18.4.10
Antony Flew e Deus
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 16 de abril:
Antony Flew e Deus
HÁ ALGUNS dias faleceu, aos 87 anos, o filósofo inglês Antony Flew. Tendo sido, quase toda a vida, um vigoroso defensor do ateísmo, Flew adquiriu, já na velhice, notoriedade fora do ambiente acadêmico, ao declarar que se tornara deísta. Os deístas, como se sabe, não acreditam no Deus que as religiões positivas descrevem, mas num deus cujo conceito derivam inteiramente da razão e que, depois de criar o mundo, dele se ausentou. É o que Pascal chamava de "deus dos filósofos", em oposição ao Deus de Abraão. Tanto Voltaire quanto, por exemplo, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, que Flew citava, consideravam-se deístas.
Embora, enquanto deísta, Flew rejeitasse o cristianismo, certos defensores do design inteligente, como Roy Abraham Varghese, e evangélicos como Bob Hostetler ficaram entusiasmados com o "ateu que virara a casaca". Varghese chegou a assinar um livro em parceria com Flew, intitulado "Há um Deus: de que Modo o Mais Notório Ateísta do Mundo Mudou de Ideia".
Na verdade, Flew confessou ao jornalista Mark Oppenheimer – que preparava um artigo sobre ele para a revista do "New York Times"– que o livro tinha sido escrito por Varghese. Segundo Flew, quando Varghese lhe mostrou o livro pronto, ele o aprovou, pois se considerava "velho demais para esse tipo de coisa", isto é, para escrever.
É melancólica a história, contada por Oppenheimer no artigo citado, da exploração da senilidade de Flew. Mas quero falar aqui de algo mais pitoresco e estimulante, que é o ensaio "Teologia e Falsificação", que Flew escreveu no auge dos seus poderes mentais e que merece ser mais conhecido no Brasil.
Ele começa com uma modificação da "Parábola dos Jardineiros", do filósofo inglês John Wisdom. Trata-se do seguinte. Dois exploradores chegam a uma clareira florida. Um deles acha que deve haver algum jardineiro cuidando da clareira, mas o outro não concorda. Para resolver a questão, montam guarda, mas não aparece ninguém. O explorador que crê na existência de um jardineiro supõe então que este seja invisível. Para testar essa hipótese, fazem uma cerca de arame farpado em torno da clareira, e põem cães a guardá-la. Nada acontece, porém.
Contudo, o crente não desiste. Segundo ele, o jardineiro pode ser invisível, intangível, insensível a choques elétricos e inodoro. E aí o cético, perdendo a paciência, lhe pergunta: "Em que é que um jardineiro invisível, intangível e imperceptível seria diferente de um jardineiro imaginário, ou de um jardineiro inexistente?".
Nesse ponto, Flew observa que afirmar uma coisa equivale a negar a negação dessa coisa. Toda afirmação implica a negação de tudo o que nega a verdade dela. Por exemplo, a proposição "todos os cisnes são brancos", que era considerada verdadeira séculos atrás, implica a proposição "nenhum cisne é não branco". Quando foram descobertos cisnes pretos na Austrália, revelou-se que era falsa a proposição "todos os cisnes são brancos".
Se o enunciado "todos os cisnes são brancos" tivesse sido compatível com a descoberta de que alguns cisnes são pretos, então ele simplesmente jamais teria realmente significado ou afirmado coisa nenhuma, pois daria no mesmo afirmá-lo ou negá-lo. Para que significasse e afirmasse alguma coisa, era necessário que ele pudesse ter sido negado pela descoberta de cisnes não brancos.
Se não há nada que uma pretensa proposição negue, então ela nada significa; logo, nada afirma: não passa de uma pseudoproposição. Ora, Flew afirma que assim são proposições tais como "Deus existe", "Deus nos ama como um pai ama um filho" etc. Segundo ele, não há nenhum acontecimento que possa fazer os religiosos que as afirmam voltarem atrás e confessarem: "No final das contas, Deus não existe"; ou: "De fato, Deus não nos ama".
Digamos que vemos uma criança morrendo de um câncer inoperável na garganta. Seu pai terrestre fica desesperado, mas seu pai divino não parece se importar. O religioso que nos garantiu que Deus nos ama provavelmente dirá algo como "o amor de Deus não se confunde com o humano" ou "os desígnios de Deus são inescrutáveis". E Flew pergunta (como o explorador que duvida da existência do jardineiro): "Mas então exatamente o que teria que acontecer para que tivéssemos o direito lógico de dizer "Deus não nos ama" ou mesmo "Deus não existe'?".
Caso nos respondam que nada que aconteça seria capaz de fazer isso, então, conclui Flew, na verdade enunciados tais como "Deus existe" nada significam ou afirmam.
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“La liste de mes amis disparus est longue. Elles s’allonge de jour en jour. J’en viens, et n´en suis pas fier, à anticiper les futurs morts. J. et S. sont nés la même année que moi. Me précéderont-ils ou m’em irai eux? Serai-je leur ami disparu?
Les amis disparus me rendent visite dans nombre de mes rêves. Je les accueille avec um mélange de bonheur, celui de les retrouver, et d’une immense déception car je pressens à quelques signes, dans le clair-obscur de la nuit, qu’ils s’apprêtent à y retourner. Ils ne font que passer. Nous échangeons um bref salut.
Même ceux d’entre eux qui m’ont souvent irrité, avec qui je me suis fâché, sont là, souriants, bienveillants. Alors, je me dis que l’amitié est plus forte que la mort, qu’elle survit à la séparation, à l’ausence, à moins qu’une certaine qualité d’absence ne soit au coeur de l’amitié. La présence de l’ami est discrète, elle n’est jamais intrusive, possessive.”
Pontalis, J-B. “Les amis disparus”, in. Le songe de monomotapa. Gallimard: Paris, 2009.
De alguma forma não lógica, a ausência de um amigo se faz presente, de alguma forma, nossa própria ausência se faz presença, senão, apenas, na forma de tocar a vida. Agostinho sugere no Da musica que podemos seguir o mesmo passo do amigo, nos momentos sonoros e nos longos intervalos silenciosos. Importante é seguir junto, com ritmo e medida, com poesia: “Vem comigo, no caminho eu explico” (Cazuza).
Texto bonito Cícero, faz pensar por muitas vias. Em São Paulo, cogite dar uma passada no Balcão, ou na Dida, logo ao lado e bem perto do B_arco,
Abraço.
Uma no prego, outra na fechadura; nem mesmo o Lula escapa da Democracia Ideal, onde se pode escolher entre 2 alternativas: Deus, existe ou não existe, votem!
E, após o escrutínio, se Deus existe ou não, o que importa além da própria vida ideal para si, para o grupo ou banda tocando no momento?
Quando se pensa que a vida pessoal não está em questão é porque só a vida alheia é uma "causa problema".
E "o bem estar", óbvio, vota que Deus existe e não existe, quer dizer, vota em branco.
Realmente, chega um ponto quando nem sequer cosméticos resolvem a questão da sobrevivência(!) "feliz graças a Deus".
Caro Cicero,
Neste artigo, você (AC) faz algumas afirmações equivocadas sobre o caso Anthony Flew (AF):
AC: Embora, enquanto deísta, Flew rejeitasse o cristianismo, certos defensores do design inteligente, como Roy Abraham Varghese, e evangélicos como Bob Hostetler ficaram entusiasmados com o "ateu que virara a casaca"...
AF: ... o cristianismo é a religião que mais claramente merece ser honrada e respeitada, quer seja verdadeira ou não sua pretensão de ser uma revelação divina. Não há nada como a combinação da figura carismática de Jesus com o intelectual de primeira classe que foi São Paulo. Praticamente todo o argumento sobre o conteúdo da religião foi produzido por São Paulo, que tinha um raciocínio filosófico brilhante e era capaz de falar e escrever em todas as línguas relevantes".
AC: É melancólica a história, contada por Oppenheimer no artigo citado, da exploração da senilidade de Flew...
AF: I have rebutted these criticisms in the following statement: “My name is on the book and it represents exactly my opinions. I would not have a book issued in my name that I do not 100 per cent agree with. I needed someone to do the actual writing because I’m 84 and that was Roy Varghese’s role. The idea that someone manipulated me because I’m old is exactly wrong. I may be old but it is hard to manipulate me. That is my book and it represents my thinking.”
Depois falo sobre o argumento do jardineiro.
Abraço,
edg
O fato de que não haja nenhum acontecimento que possa fazer os religiosos se convencerem de que Deus não existe não implica que a proposição “Deus existe” não negue nada. Essa proposição, obviamente, nega que Deus não exista. O que aquele fato implica é tão somente que a referida proposição não é “falsificável”, como diria Popper, ou seja, que não se trata, segundo o mesmo, de uma proposição científica.
