Amazônia
Não queira, Silviano, que
eu cante a selva
amazônica ou mesmo o rio Amazonas,
cujo silêncio
a fluir às minhas
costas
no entanto
escuto às vezes, imerso
em trevas.
Em minhas
veias, é certo,
corre o sangue
selvagem das amazonas
e os meus traços
caboclos traem os maranhões; mas
trago,
como herança
dos ancestrais, não
saudade
da floresta,
mas da cidade
almejada.
A Amazônia quer
versos heroicos e épicos,
não os meus
líricos, eróticos,
céticos
e tão frívolos que nem sequer reparam
se pararam nas palavras
ou nas coisas
e não raro tomam aquelas por
estas
e a árvore
pelas florestas e aquela
pela palavra
e por fim
ficam nas moitas.
É verdade que me fascinam
os rios
paradoxais e a figura
de Orellana,
expulso por amazonas emboscadas
há muito
tempo entre
as florestas e os símbolos,
a cultuar Ares, o terrível
deus
da guerra:
terrível sim,
porém não
tanto
quanto Afrodite, que
uma vez quis prová-lo
no leito
e o domou e o dobrou e o comeu;
nem tão tremendo quanto
Hefesto, o marido
da deusa, deus
das técnicas e do fogo,
que, nem belo nem rápido, sendo coxo,
agarrou o adúltero
Ares, o arisco,
e a dourada Afrodite
na própria cama,
sobre a qual
trançara inquebrantáveis fios
aracnídeos, deixando os amantes
fixos
nessa fração
de segundo que
sonhavam
perpetuar; e que
ao ser perpetuada,
virou tortura:
pois como ser repouso
o gozo, movimento vertiginoso,
cheio de fervor
e suor, rumo
ao nada?
Convidado por
Hefesto, todo o Olimpo
assistiu ao espetáculo
do enlace
de Ares
e Afrodite e ecoou toda a tarde
a gargalhada
dos deuses. A pedido
do deus
do mar, porém,
Hefesto os soltou.
Ares, humilhado, fugiu para
a frígida
Trácia, e ela,
com um
sorriso, para
a ilha
de Chipre, cercada
de um mar
furta-cor,
onde as graças
lhe prepararam um
banho
perfumado, esfregaram à sua
pele
o óleo
ambrosíaco com que
a tez dos deuses
esplende, vestiram-lhe um
robe... e reparo:
terríveis são, mais do que os deuses, Demódoco
a flagrar a cena
inteira com
seu estro,
e Homero, a nos
prender em teias
de versos
entre a Feácia e o Olimpo. Recordo-os
e esqueço a que
ponto me
perdi da selva
dos meus
ancestrais. Que
não me
guardem mágoa
nossas amazonas.
Filho da diáspora
e dos encontros
fortuitos, o poema
me esclarece: toda
origem é forjada
no caminho
cujo destino
é o meio.
Feito o Amazonas,
surjo do deserto,
mas dos afluentes
eu escolho as
águas.
CICERO, Antonio. "Amazônia". In:_____.
Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.