28.11.20

Philip Larkin: "Forget what I did" / "Esquecer o que": trad. de Rui Carvalho Homem

 



Esquecer o que



Parar o diário

Foi aturdir a memória,

Foi um começo em branco,


Começo que já não cicatriza

Com tais palavras, tais acções,

Que tornaram inóspito o acordar.


Queria-as terminadas,

Despachadas para enterro

E rememoradas


Como as guerras e os invernos

Que faltavam para lá das janelas

De uma infância opaca.


E as páginas vazias?

Se vierem a preencher-se,

Que seja com a observação


De recorrências celestes,

O dia em que vêm as flores,

E quando partem as aves.






Forget What Did


Stopping the diary

Was a stun to memory,

Was a blank starting,


One no longer cicatrized

By such words, such actions

As bleakened waking.


I wanted them over,

Hurried to burial

And looked back on


Like the wars and winters

Missing behind the windows

Of an opaque childhood.


And the empty pages ?

Should they ever be filled

Let it be with observed


Celestial recurrences,

The day the flowers come,

And when the birds go.





LARKIN, Philip. "Forget what I did" / "Esquecer o que". In: Janelas altas. Trad. e org. por Rui Carvalho Homem. Lisboa: Cotovia, 2004.


26.11.20

António Botto: "Quem não ama não vive"

 



Quem não ama não vive


Já na minha alma se apagam

As alegrias que eu tive;

Só quem ama tem tristezas,

Mas quem não ama não vive.


Andam pétalas e folhas

Bailando no ar sombrio;

E as lágrimas, dos meus olhos,

Vão correndo ao desafio.


Em tudo vejo Saudades!

A terra parece morta.

– Ó vento que tudo levas,

Não venhas á minha porta!


E as minhas rosas vermelhas,

As rosas, no meu jardim,

Parecem, assim caídas,

Restos de um grande festim!


Meu coração desgraçado,

Bebe ainda mais licor!

– Que importa morrer amando,

Que importa morrer d'amor!


E vem ouvir bem-amado

Senhor que eu nunca mais vi:

– Morro mas levo comigo

Alguma cousa de ti. 






BOTTO, António. "Quem não ama não vive". In: VIEGAS, Francisco José (org.). Cem poemas para salvar a nossa vida. Lisboa: Quetzal, 2014.

24.11.20

Ferreira Gullar: "Nem aí..."

 



Nem aí...



Indiferente

      ao suposto prestígio literário

e ao trabalho

do poeta 

               à difícil faina

a que se entrega para

inventar o dizível,

sobe à mesa

             o gatinho

             se espreguiça

             e deita-se e

             adormece

                             em cima do poema    





GULLAR, Ferreira. "Nem aí...". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.



22.11.20

Bertolt Brecht: "Vom armen B.B." / "Sobre o pobre B.B.": trad. Antonio Cicero

 



Ontem, por engano, apaguei os poemas de Brecht que tinha no blog. Como gosto muito deles, resolvi republicá-los, pouco a pouco. Aí vai o primeiro, que postei em 2007:

Um dia, no ano passado, ousei traduzir um dos poemas de que mais gosto, de um dos poetas de que mais gosto, Bertolt Brecht. Depois, vi que ele já havia sido traduzido várias vezes, inclusive por dois amigos que admiro muito, Nelson Ascher e Paulo César de Souza, cujas traduções -- é o mínimo que posso dizer -- não são em nada inferiores à minha. É possível até que eu já as tivesse lido; mas é mais provável que não, pois, além de não me lembrar de tê-lo feito, confesso que, normalmente, quando gosto muito de um poema na sua língua original, como desse, deixo de prestar a devida atenção às suas traduções.

De todo modo, o poema é o famoso “Sobre o pobre B.B.”, e o apresento em seguida, primeiro na minha tradução, depois em alemão.

Sobre o pobre B.B.

Eu, Bertolt Brecht, sou das florestas negras.
Minha mãe me trouxe para as cidades
Dentro do ventre. E o frio das florestas
Estará comigo ao me cobrir a laje.

Na cidade de asfalto estou em casa e a caráter,
Com todos os últimos sacramentos
Ministrados: jornais, tabaco, conhaque:
Desconfiado, indolente e enfim satisfeito.

Sou amável com os outros. E visto
Meu chapéu-coco, como todo o mundo.
Digo: são bichos de cheiro esquisito
E digo: e daí? Também sou, no fundo.

