18.11.19

Antonio Cicero: "Amazônia"





Amazônia

Não queira, Silviano, que eu cante a selva
amazônica ou mesmo o rio Amazonas,
cujo silêncio a fluir às minhas costas
no entanto escuto às vezes, imerso em trevas.
Em minhas veias, é certo, corre o sangue
selvagem das amazonas e os meus traços
caboclos traem os maranhões; mas trago,
como herança dos ancestrais, não saudade
da floresta, mas da cidade almejada.
A Amazônia quer versos heroicos e épicos,
não os meus líricos, eróticos, céticos
e tão frívolos que nem sequer reparam
se pararam nas palavras ou nas coisas
e não raro tomam aquelas por estas
e a árvore pelas florestas e aquela
pela palavra e por fim ficam nas moitas.
É verdade que me fascinam os rios
paradoxais e a figura de Orellana,
expulso por amazonas emboscadas
muito tempo entre as florestas e os símbolos,
a cultuar Ares, o terrível deus
da guerra: terrível sim, porém não tanto
quanto Afrodite, que uma vez quis prová-lo
no leito e o domou e o dobrou e o comeu;
nem tão tremendo quanto Hefesto, o marido
da deusa, deus das técnicas e do fogo,
que, nem belo nem rápido, sendo coxo,
agarrou o adúltero Ares, o arisco,
e a dourada Afrodite na própria cama,
sobre a qual trançara inquebrantáveis fios
aracnídeos, deixando os amantes fixos
nessa fração de segundo que sonhavam
perpetuar; e que ao ser perpetuada,
virou tortura: pois como ser repouso
o gozo, movimento vertiginoso,
cheio de fervor e suor, rumo ao nada?
Convidado por Hefesto, todo o Olimpo
assistiu ao espetáculo do enlace
de Ares e Afrodite e ecoou toda a tarde
a gargalhada dos deuses. A pedido
do deus do mar, porém, Hefesto os soltou.
Ares, humilhado, fugiu para a frígida
Trácia, e ela, com um sorriso, para a ilha
de Chipre, cercada de um mar furta-cor,
onde as graças lhe prepararam um banho
perfumado, esfregaram à sua pele
o óleo ambrosíaco com que a tez dos deuses
esplende, vestiram-lhe um robe... e reparo:
terríveis são, mais do que os deuses, Demódoco
a flagrar a cena inteira com seu estro,
e Homero, a nos prender em teias de versos
entre a Feácia e o Olimpo. Recordo-os
e esqueço a que ponto me perdi da selva
dos meus ancestrais. Que não me guardem mágoa
nossas amazonas. Filho da diáspora
e dos encontros fortuitos, o poema
me esclarece: toda origem é forjada
no caminho cujo destino é o meio.
Feito o Amazonas, surjo do deserto,
mas dos afluentes eu escolho as águas.








CICERO, Antonio. "Amazônia". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

2 comentários:

Fabiana Gomes disse...

Antônio Cícero, boa tarde!
Belíssimo poema, pertinente ao momento e ao mesmo tempo, pela grandiosidade, lembra os poemas de Gonçalves Dias.
Adriana Calcanhotto deve ter gostado.
Abraços.

Antonio Cicero disse...

Obrigado, Fabiana!

Beijos