4.4.10
O que é poesia?
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 3 de abril:
O que é poesia?
O POETA Edson Cruz perguntou "O que é poesia?" a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta diferente, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a poesia. O resultado se transformou num livro.
Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura.
Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do discurso escrito, em oposição ao oral. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:
1. Enquanto o discurso oral é efêmero, o discurso escrito tem uma permanência indefinida;
2. enquanto o discurso oral é fluido e aberto, isto é, está sempre em movimento, como a vida, e sujeito a mudar a todo instante, o discurso escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança;
3. enquanto o discurso oral se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o discurso escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.
Pois bem, embora todo discurso tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.
Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o destino não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz respeito à primeira característica do discurso escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira característica, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de significar a permanência plena ou concreta do seu texto.
Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada igualmente por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é bem assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu como as transformações pelas quais ele passou antes de ficar pronto.
Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros como numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer como se fosse um desenho animado. Ele pareceria, então, fluido como uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a adicionar fotogramas a essa fita, ele pareceria também aberto como uma fala.
Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro ou útil, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.
Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor -atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos, ou de terem qualquer outra função prática. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É assim que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber "dizer muitas mentiras parecidas com a verdade".
Pois bem, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz respeito a um poema, parece-me em geral menos apropriado falar de "tradução" do que, como dizia o poeta Haroldo de Campos, de "transcriação".
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19 comentários:
Cícero, não creio ter entendido tudo o que há para entender em seu belo texto, mas, do que entendi, ou penso ter entendido, o poema, bem realizado, é a própria medida do seu valor e significado, mas como o poeta sabe que encontrou a medida? qual é o seu critério antes do poema terminado? Parabéns pelo texto!
Paulo Henrique,
João Cabral dizia ouvir um clique, quando o poema ficava pronto. "Eu percebo que o poema está acabado, que já mexi nele de todas as formas possíveis, não há mais como trabalhá-lo. Isso [o clique] é a conclusão, vem mesmo no fim".
Não há critério externo porque o próprio poema é o critério que o poeta constrói, o je ne sais quoi que ele alcança a partir de tudo o que que sabe: a quinta-essência do que ele "sabe".
Ah! então João Cabral estava sempre a procurar o clique, como um chamado, o fim desde o começo?!
mas, me pareceu meio solitário, bom domingo!
E Antonio Maxhado dizia que traduzir poesia é «trocar de rosa» - nome que Eugénio de Andrade deu ás auas traduções num pequeno b´volume assim chamado.E eu acho mesmo que traduzir é esse trocar de rosa...
Palavras de finas estampas. Boa, Cicero!
Olá, Cicero.
concretamente todos
os poemas
tem "pele" própria.
assim é que se lê um poema - sendo-o.
Adorei a leitura.
Abraços.
Jefferson
O terceiro ponto colocado me lembrou o que um professor da faculdade sempre dizia aos que tinham vergonha de ler seus textos ou deixar que outros lessem: "O texto só está pronto, terminado, quando lido". Acho que a ideia é a mesma, um texto não lido ainda está mais próximo da intenção que do concreto, ainda que escrito.
Já o processo de tradução de poemas é algo que sempre me intrigou. Como traduzir uma ambiguidade ou uma rima que só acontecem na língua original? Existe alguma técnica? São válidas notas de rodapé?
É algo que sempre achei muito legal aqui no blog: o cuidado em publicar sempre nas duas línguas. Ainda que a "natal", para mim, na maioria das vezes, não diga nada... rs.
Abraços!!
É Lá...
Lá onde a poesia se pronuncia
Mágica pulsão que canta,
É preciso dizer seu nome alto,
Mato, calcário, flor de planta,
Lá onde o mote sara a mialgia
Minimalista arte da escrita,
É preciso viver seu pesadelo,
Pêlo, pandeiro, marguerita.
É lá onde vovô Geppetto aluou,
Num boneco que é gente e fala,
Que é preciso mala pra ver a rima,
Clima, botina, boca que rala.
Ou então, se cala e jaz aflita,
e versa, com falhas, esta pirralha.
Tudo lúdico, capenga,
É senha, cabala, bala,
Navalha,chão de palha e
Pimba!dá pena...
Pôr grilhões na poesia.
Nina Araújo.
(publicado no Luso-Poemas)
beijos poeta querido!
Querido Cicero,
seu texto e o argumento da escritura como possível definição do que é poesia, levou-me a considerar algumas questões que julgo interessante, a respeito das quais gostaria de saber sua opinião:
1: o grau elevado de escritura não definiria a poesia dentro de um contexto específico, o do livro, moderno por excelência? não estaria fora dessa definição a longa e específica tradição de poesia oral que perpassa não somente a poesia antiga, bem como a medieval, quando se criaram e consolidaram os temas em torno dos quais a poesia até hoje orbita?