Caro Cícero,
O argumento do jardineiro, de Wisdom-Flew, faz lembrar o argumento da ilha perfeita, de Gaunilo. Assim como é impossível que uma ilha seja absolutamente perfeita, também é impossível que um jardineiro seja "invisível, intangível e imperceptível". Os dois argumentos claramente são falaciosos.
Mas Flew, "no auge dos seus poderes mentais", não percebeu isso. Por quê? Em primeiro lugar, porque ele confunde verdade com sentido (Sinn): para ele, as proposições sobre o jardineiro e sobre Deus não são falsas, mas sem sentido. Em segundo, porque ele confunde sentido lógico-gramatical com significação psicológica.
Quanto a este último ponto, a crença de um fundametalista ou de um crédulo carola não diz nada acerca do sentido (muito menos do valor de verdade) da proposição em que estes acreditam, ou seja, do fato de nada no mundo poder mudar a crença de alguém numa determinada proposição não se segue necessariamente a insensatez, o absurdo (ou a falsidade) desta proposição.
Quanto ao primeiro, é óbvio que as proposições acerca do jardineiro-Deus não são sem sentido, tanto que ambos, crente e descrente, estavam se entendendo perfeitamente. A falaciosidade ad hoc das proposições (e dos argumentos) do crente afeta o seu valor de verdade (e a sua validade), mas não o seu sentido.
O princípio da falseabilidade, tanto quanto o de verificação, é extremamente restritivo: amplos domínios do discurso humano claramente significativos têm de ser considerados insensatos. A proposição "eu amo o meu filho assim como um pai ama o seu filho", p. ex., segundo esse princípio, também não faz sentido, uma vez que não pode ser falseada empiricamente. E muitas outras proposições, inclusive científicas, se consideradas sob essa perspectiva flewiana, não fazem sentido.
Mas o pior é que o próprio princípio da falseabilidade também não faz sentido! A proposição segundo a qual, para fazer sentido, uma proposição deve poder ser falseada empiricamente não é, ela mesma, empiricamente falseável: não há nenhum acontecimento que possa fazer os flewianos que a afirmam voltarem atrás e confessarem a sua insensatez ou falsidade.
Não bastasse tudo isso, Flew ainda se equivoca quando afirma que "não há nenhum acontecimento que possa fazer os religiosos que as afirmam voltarem atrás e confessarem: 'No final das contas, Deus não existe'; ou: 'De fato, Deus não nos ama'." Pelo menos para os cristãos, os fatos importam sim e muito. Tanto é assim que são intermináveis as especulações sobre o santo sudário, p.ex., ou sobre a própria existência de Jesus ou sua morte na cruz. O próprio Paulo admite que, se Cristo não ressuscitou, o cristianismo é uma mentira.
Assim, se for provado que Jesus ou não existiu ou não morreu na cruz ou, sobretudo, não ressuscitou, certamente a maior parte dos cristãos perderá a sua fé. (Claro que essas são coisas difíceis de provar, mas, como são fatos, em princípio são sim passíveis de prova, ou, para falar com Flew, de serem falseadas empiricamente.)
Abraço,
edg
Caro Edson,
Equivocado está você, precipitando-se na defesa do Todo Poderoso.
1. Flew rejeitava o cristianismo no sentido de que ele não aceitava a intervenção divina no mundo criado. Eu não disse que ele desprezava o cristianismo.
2. A história contada por Oppenheimer é melancólica. Qualquer um que leia o artigo reconhecerá isso. Oppenheimer encontrou Flew quase confuso, com lapsos de memória, autocontraditório e sendo explorado por religiosos. Mas leia você mesmo o artigo do Oppenheimer (que se encontra aqui: http://www.nytimes.com/2007/11/04/magazine/04Flew-t.html?_r=1&scp=3&sq=%22antony%20flew%22%20oppenheimer&st=cse) e discuta com o autor, se quiser. É claro que Flew, tendo assinado o livro, reagiria desse modo que você cita, principalmente tendo um parceiro como Varghese. E penso que, se eles não processaram Oppenheimer é porque a entrevista foi inteiramente gravada.
Abraço
Rafael,
O próprio título do ensaio de Flew é uma referência ao conceito de falsificação de Popper. Mas Flew vai mais longe. O que ele está dizendo é que caso não faça absolutamente nenhuma diferença no mundo que Deus exista ou não, então dá na mesma dizer “Deus existe” e “Deus não existe”. A negação é apenas aparente. “Deus existe” é, portanto, uma pseudoproposição. Uma proposição que seja compatível com qualquer estado de coisas do mundo não diz nada sobre ele. De tal proposição não se tem, ao contrário do que o crente pensa, o direito de dizer inferir coisa nenhuma.
Edson,
Acho que você está confundindo as coisas.
Edson: do fato de nada no mundo poder mudar a crença de alguém numa determinada proposição não se segue necessariamente a insensatez, o absurdo (ou a falsidade) desta proposição.
AC: O problema não é esse. O que importa é que dizer que Deus existe não dá informação nenhuma sobre o mundo.
Edson: A proposição "eu amo o meu filho assim como um pai ama o seu filho", p. ex., segundo esse princípio, também não faz sentido, uma vez que não pode ser falseada empiricamente.
AC: A proposição “Fulano ama sicrano como um pai ama seu filho” pode ser falseada sim, se for levada em consideração o sentido que normalmente se atribui ao amor paterno, em oposição, por exemplo, ao erótico. Isso não tem nada a ver com o que está em jogo aqui.
Edson: Mas o pior é que o próprio princípio da falseabilidade também não faz sentido! A proposição segundo a qual, para fazer sentido, uma proposição deve poder ser falseada empiricamente não é, ela mesma, empiricamente falseável: não há nenhum acontecimento que possa fazer os flewianos que a afirmam voltarem atrás e confessarem a sua insensatez ou falsidade.
AC: O princípio de que aquilo que dá informação sobre o mundo deve ser em princípio falsificável é um princípio analítico, lógico. Ele mesmo não dá informação sobre o mundo; logo, não precisa ser falsificável.
Edson: Se for provado que Jesus ou não existiu ou não morreu na cruz ou, sobretudo, não ressuscitou, certamente a maior parte dos cristãos perderá a sua fé.
AC: Não creio, Edson. Mas aqui a discussão ficaria em plano muito hipotético. Prefiro não entrar nela.
Abraço
Antonio Cicero,
Está bastante claro que “o próprio título do ensaio de Flew é uma referência ao conceito de falsificação de Popper”. Ocorre que, ao que o seu texto indica, Flew emprega esse conceito inadequadamente. Para Popper, proposições infalsificáveis não são científicas. Para Flew, não são sequer proposições! São pseudo-proposições, que não negam nada e, portanto, são desprovidas de sentido. Isso obviamente não é verdade. Da infalsificabilidade de uma proposição, não se pode depreender que ela não negue nada e, por isso, não tenha sentido. O Popper mesmo jamais diria uma coisa dessas. Considere o seguinte. Poderíamos dar ao raciocínio de Flew, como você o reconstitui, a forma de um silogismo. Premissa maior: uma pretensa proposição que nada negue não tem sentido. Premissa menor: a frase “Deus existe” não nega nada. Conclusão: a referida frase não tem sentido. Ora, esse raciocínio é falso, porque é falsa a premissa menor. A frase “Deus existe”, obviamente, nega que Deus não exista. Portanto, ela tem sentido e não é uma pseudo-proposição, muita embora possa ser falsa (pessoalmente, estou persuadido de que seja). Segundo você, o que Flew diz “é que, caso não faça absolutamente nenhuma diferença no mundo que Deus exista ou não, então dá na mesma dizer ‘Deus existe’ e ‘Deus não existe’.” Ora, é impossível que não faça ABSOLUTAMENTE nenhuma diferença no mundo que Deus exista ou não. Se Deus existe, há, pelo menos, uma diferença: a de que Deus existe, a de que há um Deus no mundo. Isso já é uma diferença. É irrelevante que nenhuma OUTRA diferença decorra disso. Isso já é o bastante para que a proposição “Deus existe” negue algo e, portanto, tenha sentido (ainda que seja falsa). Segundo você, “uma proposição que seja compatível com qualquer estado de coisas do mundo não diz nada sobre ele”. Ora, a proposição “Deus existe” não é compatível com QUALQUER estado de coisas do mundo. Ela é incompatível com, pelo menos, um estado de coisas: aquele no qual Deus não existe. A pura e simples inexistência de Deus já define um estado de coisas outro, ainda que dela não decorra nenhuma OUTRA diferença. Logo, ao contrário do que você diz, a negação não é apenas aparente, e “Deus existe” não é uma pseudo-proposição. O que é aparente é justamente a ausência de negação. PARECE não haver negação entre as proposições “Deus existe” e “Deus não existe”, porque, Deus existindo ou não, o mundo permanece do mesmo modo – a não ser pelo fato de Deus existir ou não. Esse fato pode ser irrelevante do ponto de vista prático, mas é altamente relevante do ponto de vista lógico, porque, dele, decorre que as duas afirmações são mutuamente excludentes, isto é, negam uma à outra. Portanto, ambas têm sentido, e nenhuma das duas é uma pseudo-proposição (por mais implausível que uma delas seja). Concordo que as constatações de Flew depõem fortemente contra a idéia de que Deus exista. Mas a afirmação de que essa idéia sequer tem sentido é simplesmente FALSA.