Às vezes, nas cadeiras de balanço,
Coloco algumas moças, de manhã,
E digo: em mim vocês têm, eu garanto,
Alguém em quem não podem confiar.

À tarde me reúno com colegas.
Tratamo-nos de “gentleman”, então.
Eles dizem, com os pés à minha mesa:
As coisas vão melhorar. E não pergunto: quando.

Na madrugada cinza, abetos mijam
E piam os pássaros, que são seus vermes.
Na cidade, meu copo se esvazia,
Largo o charuto e durmo um sono leve.

Assentamo-nos, uma geração leviana,
Em prédios que quiséramos indestrutíveis
(assim construímos os arranha-céus da ilha de Manhattan
E as finas antenas sobre o Atlântico a nos divertirem).

Destas cidades ficará quem as atravessou, o vento!
A casa faz feliz quem nela come: quem a esvazia.
Sabemos sermos efêmeros
E que depois de nós o que virá será sem valia.

Nos terremotos vindouros, que não seja meu fado
Deixar por amargura o meu Virginia se apagar,
Eu, Bertolt Brecht, largado nas cidades de asfalto,
Oriundo das florestas negras, no ventre da mãe, tempos atrás.



Vom armen B.B.

Ich, Bertolt Brecht, bin aus den schwarzen Wäldern.
Meine Mutter trug mich in die Städte hinein
Als ich in ihrem Leibe lag. Und die Kälte der Wälder
Wird in mir bis zu meinem Absterben sein.

In der Asphaltstadt bin ich daheim. Von allem Anfang
Versehen mit jedem Sterbsakrament:
Mit Zeitung. Und Tabak. Und Branntwein.
Misstrauisch und faul und zufrieden am End.

Ich bin zu den Leuten freundlich. Ich setze
Einen steifen Hut auf nach ihrem Brauch.
Ich sage: Es sind ganz besonders riechende Tiere
Und ich sage: Es macht nichts, ich bin es auch.

In meine leeren Schaukelstühle vormittags
Setze ich mir mitunter ein paar Frauen
Und ich betrachte sie sorglos und sage ihnen:
In mir habt ihr einen, auf den könnt ihr nicht bauen.

Gegen Abend versammle ich um mich Männer
Wir reden uns da mit “Gentlemen” an.
Sie haben ihre Füße auf meinen Tischen
Und sagen: Es wird besser mit uns. Und ich frage nicht: Wann?

Gegen Morgen in der grauen Frühe pissen die Tannen
Und ihr Ungeziefer, die Vögel, fängt an zu schrein.
Um die Stunde trink ich mein Glas in der Stadt aus und schmeiße
Den Tabakstummel weg und schlafe beunruhigt ein.

Wir sind gesessen, ein leichtes Geschlechte
In Häusern, die für unzerstörbare galten
(So haben wir gebaut die langen Gehäuse des Eilands Manhattan
Und die dünnen Antennen, die das Atlantische Meer unterhalten).

Von diesen Städten wird bleiben: der durch sie hindurchging, der Wind! Fröhlich machet das Haus den Esser: er leert es.
Wir wissen, daß wir Vorläufige sind
Und nach uns wird kommen: nichts Nennenswertes.

Bei den Erdbeben, die kommen werden, werde ich
hoffentlich Meine Virginia nicht ausgehen lassen durch Bitterkeit
Ich, Bertolt Brecht, in die Asphaltstädte verschlagen
Aus den schwarzen Wäldern in meiner Mutter infrüher Zeit.

 



BRECHT, Bertolt. Vom armen B.B." / "Sobre o pobre B.B". In: BENTLEY, Eric (org.). Poems by Bertolt Brecht / Gedichte von Bertolt Brecht. New York: Grove, 1967.

20.11.20

Casimiro de Brito: "10"

 



10


Quem foi pedra e peixe antes de ser pássaro,

quem foi barro e árvore antes de ser nuvem,

quem foi homem antes de ser mulher

e mulher antes de ser homem,

pai antes de ser filho e vagido

antes de ser música

transporta um saber anterior

ao dom da palavra.




BRITO, Casimiro de. "10". In:_____. Arte de bem morrer. Lisboa: Roma Editora, 2007.


18.11.20

Derek Walcott: "Midsummer, Tobago" / "Meio do verão, Tobago": tradução por Nelson Ascher

 



Meio do verão, Tobago


Vastas praias lapidadas pelo sol.

Calor branco.
Um rio verde.

Uma ponte,
palmeiras crestadas, amarelas

da casa que, na sesta estival,
cochila agosto afora.

