fosse sobrenatural. Ora, “sobrenatural” se diz justamente do que se pretende que escape à razão.
Lembre-se de que a definição clássica do homem é: “animal racional”. Essa definição não está errada. Nela, “racional” funciona como a diferença específica do homem. O homem é diferente dos outros animais – diferente do resto da natureza conhecida – por ser racional. A razão é precisamente o que lhe permite escapar do instinto ou impulso imediato. Ela é a faculdade que lhe permite se separar do mundo imediato: que lhe permite negar ou criticar as coisas que pertencem ao mundo imediato e, em virtude disso, referir-se a elas, falar delas como de objetos. Ela é, por isso, a condição da linguagem, que, por sua vez, é capaz de potencializar a razão. Assim, a razão, embora natural, é o que permite que o homem se separe da natureza. Por isso, Adorno, por exemplo (em Negative Dialektik, p.285), está sem dúvida certo ao dizer que, embora diferente da natureza, a razão não deixa de ser um momento desta.
É por isso também que Montaigne, seguindo os filósofos estóicos da Antiguidade, estava certo ao falar de “razão natural”. Essa razão natural de que ele fala é a razão crítica e universal. A razão crítica é, porém, capaz de ser instrumentalizada, de modo a se tornar construtiva. Ela é usada para se construírem não só as línguas, mas as artes, as religiões, as teologias, as ideologias etc. Trata-se de construções culturais, artificiais. Afinal, o homem é um ser natural, como a sua razão, mas as coisas que faz, como as coisas que a sua razão faz, são artificiais. Entretanto, uma vez consolidadas e estabelecidas, as realidades artificiais, que são contingentes e relativas, pretendem-se naturais, necessárias, absolutas. E então se opõem a qualquer manifestação da verdadeira razão natural – crítica – que as questione. E é, de fato, necessário um grande esforço para, invertendo o processo pelo qual a razão foi instrumentalizada por uma cultura particular, colocar, ao contrário, os recursos simbólicos – digamos, o vocabulário – dessa cultura a serviço da razão crítica e universal.
Grande abraço,
Antonio Cicero

Lucas Nicolato disse...

Caro Antônio,

Obrigado pela resposta. Acho que essa nova explicação realmente esclarece melhor as coisas. Seus argumentos rebatem as principais objeções que eu poderia fazer à "naturalidade" da razão.

um abraço,
Lucas

Anônimo disse...

comentario de "Barbárie e civilização" em:

http://avidaemdeli.blogspot.com/2007/07/sati-e-um-socilogo-pouco-cosmopolita.html