Cicero,
Sim, você não disse que Flew desprezava o cristianismo, mas eu aproveitei a ocasião para mostrar que um deísta não precisa odiar a religião. E é claro que o deísmo está muito mais próximo do Deus da religião do que o agnosticismo e o ateísmo. Os argumentos a favor da existência de Deus aceitos por Flew são os mesmos defendidos pelos adeptos da famigerada teoria do design inteligente.
Quanto à suposta exploração do Flew, eu prefiro acreditar no próprio autor. No seguinte texto, não me parece que ele estivesse senil, ao contrário, parece-me bem lúcido:
http://www.bethinking.org/science-christianity/intermediate/flew-speaks-out-professor-antony-flew-reviews-the-god-delusion.htm
É óbvio que a proposição "Deus existe" não nos informa nada sobre o mundo (muito menos para o deísmo). Ela nos informa sobre o criador do mundo. E segundo Anselmo e Descartes, entre outros, trata-se também de uma proposição analítica.
Gostaria que você mostrasse como o amor incondicional de um pai pelo filho pode ser falseado pela experiência.
Se o princípio de falseação não precisa ser falseável, então o da verificação também não. Ou será que este último é sintético?
E gostaria ainda que você esclarecesse se o que o Flew acha que vale para a proposição expressa pela frase "Deus existe" não teria, pelos mesmos critérios, de valer também para a expressa pela frase "Deus não existe".
Abraço,
edg
Caro AC, corrija-me se estou errado.1)Uma proposição pode não dizer nada sobre o mundo e, não obstante, ser uma proposição legítima. Ex: "3 é um número natural". Assim são todas as proposições da Lógica e da Matemática Pura, que não dizem nada sobre o mundo.Pseudoproposição é, por exemplo< "O unicórnio tem dois chifres". E mais: "O unicórnio existe." não é um problema da Lógica, e sim, de alguma ciência, a zoologia, talvez. 2) O critério da falseabilidade de Popper não é aplicável a si próprio porque não pertence a nenhuma ciência, e sim, à metaciência.
Caro Rafael,
Você diz que “a proposição ‘Deus existe’ não é compatível com qualquer estado de coisas do mundo porque é incompatível com, pelo menos um estado de coisas: aquele em que Deus não existe”.
O problema se complica porque envolve a definição de Deus. Se, falando de Pégaso, o cavalo voador, você tivesse dito: “a proposição ‘Pégaso existe’ não é compatível com qualquer estado de coisas do mundo porque é incompatível com, pelo menos um estado de coisas: aquele em que Pégaso não existe”, eu nada teria a objetar, porque sabemos o que é Pégaso: um cavalo voador.
Mas vamos dizer que eu dissesse de um tricho que “a proposição ‘um tricho existe’ não é compatível com qualquer estado de coisas do mundo porque é incompatível com, pelo menos um estado de coisas: aquele em que trichos não existem”. Nesse caso essa afirmação seria falsa, porque
não dispomos de uma definição consensual de “tricho”: cada qual pode definir "tricho" como quiser, e essa definição é capaz de mudar o tempo todo. Assim, a proposição “um tricho existe” não diferirá realmente da proposição “trichos não existem”.
Pois bem, à primeira vista, o caso de Deus parece ser mais ou menos como o de Pégaso, mas, na realidade, quando bem examinado, ele se assemelha mais ao dos trichos: não se dispõe de uma definição consensual de Deus e ela muda o tempo todo, ad hoc. É por isso que, no fundo, a proposição “Deus existe” não difere realmente da proposição “Deus não existe”, de modo que não tem sentido.
Oi Antonio, vi ontem um texto anterior a esse sobre poesia mas não pude lê-lo inteiro, agora vejo que ele não se encontra mais no blog, onde eu poderia encontrá-lo? vc publicou em alguma revista?
às vezes também fico receosa dessa memória inconsciente e pra tirar a dúvida jogo no google as frases que me vem à mente de repente para ter certeza de que não estou copiando de ninguém rsrsrsr.
abraços.
- “Não se dispõe de uma definição consensual de Deus e ela muda o tempo todo”.
- O.K., mas, dada uma definição particular qualquer do termo “Deus”, a proposição “Deus existe” tem sentido.
Edson,
Vou me limitar, das suas qustões, às duas que me parecem mais substanciais.
Primeiro, quanto ao seu comentário/interrogação retórica: “Se o princípio de falseação não precisa ser falseável, então o da verificação também não. Ou será que este último é sintético?”
Há, como diz Popper, uma assimetria lógica entre a falsificação e a verificação. Nenhum conjunto de verificações, por maior que seja, pode formalmente provar as leis de Kepler, por exemplo. Mas uma única observação que contradiga o que é previsto por essas leis sobre, digamos, o periélio de Mercúrio seria capaz de falsificá-las.
Segundo, quanto a “E gostaria ainda que você esclarecesse se o que o Flew acha que vale para a proposição expressa pela frase ‘Deus existe’ não teria, pelos mesmos critérios, de valer também para a expressa pela frase ’Deus não existe’”.
Sim. As duas se equivalem.
Abraço
Afrânio,
Concordo. As proposições analíticas não dizem nada sobre o mundo.
Também concordo sobre o caráter metacientífico das teorias de Popper.
Claire,
o texto se encontra no blog sim. No portal, na coluna da direita, dê um clique no mês de abril. Ele vai aparecer.
abraços
Rafael,
Dada uma definição, ele tem sentido. Mas o que Flew enfatiza é exatamente que, no que diz respeito a Deus, o crente muda suas definições ad hoc. Não há definição consensual.
Antonio Cicero,
De fato, se “o crente” (ou quem quer que seja) usa um mesmo termo com definições diferentes, seu discurso se esvazia de sentido. Em todo caso, isso não muda o fato de que “infalsificabilidade = falta de sentido” é uma falsa equação.
Cicero,
Se as proposições expressas pelas frases "Deus existe" e "Deus não existe" não têm sentido, então por que há religião, teologia e teologia filosófica? Por que estamos aqui discutindo?
Bilhões de pessoas acreditam em Deus, e boa parte delas encontram nessa crença o sentido da vida. Guerra e paz dependeram e ainda dependem dessa crença. (Vejam a entrevista do Hobsbawm na Folha de hoje.) Então aparece um filósofo e decreta, com base em um critério empirista, positivista, que essa crença é insensata, absurda. Acho isso incrível!
A verdade é que nem os filósofos analíticos aceitam mais esse critério lógico-positivista. A filosofia analítica da religião é uma das disciplinas mais fecundas da filosofia atual.
Faz tempo que os filósofos analíticos se deram conta que o conhecimento não pode ser limitado ao conhecimento proposicional. Como, aliás, já tinha sido demonstrado por Kant e, antes dele, por Descartes. Ou será que o cogito pode ser verificado ou falseado empiricamente?
É claro que Deus não existe no mundo, se por isso se entender a existência no espaço e/ou no tempo. Mas disso não se segue que não haja Deus. A inexistência de evidências não é a mesma coisa que evidência da inexistência.
Abraço,
edg
Rafael,
As três coisas (infalsificabilidade, imprecisão e falta de sentido) estão interligadas.
Veja o caso citado pelo Flew: o crente diz: “Deus nos ama como um pai ama um filho [...]. Vemos uma criança morrendo de um câncer inoperável na garganta. Seu pai terrestre fica desesperado, mas seu pai divino não parece se importar”. Isso normalmente mostraria a falsidade da tese de que “Deus nos ama como um pai ama um filho”. Mas o que ocorre? O religioso que nos garantiu que Deus nos ama provavelmente dirá algo como "o amor de Deus não se confunde com o humano" ou "os desígnios de Deus são inescrutáveis". A proposição “Deus nos ama como um pai ama um filho” se tornou infalsificável, já que mudaram os sentidos das palavras. E a mudança dos sentidos é na verdade a perda do sentido da frase original: “Deus nos ama como um pai ama um filho”.
Rafael,
Concordo com você acerca de a não falseabilidade não implicar a falta de sentido (não concordo com você acerca de Deus existir no mundo). Esse critério lógico-positivista é já uma relíquia filosófica, dado o seu patente reducionismo, ao qual não escapa nem a própria ciência.
Quanto à posição do crédulo irracional, o que esta tem que ver com a questão do sentido da in-existência de Deus? O crédulo irracional é um realista ingênuo, não é um filósofo. O que faz ou deixa de fazer sentido para ele é irrelevante no que diz respeito à questão do sentido objetivo, ou seja, lógico-epistemológico (e não subjetivo, psicológico) da proposição "Deus in-existe".