2: não seria um traço dessa tradição oral, necessariamente movente e variante, se considerarmos os estudos, por exemplo, de Zumthor (sobretudo, A Letra e a voz) ainda presente na escrita, uma vez que a tradução, como transcriação, implica necessariamente a traição, ou seja, a variação, o não fixo, a fluência?
Não sei, sinceramente, se são pertinentes essas questões, mas, como em geral costumo concordar com o argumento da absoluta suficiência dos elementos como definição do objeto artístico, que você expõe com tanta clareza, às vezes abalam-me as convicções essas considerações a respeito da tradição oral.
Abraço,
Marcelo Diniz
cicero,
que coincidência!!
comprei este exato livro na semana passada e publicarei as respostas suas mais as do affonso romano de sant'anna, augusto de campos, carlito azevedo e ricardo silvestrin no "prosa em poema", na quarta-feira.
adorei o livro porque ele sugere uma série de leituras importantes para os poetas entrevistados.
beijO!!
Cicero,
O máximo! Parabéns!
Abração,
Adriano Nunes.
Antonio,
grato pela menção ao livro no texto e pela disposição sincera da reflexão.
Cicero,
Fiquei emocionado ao ler o seu texto! Que clareza! Que uso perfeito da razão! Parabéns!
Um poema:
"Do alto ao mar" - Para Herbeth Vianna.
Naquele dia o céu
Talvez tivesse se encantado
Com o mais leve ballet
Do ultraleve
E quisesse
Só pra si
O mergulho mais denso
Nas águas do Rio, deixando
Vestígios de dor
No mar,
Viva tragédia,
Lágrimas
Num dia de Sol,
Vácuos marítimos.
Beijo bom,
mateus.
Edson,
obrigado a você, pelo livro e pelas conversas que provoca nos lançamentos.
Abraço
Querido Marcelo,
Obrigado pelas interessantes ponderações, que são inteiramente pertinentes. Penso o seguinte sobre elas:
1: Naturalmente, o grau de escritura se refere à poesia escrita. Contudo, mesmo na cultura oral primária, os poemas se pretendem uma espécie de protoescrita. Não é preciso ir tão longe quanto Havelock, que neles vê a enciclopédia da cultura oral. Basta observar que a palavra que Homero usa para denominar os seus poemas é “epe” ou “épea”, plurais de “epos”. “Epos” é todo discurso reiterável, como vocábulos, provérbios, canções, rezas, pragas, mensagens etc. Ora, nas culturas orais primárias, a reiterabilidade desempenha algumas das funções que atribuimos à escrita. É verdade que os poemas longos, como os homéricos, não são simplesmente reiterados, mas modificados, pelo aedo; mas isso é uma descoberta moderna, devida aos aparelhos de gravação de som. A pretensão do próprio aedo, como mostram Parry e Lord, é de estar a reiterar o mesmo discurso, que atribui, no final das contas, a alguma divindade. Esses assuntos constituem, aliás, o tema do meu ensaio “Epos e muthos em Homero”, do livro Finalidades sem fim.
2: A tradução ou transcriação não substitui o poema traduzido ou transcriado, mas constitui um outro poema escrito. Ainda que achemos a tradução melhor que o traduzido, este não deixará de existir, como é o caso quando a versão final de um poema toma o lugar do rascunho triturado.
Abraço
dia desses vi na internet uma entrevista que o drummond deu pra leda nagle nos anos oitenta, e li parte da que ele concedeu pro geneton morais neto. em resumo, ele dizia que o tempo não o confirmaria como poeta, que seus textos ficariam esquecidos. que um bom poeta, muitas das vezes, passa desabercebido, enquanto outros, da moda, tendem a publicar textos que o tempo descartará.
o mais bacana de escrever - eu acho - é justamente essa ludicidade com o tempo.
às vezes lemos um poeta que foi bom em 1990, por exemplo, e que hoje está inlível.
às vezes o prórpio poeta não houve o clique do seu texto; mas vem o tempo (impiedoso) e o revela, muito tempo depois, para leitores nascidos muito após a sua morte.
acho que com o cazuza aconteceu um pouco isso; as pessoas foram se dando conta, com o tempo, que estavam diante de um poeta.
por fim, sigo escrevendo, atrás desse clique que não vem...
Concordo, adorei a reflexão Cícero.
Porém acrescento também que a poesia uma vez escrita tem a função de; despertar emoção no leitor, ou inspirá-lo a refletir e agir em sua vida.
Pelo menos pra mim, os poemas mais marcantes foram os que me causaram estes impactos.
bjss
Ivander,
Cícero, o que você quer dizer por "formas puras" de poesia ?
Lukinhas,
O poema é forma no sentido em que uma palavra é forma. Isso quer dizer que, como uma palavra, o poema não se confunde com nenhuma das suas instâncias, embora não exista se não tiver ao menos uma instância.
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