29.11.19

José Almino: "O descampado do ócio"




O descampado do ócio


o acanhado das ruas
e das alpercatas

a calha e o lodo
e o assento seboso

o chão de fuligem
e o árido cerrado

a nudez do quintal
 e o musgo e a cisterna

o sol e o sol
e o sol e o mormaço

o tédio feroz
e a dor do inútil

a vida prescrita
e a vida acabada





ALMINO, José. "O descampado do ócio". In:_____. Encouraçado e cosido dentro da pele. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.

27.11.19

Castro Alves: "Os três amores"




Os três amores


I
Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes...
—Tu és Eleonora...

II
Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... Teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem...seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
—E tu és Julieta...

III
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és Júlia, a Espanhola!...





ALVES, Castro. "Os três amores". In:_____. Espumas flutuantes. Cotia: Ateliê Editorial, 1998.

23.11.19

Ferreira Gullar: "Flagrante"




Flagrante


o meu gato
na cadeira
se coça

corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela
estou eterno





GULLAR, Ferreira. "Flagrante". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

20.11.19

Margarida Patriota: "Luto"





Luto
Em horas pluviosas
Langorosas, baudelairianas 
Recolho-me dócil
Ao boudoir do meu spleen
Beijo a esfinge no console
Bocejo solilóquios no divã
No leque de pavão afago plumas
Aspiro com volúpia buquês murchos
Ao tilintar da sineta
Chávenas de porcelana flutuam
São os meus mortos
A tomar chá comigo






PATRIOTA, Margarida. "Luto". In:_____. Tempo de delação. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2019.

18.11.19

Antonio Cicero: "Amazônia"





Amazônia

Não queira, Silviano, que eu cante a selva
amazônica ou mesmo o rio Amazonas,
cujo silêncio a fluir às minhas costas
no entanto escuto às vezes, imerso em trevas.
Em minhas veias, é certo, corre o sangue
selvagem das amazonas e os meus traços
caboclos traem os maranhões; mas trago,
como herança dos ancestrais, não saudade
da floresta, mas da cidade almejada.
A Amazônia quer versos heroicos e épicos,
não os meus líricos, eróticos, céticos
e tão frívolos que nem sequer reparam
se pararam nas palavras ou nas coisas
e não raro tomam aquelas por estas
e a árvore pelas florestas e aquela
pela palavra e por fim ficam nas moitas.
É verdade que me fascinam os rios
paradoxais e a figura de Orellana,
expulso por amazonas emboscadas
muito tempo entre as florestas e os símbolos,
a cultuar Ares, o terrível deus
da guerra: terrível sim, porém não tanto
quanto Afrodite, que uma vez quis prová-lo
no leito e o domou e o dobrou e o comeu;
nem tão tremendo quanto Hefesto, o marido
da deusa, deus das técnicas e do fogo,
que, nem belo nem rápido, sendo coxo,
agarrou o adúltero Ares, o arisco,
e a dourada Afrodite na própria cama,
sobre a qual trançara inquebrantáveis fios
aracnídeos, deixando os amantes fixos
nessa fração de segundo que sonhavam
perpetuar; e que ao ser perpetuada,
virou tortura: pois como ser repouso
o gozo, movimento vertiginoso,
cheio de fervor e suor, rumo ao nada?
Convidado por Hefesto, todo o Olimpo
assistiu ao espetáculo do enlace
de Ares e Afrodite e ecoou toda a tarde
a gargalhada dos deuses. A pedido
do deus do mar, porém, Hefesto os soltou.
Ares, humilhado, fugiu para a frígida
Trácia, e ela, com um sorriso, para a ilha
de Chipre, cercada de um mar furta-cor,
onde as graças lhe prepararam um banho
perfumado, esfregaram à sua pele
o óleo ambrosíaco com que a tez dos deuses
esplende, vestiram-lhe um robe... e reparo:
terríveis são, mais do que os deuses, Demódoco
a flagrar a cena inteira com seu estro,
e Homero, a nos prender em teias de versos
entre a Feácia e o Olimpo. Recordo-os
e esqueço a que ponto me perdi da selva
dos meus ancestrais. Que não me guardem mágoa
nossas amazonas. Filho da diáspora
e dos encontros fortuitos, o poema
me esclarece: toda origem é forjada
no caminho cujo destino é o meio.
Feito o Amazonas, surjo do deserto,
mas dos afluentes eu escolho as águas.








CICERO, Antonio. "Amazônia". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

16.11.19

Jacques Prévert: "Le grand homme" / "O grande homem": trad. de Silviano Santiago




O grande homem


No ateliê do talhador de pedra

onde o encontrei

lhe tiravam medidas

para a posteridade.