Como tentei dizer logo de início, confundindo valor de verdade com sentido, e sentido com significância, o Flew generaliza a posição de um irracionalista para o conjunto de todos os crentes possíveis.
Abraço,
edg
Antonio Cicero,
Independente do que o crente diga ou deixe de dizer, a proposição “Deus nos ama como um pai ama um filho” permanece falsificável. De fato, a indiferença divina (se é que há Deus) ante o câncer da criança falsifica a proposição, por mais que o crente não se convença disso. Se ele afirma, a um só tempo, que Deus nos ama como um pai e que o amor divino difere do humano, ele não está tornando sua primeira proposição infalsificável; está sim é se contradizendo e esvaziando seu discurso de sentido. Mas as proposições isoladamente (a primeira, falsificável; a segunda, não) continuam tendo sentido, porque continuam negando seus contrários e, portanto, afirmando a si mesmas. Ocorre que, como são mutuamente excludentes, ao serem afirmadas num mesmo discurso, elas fazem com que esse discurso se torne auto-contraditório e, logo, sem sentido. Assim mesmo, a primeira continua falsificável, e a segunda, infalsificável. Já o discurso sem sentido que elas compõem juntas, justamente por não ter sentido, não é nem falsificável nem infalsificável. Sua falta de sentido faz dele um pseudo-discurso, e só os discursos que são de fato discursos, isto é, que têm sentido, podem ser falsificáveis ou não. A proposição “Deus existe”, por outro lado, permanece infalsificável e com sentido. Logo, a questão da falsificabilidade, por um lado, e a da imprecisão e da falta de sentido, por outro, são totalmente distintas e independentes uma da outra.
Edson,
1. A teologia realmente racional desemboca no sistema de Spinoza: Deus sive natura. O resto é regressão.
2. As ilusões das massas – suas causas, seus efeitos – interessam muito mais à sociologia do que à filosofia. A esta, elas não provam coisa nenhuma. Os verdadeiros filósofos sabem e dizem isso pelo menos desde Heráclito.
3. “Os filósofos analíticos” estão longe de ser um bloco. Você devia dizer: “alguns filósofos analíticos” ou: “os filósofos analíticos mais fracos”. De todo modo, estou longe de considerar a filosofia analítica o ápice da filosofia.
4. Aqui falei das proposições, para empregar a linguagem de Kant, sintéticas, que incluem as proposições existenciais, tais como “Deus existe”. Não falo das proposições analíticas.
5. Não falei da evidência da inexistência de Deus. Não há evidência de espécie nenhuma sobre Deus porque não se consegue minimamente defini-lo. E isso porque, quando minimamente definido, esse conceito se mostra contraditório.
Abraço
Cícero,
Perfeito!
Abração,
Adriano Nunes.
Rafael,
Estou usando a expressão “infalsificável” à maneira de Popper. Ele diz, com razão, que
“Algumas teorias genuinamente testáveis são, quando se revelam falsas, ainda assim sustentadas pelos seus admiradores – por exemplo, ao introduzir ad hoc alguma suposição auxiliar, ou ao reinterpretar a teoria ad hoc de tal modo que escape à refutação. Tal procedimento é sempre possível, mas salva a teoria de refutação cobrando o preço de destruir, ou ao menos diminuir, o seu estatuto científico”.
A frase “Deus nos ama como um pai ama um filho”, se fosse tomada com o significado convencional, normal, seria falsificada pela observação do garoto com câncer. Mas ela foi reinterpretada pelos seus admiradores. O verbo “amar” foi por eles reinterpretado, para salvar sua “teoria”. Desse modo, ela se tornou infalsificável embora, por isso mesmo, como você diz, esvaziada de sentido.
Quanto a “Deus existe”, reafirmo que, tendo sido totalmente esvaziada de sentido pelas reintepretações ad hoc sucessivas pelos crentes da noção de “Deus”, ela nada mais consegue dizer.
Edson,
Concordo com tudo o que você diz em sua mensagem dirigida a mim. Esclareço apenas que, quando digo “Deus existe” e “há um Deus no mundo”, estou dando aos termos “existir” e “mundo” os sentidos mais abrangentes possíveis. Não estou opondo “existência” a “essência”, nem “mundo” a “supra-mundo” ou a algo que o valha. Por “existir”, quero dizer “haver”, em qualquer sentido que seja, e, por “mundo”, quero dizer toda e qualquer instância, terrena ou supra-terrena, imanente ou transcendente, em que algo possa haver.
Antonio Cicero,
Discordo da sua leitura de Popper. A reinterpretação a que ele se refere não esvazia de sentido a teoria reinterpretada (ao menos, não necessariamente). O que ela faz é salvar a dita teoria da refutação e destruir seu estatuto científico. Mas nem por isso ela se torna uma pseudo-teoria, que não nega nada (do ponto de vista lógico) e, por isso, nada significa. Caso contrário, não se poderia falar em “salvação”, como faz o Popper, e o que seria destruído não seria o “estatuto científico” da teoria, como ele também diz, mas sim a teoria como um todo. Uma tal “teoria” não estaria salva da refutação, como o Popper diz, mas sim imediatamente refutada pela sua própria falta de sentido. Propriamente infalsificáveis, pode-se dizer, são as teorias marxista e psicanalítica (se não me engano, esses exemplos são do próprio Popper). Ambas poderiam ser usadas para explicar tanto um fato quanto o seu contrário, o que as torna infalsificáveis e não-científicas, mas nem por isso necessariamente falsas, muito menos sem sentido. O que isso mostra é que a infalsificabilidade é compatível com o sentido e não implica a falta dele. Outro é o caso da reinterpretação do verbo “amar” pelo crente imaginado por você. Esta não “salva a teoria da refutação”, porque não destrói apenas o seu “estatuto científico”, mas sim a teoria como um todo, tornando-a auto-contraditória e sem sentido, uma pseudo-teoria, uma não-teoria, portanto. Trata-se, assim, de dois tipos distintos de reinterpretação. O primeiro torna uma teoria irrefutável, mas nem por isso sem sentido. O segundo torna uma teoria sem sentido, e por isso mesmo a refuta. Quanto a “Deus existe”, independente do que digam ou tenham dito “os crentes” (se é que existe esse bloco monolítico), continua sendo perfeitamente possível imaginar um discurso qualquer em que o termo “Deus” seja definido de forma coerente e não-auto-contraditória, fazendo com que a afirmação da existência de Deus seja dotada de sentido, apesar de infalsificável (e provavelmente falsa).
crer é um movimento muito tentador.
curioso que seus posts venham criticando as crenças.
a cegeuira dos bolcheviques tardios, a insanidade das informações falsas, ou mesmo, o oportunismo de se tentar explorar a senilidade de um intelectual para confirmar uma... crença.
no momento que cremos, tudo fica claro. tudo se explica. o bem e o mal se definem. há o certo e o errado - e lógico (e talvez o principal), estamos sempre certos.
para uns, o certo é ter certeza, para outros, o certo é ter sempre a possibilidade de dúvida.
mas o irônico é que no fim, nossos enunciados cotidianos, se baseiam sempre, em crenças.
pq se deus é um delírio (dalkins), a crença de que ele também o é não seria um delírio tb?
a consolidação da democracia como "valor universal" tb não é uma crença?
daí a tentação de crer (ou seria uma necessidade?): a crença é um cimento com o qual tentamos fazer parar de mexer esse pântano que é o pensar.
deus me livre!!!!!
Cicero,
AC: A teologia realmente racional desemboca no sistema de Spinoza: Deus sive natura. O resto é regressão.
EDG: Então a teologia filosófica acabou no panteísmo racionalista ou no racionalismo panteísta? Interessante. Fico pensando o que diriam disso os grandes filósofos posteriores a Spinosa.
AC. As ilusões das massas – suas causas, seus efeitos – interessam muito mais à sociologia do que à filosofia. A esta, elas não provam coisa nenhuma. Os verdadeiros filósofos sabem e dizem isso pelo menos desde Heráclito.
EDG: Parece que o Flew não concordava com você, uma vez que, para refutar a sensatez das proposições religiosas, ele atacou justamente as ilusões de um crente popular. De resto, você devia pelo menos esboçar uma história da "verdadeira filosofia": quem seriam os falsos filósofos?
AC: “Os filósofos analíticos” estão longe de ser um bloco. Você devia dizer: “alguns filósofos analíticos” ou: “os filósofos analíticos mais fracos”. De todo modo, estou longe de considerar a filosofia analítica o ápice da filosofia.
EDG: Claro que a filosofia analítica não é monolítica. Só me referi a essa tradição filosófica porque é a ela que Flew pertencia. Mas os analíticos têm alguns traços comuns, como o desinteresse pela história da filosofia e o interesse pelo estado das questões, p.ex., em torno da propriedade do conhecimento não proposicional. Faz pelo menos meio século que os analíticos, em geral, abandonaram os preconceitos lógico-positivistas sobre metafísica, teologia filosófica e filosofia da religião. Além disso, parece que você se esquece que, pessoalmente, muitos dos grandes filósofos, inclusive modernos, partilhavam das mesmas ilusões que as massas.