Dias que retive,
dias que perdi,

dias que, como filhas, crescem para fora
da enseada dos meus braços.







Midsummer, Tobago



Broad sun-stoned beaches.

White heat.
A green river.

A bridge,
scorched yellow palms

from the summer-sleeping house
drowsing through August.

Days I have held,
days I have lost,

days that outgrow, like daughters,
my harbouring arms.






WALCOTT,  Derek. "Midsummer, Tobago" / "Meio do verão, Tobago". In: ASCHER,  Nelson (organização e tradução). Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.


16.11.20

Antonio Cicero: "Falar e dizer"

 



Falar e dizer

                                                       a Waly Salomão

 

Não é possível que portentos não tenham ocorrido

Ou visões ominosas e graves profecias

Quando nasci.

Então nasce o chamado

Herdeiro das superfícies e das profundezas então

Desponta o sol

E não estremunha aterrado o mundo?

Assim à idade da razão

Vazei os olhos cegos dos arúspices e,

Fazendo rasos seus templos devolutos,

Desde então eu designo no universo vão

As coisas e as palavras plenas.

Com elas

Recôndito e radiante ao sopro dos tempos

Falo e digo

Dito e decoro

O caos arreganhado a receber-me incontinente.






CICERO, Antonio. "Falar e dizer". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1966.

14.11.20

Paulo Sabino: "Meu mundo, minha moeda"

 




Meu mundo, minha moeda



meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale se agrega

o valor e a condição que me cabem:

ser quem decide molde e cor da roupagem


meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale a entrega

quando vestido o que trago na bagagem:

nada às escondidas na hora da triagem


meu corpo, minha regra:

porque a vida só vale a quimera

daquilo que me alimenta de coragem:

seja eu o espelho da minha imagem





SABINO, Paulo. "Meu mundo, minha moeda". In:_____. Um para dentro todo exterior. Rio de Janeiro: Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda., 2018. 


11.11.20

Ivan Junqueira: "O poema"

 



O poema



Que será o poema,

essa estranha trama

de penumbra e flama

que a boca blasfema?


Que será, se há lama

no que escreve a pena

ou lhe aflora à cena

o excesso de um drama?


Que será o poema:

uma voz que clama?

Uma luz que emana?

Ou a dor que o algema?




JUNQUEIRA,  Ivan. "O poema". In:_____. "A sagração dos ossos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Record, 1999. 

9.11.20

José Régio: "Momento"

 



Momento


Quem, nos meus olhos ardentes,

Na minha testa cansada,

Perpassa os dedos clementes,

Poisa a mão fresca orvalhada...?


Talvez a brisa da tarde,

Que passa, e não faz alarde...


Talvez a brisa da tarde!


Sim, só a brisa; e mais nada.







RÉGIO, José. "Momento". In:_____. Antologia. Org. por Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.











7.11.20

Giuseppe Ungaretti: "Silenzio" / "Silêncio": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Silêncio



Conheço uma cidade 

que cada dia se enche de sol 

e tudo é arrebatado nessa hora 


Dela parti uma tarde 


No coração perdurava o limar 

das cigarras 


Do navio 

laqueado de branco 

vi 

minha cidade sumir 

deixando 

por um instante 

no ar toldado um abraço de luzes 

suspensas






Silenzio


Conosco una città

che ogni giorno s’empie di sole

e tutto è rapito in quel momento


Me ne sono andato una sera


Nel cuore durava il limio

delle cicale


Dal bastimento

verniciato di bianco

ho visto

la mia città sparire

lasciando

un poco

un abbraccio di lumi nell’aria torbida

sospesi.







UNGARETTI, Giuseppe. "Silenzio" / "Silêncio". In:_____. "Il porto sepolto" / "O porto sepulto". In: Poemas. Org. e trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti. São Paulo: Edusp, 2017.

1.11.20

Jorge de Sousa Braga: "Mississipi"

 


Mississipi


Há muito tempo que não saio de casa (a não ser para ir ao 

                                              supermercado ou à geladaria)

Se soubesses a confusão de rios que vai no meu quarto

Estou morto por te apresentar o Mississipi

Estou morto que venhas estou morto por ouvir

o som irritante da campainha da entrada

Há muito tempo que não saio de casa

Se soubesses a vontade que tenho de passear

no interior da tua orelha






BRAGA, Jorge de Sousa. "Mississipi". In:_____. Boca do Inferno. Porto: Gota de Água, 1987.