Le grand homme


Chez un tailleur de pierre

où je l’ai rencontré

il faisait prendre ses mesures

pour la postérité






PRÉVERT, Jacques. "Le grand homme" / "O grande homem". In:_____. Poemas. Trad. de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

14.11.19

Lêdo Ivo: "O espinho"




O espinho


Caluniado espinho na haste da rosa,
a ninguém ferirás nesta manhã
em que a rosa vermelha, a rosa airosa
oferta a sua vida à vida vã.

Neste dia de sol tudo é passagem.
E mesmo a eternidade é um caminho,
coito de luz e sombra, na viagem
entre o dia e a noite, a rosa e o espinho.




IVO, Lêdo. "O espinho". In:_____. "Plenilùnio". In:_____. Poesia completa: 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

12.11.19

Paulo Henriques Britto: "Spleen 2 ½"




Spleen 2 ½


Não se fazem mais lembranças
como as de antigamente.
Agora a memória apenas
acumula indiferente

o que logrou atrair
a atenção por um instante
e amarra tudo com o mesmo
indefectível barbante

e o joga numa gaveta
cronicamente emperrada,
a qual só será aberta
na hora errada.






BRITTO,  Paulo  Henriques. "Spleen 2 ½". In:_____. Nenhum mistério. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

10.11.19

Sandra Niskier Flanzer: "Por si"





Por si


Quem quiser passar pela vida,
que aprenda com o sol:
ele é fogo: por força de si, se impõe.
Mas nasce e morre todos os dias,
ilumina o que vinga e depois esquece
e, a um só tempo, sabe sumir e se pôr.







FLANZER, Sandra Niskier. "Por si". In:_____. O quinto (dos infernos). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019. 

7.11.19

Diego Mendes Sousa: "Procurador de enigmas"




Procurador de enigmas

Parei o tempo.
Ele não parou por mim!
[tão de repente tão leve sono no imponderável (?)]
Nem poderia paralisar-se,
porque fiquei no tempo
como carrossel ilhado
[querendo não passar
querendo não acabar
no enigma do sonho inviolável (?)]

O tempo não parou para mim!
Ele não aparou os seus fantasmas
na vivenda dos mistérios
sempre em oferenda.

Procurador do seu destino miserável,
o tempo enterrou-se em mim.




SOUSA, Diego Mendes. "Procurador de enigmas". In:_____. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá, SP Penalux, 2019.

5.11.19

Jorge de Sousa Braga: "Dióspiros"




Dióspiros


Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder




BRAGA, Jorge de Sousa. "Dióspiros". In:_____. "O segredo da púrpura". In:_____. O poeta nu. Porto: Assírio & Alvim, 2007. 

3.11.19

Paul Verlaine: "Colloque sentimental" / "Colóquio sentimental": trad. Guilherme de Almeida




Colóquio sentimental


No velho parque frio e abandonado
Duas formas passaram lado a lado.

Olhos sem vida já, lábios tremendo,
Apenas se ouve o que elas vão dizendo.

No velho parque frio e abandonado,
Dois vultos evocaram o passado.

– Lembras-te bem do nosso amor de outrora?
– Por que é que hei de lembrar-me disso agora?

– Bate sempre por mim teu coração?
Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.


– Ah! aqueles dias de êxtase indizível
Em que as bocas se uniam! – É possível.

– Como era azul o céu, e grande, o sonho!
– Esse sonho sumiu no céu tristonho.

Assim por entre as moitas eles iam,
E só a noite escutou o que diziam.





Colloque sentimental


Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux formes ont tout à l'heure passé.

Leurs yeux sont morts et leurs lèvres sont molles,
Et l'on entend à peine leurs paroles.

Dans le vieux parc solitaire et glacé
Deux spectres ont évoqué le passé.

- Te souvient-il de notre extase ancienne?
- Pourquoi voulez-vous donc qu'il m'en souvienne?

- Ton coeur bat-il toujours à mon seul nom?
Toujours vois-tu mon âme en rêve? - Non.

Ah ! les beaux jours de bonheur indicible
Où nous joignions nos bouches ! - C'est possible.

- Qu'il était bleu, le ciel, et grand, l'espoir !
- L'espoir a fui, vaincu, vers le ciel noir.

Tels ils marchaient dans les avoines folles,
Et la nuit seule entendit leurs paroles.




VERLAINE, Paul. "Colloque sentimental" / "Colóquio sentimental". In: ALMEIDA, Guilherme de (org e trad.). Poetas de França. São Paulo: Babel, s.d.




1.11.19

Ricardo Silvestrin: "O último poema"




O último poema


Meu último poema talvez seja este.
Como saber quanto tempo ainda tenho,
se não há relógio, calendário, mapa
que digam o dia, o local, a hora exata
da morte que desde sempre me aguarda?

Me espreita na esquina, de tocaia,
trama uma hora branda, com cabelo branco,
pele enrugada e um ar de dever cumprido?

Já que esse é o enigma que jaz oculto,
escrevo cada poema como se fosse o último.





SILVESTRIN, Ricardo. "O último poema". In:_____. Sobre o que. São Paulo: Patuá, 2019.