AC: Aqui falei das proposições, para empregar a linguagem de Kant, sintéticas, que incluem as proposições existenciais, tais como “Deus existe”. Não falo das proposições analíticas.
EDG: É claro que Deus não pode ser dado na intuição sensível. Se existir implica ser dado no espaço e/ou no tempo, então é óbvio que Deus não existe. Todo idealista sabe que Deus tem ser, mas não existe; tem realidade, mas não existência. Deus não pode ser provado ou conhecido cientificamente. Como aliás ocorre com as coisas mais importantes da nossa vida.
AC: Não falei da evidência da inexistência de Deus. Não há evidência de espécie nenhuma sobre Deus porque não se consegue minimamente defini-lo. E isso porque, quando minimamente definido, esse conceito se mostra contraditório.
EDG: O que há de contraditório na definição clássica de Deus, como ser criador perfeito e transcendente? (Para Kant, o conceito de Deus é uma ideia da razão, não sendo portanto contraditória. A respectiva antinomia só surge quando o entendimento quer conhecê-la objetivamente.) Você se refere ao problema do mal?
Ab.,
edg
Se Deus existe ou não...mas de qual Deus vocês estão falando mesmo?
Deixe-me recapitular a última parte da discussão, porque está ficando confusa.
1. Eu disse que o enunciado “Deus nos ama como um pai ama um filho” se torna infalsificável quando se diz “o amor de Deus não se confunde com o humano”, porque então mudam os sentidos das palavras.
2. Você respondeu que a proposição “Deus nos ama como um pai ama um filho” “permanece falsificável”.
3. Eu então mostrei que estava usando a palavra “infalsificável” à maneira de Popper, já que (a) ele diz que a teoria se torna infalsificável quando seus admiradores introduzem ad hoc alguma suposição ou a reinterpretam ad hoc, de tal modo que escape à refutação e (b) é exatamente isso que ocorre quando os religiosos dizem que “o amor de Deus não se confunde com o humano”.
4. Você diz que o que os religiosos fazem, nesse caso, “não salva a teoria da refutação, porque não destrói apenas o seu estatuto científico, mas sim a teoria como um todo, tornando-a autocontraditória e sem sentido, uma pseudoteoria, uma não-teoria, portanto.”
Isso é seu juízo. O fato é que a introdução da proposição “o amor de Deus não se confunde com o humano” tem, para os religiosos que a empregam, exatamente a função de salvar da falsificação a tese de que “Deus nos ama como um pai ama um filho”: e mais, funciona desse modo para muita gente.
Quanto à questão do esvaziamento do sentido, é claro que isso não ocorre sempre do mesmo jeito. Ocorre aqui em maior, ali em menor grau, dependendo do tipo de suposições ou interpretações ad hoc que são introduzidas à teoria e da frequência com que isso é feito. No caso da existência de Deus, elas são tantas, tão frequentes, repetidas e aprofundadas há tantos séculos, que a tese “Deus existe” já ficou tão aguada que nada significa. E não é apenas a palavra “Deus” que cada vez quer dizer uma coisa diferente (como “tricho”), mas também, para os religiosos, o verbo “existir”.
Você diz que “continua sendo perfeitamente possível imaginar um discurso qualquer em que o termo “Deus” seja definido de forma coerente e não-auto-contraditória, fazendo com que a afirmação da existência de Deus seja dotada de sentido, apesar de infalsificável (e provavelmente falsa).” Digamos que, num laboratório, é possível imaginar isso, mas fora de lá...
Edson,
Você me pergunta qual é a contradição da definição clássica de Deus como ser criador perfeito e transcendente?
E não lhe parecem evidentes as contradições desse conceito? O que é “perfeito”? Pode-se ser “perfeito” e transcendente, logo, não-imanente? A perfeição é compatível com a negação? Pode-se ser perfeito e destituído de existência, como acima você disse ser Deus (“Deus tem ser, mas não existe, tem realidade, mas não existência”)? Então você se esquece da famigerada “prova ontológica”, que pressupõe a existência como uma perfeição?
Bem, já sei que vem por aí uma nova definição, ad hoc, de Deus...
Não admira que alguns teólogos do século XVI começaram a temer que a teologia fosse coisa do diabo...
Sempre que se coloca a questão sobre a existência ou não de Deus, sinto muita saudade de minha primeira infância.
O problema é que - não sei se para o bem ou mal, a gente cresce/duvida/cresce.E então, já não cabemos mais no leito de Homero.
Cicero,
É claro que a perfeição é compatível com a negação: a perfeição é a negação das imperfeições.
Nenhuma das grandes religiões afirma a imanência de Deus.
A existência divina provada pelos argumentos ditos ontológicos não é, evidentemente, a espaçotemporal.
Essas contradições que você imagina encontrar em todo lugar são fruto da nossa linguagem, dos nossos conceitos. O que os teólogos negativos já perceberam faz tempo. Mas isso não impede que se possa fazer boa teologia positiva, desde, é claro, que se tenha boa vontade.
De certa forma, a teologia é sim coisa do diabo, porque se trata de um empreendimento racional.
Para finalizar a discussão com você, Antonio: acho que --para ser equitativo-- ficou faltando dizer aos seus leitores da Folha que 1) a tal história melancólica contradiz o testemunho do próprio autor; que 2) Flew não só não desprezava mas prezava muito o cristianismo, e que 3) o que ele afirma sobre a proposição "Deus existe" vale também para a proposição "Deus não existe".
Se eu, um seu leitor medíocre, senti falta disso, certamente outros leitores também sentirão.
Abraço,
edg
Antonio Cicero,
Quando os religiosos afirmam que o amor de Deus é, a um só tempo, análogo ao de um pai humano e diferente do amor humano, não estão confeccionando uma teoria infalsificável/irrefutável; pelo contrário, estão produzindo uma pseudo-teoria auto-refutante. Ao contrário do que você diz, isso não é “meu juízo”. É um fato lógico. Você tem razão: realmente, “a introdução da proposição ‘o amor de Deus não se confunde com o humano’ tem, para os religiosos que a empregam, exatamente a função de salvar da falsificação a tese de que ‘Deus nos ama como um pai ama um filho’: e mais, funciona desse modo para muita gente.” Isso é verdade, mas é inteiramente irrelevante. O fato lógico permanece o mesmo. Quem pensa o contrário está simplesmente equivocado. Com isso, quero dizer que os religiosos, referidos por você, que empregam a tal proposição tentando salvar sua tese da falsificação estão equivocados, assim como estão equivocados aqueles que caem nessa conversa, ou seja, a “muita gente” para a qual, segundo você, aquela estratégia funciona. Quanto a imaginar um discurso em que o termo “Deus” seja definido de forma coerente e não-auto-contraditória, fazendo com que a afirmação da existência de Deus seja dotada de sentido, ainda que infalsificável, a simples possibilidade de fazê-lo, mesmo que em “laboratório”, basta para mostrar que infalsificabilidade e falta de sentido são coisas distintas e independentes, ao contrário do que pretende o Flew, segundo você. Mas, talvez, você tenha razão (é o que a sua discussão com o Edson em seus últimos desenvolvimentos me leva a pensar), e toda definição de Deus minimamente fiel ao que dele nos dizem as religiões monoteístas seja, de fato, auto-contraditória. Como reconciliar perfeição e transcendência? E como fazer Deus prescindir de um desses dois traços? Isso, para sequer tocar no problema do Mal... Se tudo o que há advém de Deus, e Deus é o Bem Absoluto, como se explica que haja mal? Como poderia o mal advir do Bem ABSOLUTO? Num mundo criado pelo Bem Absoluto, o mal não poderia existir nem sequer como possibilidade a ser escolhida pelo livre-arbítrio, nem sequer como a mais remota das hipóteses...
Edson,
A teologia negativa, que é a única consistente, levada às últimas consequências conduz ao niilismo do absoluto negativo ou da negatividade absoluta. Por um aparente paradoxo, essa negatividade absoluta pode se exprimir como a positividade absoluta da substância de Spinoza. Pela lógica rigorosa, não se chega a nenhum Deus transcendente. É preciso enfrentar esse fato.
Quanto à equitatividade do meu artigo:
1. Se você ler o artigo já mencionado do Oppenheimer, entenderá que o testemunho do Flew, lamentavelmente afetado por demência, não pode ter grande valor. Se você não acredita que ele estivesse senil, dê uma olhada na entrevista ao vivo que ele deu na mesma época (aliás, a mesma que você cita). Veja aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ggQGpomwPCM&feature=related. Penso que a atitude verdadeiramente cristã, nesse caso, é citá-lo no auge dos seus poderes, como o fiz.
2. Eu não disse que Flew desprezava o cristianismo. E só agora vim a conhecer essa entrevista, feita na velhice, em que ele elogia a erudição de Paulo.
3. Eu estava relatando o que o próprio Flew escreveu no seu artigo. Por que iria dizer coisas que ele mesmo não disse? Francamente!
Abraço
AVISO:
DE AMANHÃ ATÉ A PRÓXIMA SEMANA, ESTAREI VIAJANDO A TRABALHO. NESSE PERÍODO, NÃO ME SERÁ POSSÍVEL POSTAR E COMENTAR SENÃO UMA VEZ POR DIA OS COMENTÁRIOS ACUMULADOS.
Claire,
O artigo está no seguinte endereço:
http://antoniocicero.blogspot.com/2010/04/o-que-e-poesia.html
Abraço
Cicero,
Eu não sugeri que você dissesse tudo no mesmo artigo. Vale como sugestão para outro artigo, em que você assumisse o agnosticismo apocrítico.
Mas, a bem da verdade, neste artigo não está claro se é todo ele Anthony Flew ou se há algo de Antonio Cicero.
Boa viagem e bom trabalho,
edgil
Rafael,
Segundo você, então, Deus só poderia criar outro Deus, uma vez que do perfeito só pode advir o perfeito.
Por que, afinal, Deus não pode permitir o mal? Por que a perfeição, a bondade divina, seria incompatível com o mal? Você precisa explicitar as premissas do seu argumento.
A liberdade de escolher entre o bem e o mal não lhe parece superior à liberdade de "escolher" entre bem e bem?
Aliás, de onde tirou essas ideias de absoluto, de sumo bem, de perfeição etc.? Se do perfeito só advém o perfeito, suponho que do imperfeito só advenha o imperfeito...
E nós afinal não nos estamos entendendo minimamente acerca de Deus? Se a ideia de Deus fosse contraditória, isso seria possível? Se ela não tivesse sentido, como querem o Flew e o Cicero, esse nosso bate papo teria tido lugar?
Abraço,
edgil
Nossa Antonio, jurava que tinha lido à meia noite anterior a desse ultimo post um texto totalmente diferente....acho que sonhei com esse texto e ficou na tal memória inconsciente rsrsr
mas obrigada pela atenção!
Edson,
Sobre a perfeição, o que eu disse, concordando com o Antonio Cicero, é que ela me parece incompatível com a transcendência, justamente porque deveria excluir a negação. Que ela seja a “negação da imperfeição”, como você diz, não muda nada. O conceito de perfeição obviamente tem um antônimo, o de imperfeição. Mesmo assim, a perfeição real teria que abranger tudo o quanto houvesse, sem exceção. Um ser perfeito não poderia haver fora do mundo, em condição de alteridade em relação a ele. Se ele não fosse o mundo, faltaria o mundo à sua suposta perfeição, e ele, na verdade, não seria perfeito.
Você me pergunta por que a bondade divina seria incompatível com o mal. Ora, porque a bondade divina supostamente seria absoluta. O Bem Absoluto, por definição, é incompatível com o mal. Se tudo o que há foi criado por Deus ou é Deus, e Deus é o Bem Absoluto, então o mal não deveria haver nem sequer como a mais diáfana das conjecturas. É irrelevante que a liberdade de escolher entre bem e mal seja superior à liberdade de “escolher” entre bem e bem. A existência do mal em um mundo criado pelo Bem Absoluto continua absurda.
Se do imperfeito só advém o imperfeito? Sim, naturalmente. Minhas idéias SOBRE a perfeição não são perfeitas...
Sobre o seu último ponto, o fato de estarmos conversando sobre Deus não prova que a idéia dele não seja contraditória. É perfeitamente possível conversar sobre idéias contraditórias. Ambos entendemos que Deus DEVERIA ser, a um só tempo, perfeito e transcendente. Isso não torna a perfeição e a transcendência logicamente compatíveis. Ambos entendemos que Deus supostamente é o Bem Absoluto e criou o mundo. Isso não torna menos absurda a idéia de que, do Bem Absoluto, poderia advir o mal.
Às vezes tenho muito medo do homem e de mim mesmo, penso a dinâmica da philia como nos fragmentos de Heráclito, a medida (metron) muitas vezes assume a figura da pessoa amada, mas ela precisa ter a generosidade de "morrer para germinar", como um pharmakos. Ao dominar essa lógica sem amar, a pessoa pode tornar-se uma grande perversa.
Cícero,
você concorda com Popper e discorda de Kuhn (cf. Os paradigmas de Thomas Kuhn, 24.01.10), é isso?
Obrigado a vc e demais interlocutores.
Rafael,
O mundo não constitui alteridade para Deus, pois Ele não está no tempo e no espaço. Só se daria alteridade em relação a Deus no caso de haver outro Deus, de igual perfeição: isso sim seria uma contradição.
Existir no mundo, na finitude, constitui imperfeição e não perfeição, pois implica pelo menos duas limitações, a do espaço e a do tempo.
Quanto ao mal, este só se tornaria um problema se houvesse uma premissa que implicasse a incompatibilidade --lógica, e não psicológica, emocional-- entre a ideia de Deus e o mal. A questão filosófica é, pois, se há contradição --lógica-- entre a ideia de Deus e a existência do mal. Ora, para haver contradição entre uma e outra seria necessário que a compatibilidade entre estas fosse impossível. Do ponto de vista lógico, definitivamente, não o é. Por quê, afinal, Deus não poderia ter boas razões para permitir o mal?
É claro que de um ponto de vista "demasiadamente humano" aquilo a que chamamos mal nos parece incompatível com um Deus sumamente bom. O ateísta raciocina abstratamente, ignorando tudo o que a ideia clássica de Deus implica (alma, eternidade, justiça divina etc.) e depois, quando o teísta tenta explicar-lhe a sua fé, ele afirma que essa explicação é ad hoc... O câncer da criança só parece ser incompatível com a bondade divina se se "esquece" o que esta vida finita representa, para o teísta, diante da vida eterna.
Quanto à ideia de perfeição: como você sabe que a sua ideia de perfeição é imperfeita? Com base na ideia de perfeição? Como você vai escapar desse regresso ao infinito?
Sim, é possível conversar sobre ideias contraditórias: justamente sobre a sua impossibilidade, mais nada. Mas não é o que estamos fazendo aqui. Assim como não era o que faziam as personagens do argumento do jardineiro invisível. Você está confundindo contradição lógica com inadequação epistemológica, uma vez que pressupõe que a realidade do mal seja incompatível com a ideia de um seu criador sumamente bom.
Abraço,
edg
Para descontrair, um poema de Pessoa:
"Os deuses são felizes.
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o Fado não oprime.
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal.
Não há
Sombras ou outros que os contristem.
E, além disto, não existem..."
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1988.
Aetano
Maravilhoso, Aetano. Vou postar no portal.
Abraço
PARTE 1:
Edson,
Seguem-se as minhas respostas aos seus comentários.
Edg: “O mundo não constitui alteridade para Deus, pois Ele não está no tempo e no espaço. Só se daria alteridade em relação a Deus no caso de haver outro Deus, de igual perfeição: isso sim seria uma contradição.”
R: Deus não é o mundo, isto é, não há uma relação de identidade entre Deus e mundo. Logo, há uma relação de alteridade entre Deus e mundo (ou melhor: haveria, se houvesse Deus.)
Edg: “Existir no mundo, na finitude, constitui imperfeição e não perfeição, pois implica pelo menos duas limitações, a do espaço e a do tempo.”
R: Eu não disse que “existir no mundo” constitui perfeição. O que eu disse é que a perfeição teria que abranger tudo o quanto houvesse, sem exceção. Um ser perfeito não poderia haver fora do mundo, em condição de alteridade em relação a ele. Se ele não fosse o mundo (O mundo, e não NO mundo), faltaria o mundo à sua suposta perfeição, e ele, na verdade, não seria perfeito (sendo que “perfeito” é aquilo a que não falta nada).
Edg: “Quanto ao mal, este só se tornaria um problema se houvesse uma premissa que implicasse a incompatibilidade --lógica, e não psicológica, emocional-- entre a ideia de Deus e o mal.”
R: A premissa que implica a incompatibilidade lógica entre Deus e o mal é a seguinte: DEUS É O BEM ABSOLUTO. Dizer que Deus é o Bem ABSOLUTO é dizer que Deus está, total e completamente, fora de relações com o mal. Dizer que Deus é o Bem Absoluto é o mesmo que afirmar a incompatibilidade entre o mal e Deus. Caso contrário, o termo “absoluto” aí se esvaziaria de sentido.
Edg: “A questão filosófica é, pois, se há contradição --lógica-- entre a ideia de Deus e a existência do mal. Ora, para haver contradição entre uma e outra seria necessário que a compatibilidade entre estas fosse impossível. Do ponto de vista lógico, definitivamente, não o é.”
R: Do ponto de vista lógico, definitivamente é. Eis por que: 1. Deus seria o Bem Absoluto; 2. tudo o quanto existe teria advindo de Deus; 3. o mal existe, logo o mal teria advindo de Deus; 4. em outras palavras, o mal teria advindo do Bem Absoluto – mas essa idéia é absurda. Portanto, há contradição lógica entre a idéia de Deus (como, a um só tempo, Bem Absoluto e criador do mundo) e a existência do mal, ou seja, a compatibilidade entre estas é, de fato, impossível.
Edg: “Por quê, afinal, Deus não poderia ter boas razões para permitir o mal?”
R: Se Deus é, a um só tempo, o Bem Absoluto e o criador do mundo, essa pergunta é totalmente descabida. Para começar, ele não estaria apenas “permitindo” o mal, mas sim o teria criado, já que seria o criador do mundo e de tudo o que nele existe. Agora, se suas “razões” para fazê-lo são “boas” ou “más” é uma questão que nem sequer se coloca... Se ele é o Bem Absoluto, ele simplesmente NÃO PODERIA fazê-lo; isso seria uma impossibilidade lógica, porque o mal, logicamente, não poderia advir do Bem Absoluto. Veja bem: quando digo que o mal não pode advir do Bem Absoluto, não estou querendo dizer que não haja “boas razões” para isso... “Se houvesse uma boa razão, uma boa justificativa, o mal poderia, sim, advir do Bem Absoluto...” Essa formulação (“o mal poderia advir do Bem Absoluto”) é auto-contraditória. Do mesmo modo, a formulação “o mal jamais poderia advir do Bem Absoluto” é tautológica, porque equivale a esta outra: “o mal está, total e completamente, fora de relações com o Bem Absoluto”. As palavras “Bem Absoluto” nada significam senão: “total e completa ausência de relações com o mal”. É por isso que, em um mundo no qual absolutamente TUDO tivesse advindo do Bem Absoluto, o mal não poderia existir nem sequer como opção a ser escolhida pelo livre-arbítrio, nem sequer como a mais remota das hipóteses, nem sequer como a mais diáfana das conjecturas.
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “É claro que de um ponto de vista ‘demasiadamente humano’ aquilo a que chamamos mal nos parece incompatível com um Deus sumamente bom. O ateísta raciocina abstratamente, ignorando tudo o que a ideia clássica de Deus implica (alma, eternidade, justiça divina etc.) e depois, quando o teísta tenta explicar-lhe a sua fé, ele afirma que essa explicação é ad hoc... O câncer da criança só parece ser incompatível com a bondade divina se se ‘esquece’ o que esta vida finita representa, para o teísta, diante da vida eterna.”
R: Ainda que a “vida finita” represente pouco diante da “vida eterna”, o sofrimento que se experimenta nela é real e, por vezes, intenso. O fato de haver outra vida, mais importante do que esta, não muda nada quanto ao sofrimento e ao mal no momento em que eles se fazem presentes (e certamente não suprime o absurdo da idéia de que eles poderiam ter advindo do Bem Absoluto). Poder evitar que uma criança tenha câncer e não fazê-lo é um proceder incompatível com a bondade humana. Se esse proceder for compatível com a “bondade divina”, é porque esta e a bondade humana são coisas total e completamente distintas. Sendo assim, seria melhor que fossem designadas por termos distintos.
Edg: “Quanto à ideia de perfeição: como você sabe que a sua ideia de perfeição é imperfeita? Com base na ideia de perfeição? Como você vai escapar desse regresso ao infinito?”
R: Só o que eu quis dizer é que idéias sobre a perfeição não são necessariamente perfeitas, assim como idéias sobre a maldade não são necessariamente más e idéias sobre a humildade não são necessariamente humildes. Sim, pressuponho que a minha idéia de perfeição não seja perfeita com base nessa mesma idéia de perfeição, como não poderia deixar de ser. Essa circularidade antes confirma do que invalida meu raciocínio.
Edg: “Sim, é possível conversar sobre ideias contraditórias: justamente sobre a sua impossibilidade, mais nada. Mas não é o que estamos fazendo aqui. Assim como não era o que faziam as personagens do argumento do jardineiro invisível.”
R: Discordo de que, em se tratando de idéias contraditórias, só seja possível afirmar a impossibilidade delas de um modo geral. Também é possível discutir idéias contraditórias particulares. Por exemplo: é plenamente possível discutir a idéia da inexistência da verdade, a mãe de todas as contradições. Só não é possível discutir sobre o referente dessa idéia, que não existe. Idéias contraditórias não têm sentido, não se referem a nada, não correspondem a nenhuma “coisa”. Mas têm significado, isto é, evocam imagens mentais, por isso é possível compreendê-las (enquanto puras abstrações sem contraparte real) e discuti-las.
Edg: “Você está confundindo contradição lógica com inadequação epistemológica, uma vez que pressupõe que a realidade do mal seja incompatível com a ideia de um seu criador sumamente bom.”
R: Nesse caso, há tanto inadequação epistemológica (pelo motivo que você mesmo expõe) quanto contradição lógica, pelo motivo que eu exponho a seguir: se Deus é o Bem Absoluto, se Deus criou tudo o que existe no mundo e se o mal existe no mundo, então o Bem Absoluto criou o mal, o que equivale a dizer: o mal advém do Bem Absoluto. Em outras palavras: o mal advém da total e completa ausência de relações com o mal. Como se nota facilmente, essa proposição comporta uma contradição lógica.
PARTE 2:
Edg: “É claro que de um ponto de vista ‘demasiadamente humano’ aquilo a que chamamos mal nos parece incompatível com um Deus sumamente bom. O ateísta raciocina abstratamente, ignorando tudo o que a ideia clássica de Deus implica (alma, eternidade, justiça divina etc.) e depois, quando o teísta tenta explicar-lhe a sua fé, ele afirma que essa explicação é ad hoc... O câncer da criança só parece ser incompatível com a bondade divina se se ‘esquece’ o que esta vida finita representa, para o teísta, diante da vida eterna.”
R: Ainda que a “vida finita” represente pouco diante da “vida eterna”, o sofrimento que se experimenta nela é real e, por vezes, intenso. O fato de haver outra vida, mais importante do que esta, não muda nada quanto ao sofrimento e ao mal no momento em que eles se fazem presentes (e certamente não suprime o absurdo da idéia de que eles poderiam ter advindo do Bem Absoluto). Poder evitar que uma criança tenha câncer e não fazê-lo é um proceder incompatível com a bondade humana. Se esse proceder for compatível com a “bondade divina”, é porque esta e a bondade humana são coisas total e completamente distintas. Sendo assim, seria melhor que fossem designadas por termos distintos.
Edg: “Quanto à ideia de perfeição: como você sabe que a sua ideia de perfeição é imperfeita? Com base na ideia de perfeição? Como você vai escapar desse regresso ao infinito?”
R: Só o que eu quis dizer é que idéias sobre a perfeição não são necessariamente perfeitas, assim como idéias sobre a maldade não são necessariamente más e idéias sobre a humildade não são necessariamente humildes. Sim, pressuponho que a minha idéia de perfeição não seja perfeita com base nessa mesma idéia de perfeição, como não poderia deixar de ser. Essa circularidade antes confirma do que invalida meu raciocínio.
Edg: “Sim, é possível conversar sobre ideias contraditórias: justamente sobre a sua impossibilidade, mais nada. Mas não é o que estamos fazendo aqui. Assim como não era o que faziam as personagens do argumento do jardineiro invisível.”
R: Discordo de que, em se tratando de idéias contraditórias, só seja possível afirmar a impossibilidade delas de um modo geral. Também é possível discutir idéias contraditórias particulares. Por exemplo: é plenamente possível discutir a idéia da inexistência da verdade, a mãe de todas as contradições. Só não é possível discutir sobre o referente dessa idéia, que não existe. Idéias contraditórias não têm sentido, não se referem a nada, não correspondem a nenhuma “coisa”. Mas têm significado, isto é, evocam imagens mentais, por isso é possível compreendê-las (enquanto puras abstrações sem contraparte real) e discuti-las.
Edg: “Você está confundindo contradição lógica com inadequação epistemológica, uma vez que pressupõe que a realidade do mal seja incompatível com a ideia de um seu criador sumamente bom.”
R: Nesse caso, há tanto inadequação epistemológica (pelo motivo que você mesmo expõe) quanto contradição lógica, pelo motivo que exponho a seguir: se Deus é o Bem Absoluto, se Deus criou tudo o que existe no mundo e se o mal existe no mundo, então o Bem Absoluto criou o mal, o que equivale a dizer: o mal advém do Bem Absoluto. Em outras palavras: o mal advém da total e completa ausência de relações com o mal. Como se nota facilmente, essa proposição comporta uma contradição lógica.
cada dia mais eu me convenço de que o que nos faz humanos, acima de tudo, é a pontência criativa, a capacidade de invenção.
se deus não existe, tudo é possível, inclusive a invenção de deus.
o homem é muito bicho. mas os bichos só "se inventam", e ainda assim espontânea e aleatoriamente, ao longo de milhares de anos e gerações.
só o homem me parece capaz de viver, de escolher viver diferentes vidas numa mesma vida, de viver diferentes encarnações numa mesma carne, de se inventar. e, a sua imagem e semelhança, inventar os deuses...
Caro Rafael,
Gostei da sua resposta, bem escrita e pensada. Infelizmente não tenho tempo agora para responder como devia. Mas gostaria de adiantar algumas coisas.
Só Deus tem subsistência, asseidade, e todo o resto depende dEle para ser. (A criação não é necessária a Deus, a menos que se seja hegeliano.) Existindo ou não o mundo, Deus permanece o mesmo. Essa é a concepção clássica. Se você chama isso de alteridade, tudo bem; só não vejo em que essa alteridade afetaria a perfeição divina.
Como tal, Deus não pode existir no mundo material. Mas Ele está "presente" no mundo de modo análogo a como a causa está presente no efeito, o princípio no principiado, ou como a consciência está presente no seu objeto. Deus não é espacial nem temporal, embora alguns teólogos considerem que, após a criação, Ele se tenha temporalizado (com o que eu não concordo).
Mais adiante você se refere à mãe de todas as contradições, a proposição segundo a qual a verdade não existe. Mas esta proposição constitui uma contradição pragmática e não semântica. Nós estamos discutindo se "Deus existe" é uma proposição semanticamente contraditória e/ou sem sentido.
(A tradição teísta mais forte vai afirmar o contrário que você, ou seja, que a proposição "Deus existe" não só não é contraditória como é necessária, pois a negação do seu predicado implicaria a negação de seu sujeito.)
No final, você diz que "se Deus criou tudo o que existe no mundo e se o mal existe no mundo, então o Bem Absoluto criou o mal". A resposta clássica a esse problema é que Deus não criou tudo que há no mundo, pois não criou justamente o mal. Ele criou um ser livre capaz do mal. No máximo, então, Deus criou o mal por tabelinha... O que, convenhamos, não é a mesma coisa. A criação indireta do mal se deve ao ao fato de o mal moral ser necessário, condição de possibilidade, para um bem: a liberdade. Sem a possibilidade do mal, não existe liberdade. Os modernos (Mirandola, Rousseau, Kant) descobriram que a diferença específica do homem relativamente aos outros seres não é a racionalidade, o pensamento (racional) em si mesmo, mas antes a liberdade. Tese que Sarte tornaria conhecida por meio da frase "a existência precede a essência". Se eles estiverem certos, então, se Deus fosse tão bonzinho como você quer, nós, homens, simplesmente não seríamos o que somos, para o bem ou para o mal (perdão pelo trocadilho).
O seu argumento contra a existência de Deus, ou melhor, contra a não contraditoriedade e a sensatez da proposição "Deus existe" consiste em afirmar que o finito, imperfeito, relativo, contingente não pode se originar do infinito, perfeito, absoluto, necessário, e que, portanto, Deus não existe. Parece-me que esse seu argumento constitui a justa inversão da chamada prova ou argumento da contingência, segundo o qual a existência contingente já implica por si só o necessário, absoluto.
Voltando ao mal, se existe, Deus certamente não é um sentimental nem um moralista.
Agora tenho de voltar ao trabalho.
Obrigado,
edg
Li com certo desgosto o texto publicado na folha. Achei o texto sutilmente tendencioso.
Flew merecia mais.
Prezados debatedores,
Explicitem logicamente o que é infinito. Nenhum de nós poderá provar o que é, pela experiência, aquilo que se denomina erroneamente de infinito,nem os números podem ser considerados infinitos, com uma prova cabal -- poderíamos dizer sim que tendem a uma sucessão...Provar o infinito seria um absurdo lógico. Valha-me Deus! É por essas e outras que Mencken ironizava os filósofos e com Razão... Infinito é um ato de fé e se Deus é infinito...
23/04/2010
Prezados colegas,
Não quero ser chato, muito menos alguém que professe um preconceito contra Deus ou qualquer conceito similar. Outra observação, o esclarecimento aqui é tout court filosófico. Viram como estou chic? Não falo de um Deus religioso. Falo de um Deus demiurgo (filosófico). Vejam: muitos falam de Deus infinito, que Deus é infinito ou que o universo é infinito. Mas eu pergunto: quem pode provar o que é esse conceito infinito? Vejam que no plano lógico, o infinito não se sustenta. Então como podemos dizer que x é infinito, y é infinito, z é infinito? Seria a mesma coisa que dizer Gubyeryouseff é Wallwuyyiur ou não seria? Aliás, eu acho mesmo que é a linguagem, essa Deusa que pode tudo,
PARTE 1:
Edison,
Fico feliz que você tenha gostado da resposta. Seguem-se novas respostas aos seus comentários:
Edg: “Só Deus tem subsistência, asseidade, e todo o resto depende dEle para ser. (A criação não é necessária a Deus, a menos que se seja hegeliano.) Existindo ou não o mundo, Deus permanece o mesmo. Essa é a concepção clássica. Se você chama isso de alteridade, tudo bem; só não vejo em que essa alteridade afetaria a perfeição divina.”
R: Uso o termo “alteridade” no sentido mais simples possível: como substantivo do adjetivo “outro”; como antônimo de “identidade”. Só o que quero dizer quando digo que há alteridade entre o mundo e Deus é que o mundo não é Deus, ou seja, o mundo é outro em relação a Deus. Deus e mundo são duas coisas distintas (repare que uso o termo “coisa” aqui também no sentido mais largo e simples possível). Mas o Perfeito não poderia ser distinto de nada. Perfeito é aquilo a que nada falta. Se Deus não é o mundo, falta o mundo a Deus; logo, Deus não é perfeito.
Edg: “Mais adiante você se refere à mãe de todas as contradições, a proposição segundo a qual a verdade não existe. Mas esta proposição constitui uma contradição pragmática e não semântica. Nós estamos discutindo se "Deus existe" é uma proposição semanticamente contraditória e/ou sem sentido.”
R: Creio que a proposição “É verdade que não há verdade” seja semanticamente contraditória. Quanto a “Deus existe”, depende de como se define o termo “Deus”. Se se define Deus como, a um só tempo, o Bem Absoluto e o criador de tudo o que há no mundo – o que equivale a dizer: o criador também do mal -, então toda e qualquer proposição em que se faça presente o termo “Deus” será semanticamente contraditória, porque o próprio termo o é.
Edg: “No final, você diz que ‘se Deus criou tudo o que existe no mundo e se o mal existe no mundo, então o Bem Absoluto criou o mal’. A resposta clássica a esse problema é que Deus não criou tudo que há no mundo, pois não criou justamente o mal. Ele criou um ser livre capaz do mal. No máximo, então, Deus criou o mal por tabelinha... O que, convenhamos, não é a mesma coisa. A criação indireta do mal se deve ao fato de o mal moral ser necessário, condição de possibilidade, para um bem: a liberdade. Sem a possibilidade do mal, não existe liberdade. Os modernos (Mirandola, Rousseau, Kant) descobriram que a diferença específica do homem relativamente aos outros seres não é a racionalidade, o pensamento (racional) em si mesmo, mas antes a liberdade. Tese que Sartre tornaria conhecida por meio da frase ‘a existência precede a essência’. Se eles estiverem certos, então, se Deus fosse tão bonzinho como você quer, nós, homens, simplesmente não seríamos o que somos, para o bem ou para o mal (perdão pelo trocadilho).”
R: Você começa dizendo que Deus não criou o mal, mas, depois, diz que “Deus criou o mal por tabelinha” e indiretamente (você fala na “criação indireta do mal”). Criar “por tabelinha”, criar indiretamente, ainda é criar. De fato, não é exatamente “a mesma coisa”, como você diz, mas, para efeitos desta discussão, dá exatamente na mesma. De um jeito ou de outro, o mal estaria advindo do Bem Absoluto, o que é uma idéia absurda. E não há justificativa que suprima um absurdo lógico. “A criação do mal se justifica porque é condição para o advento de um bem, a liberdade.”... Ora, isso não faz a menor diferença, porque a questão não é essa! A questão não é se há justificativa ou não para a criação do mal. A questão é que essa criação, empreendida pelo Bem Absoluto, é uma total impossibilidade lógica, com ou sem justificativa. Se “Deus fosse tão bonzinho” quanto EU quero? Não fui eu quem inventou essa história de Deus ser o Bem Absoluto...
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “O seu argumento contra a existência de Deus, ou melhor, contra a não contraditoriedade e a sensatez da proposição ‘Deus existe’ consiste em afirmar que o finito, imperfeito, relativo, contingente não pode se originar do infinito, perfeito, absoluto, necessário, e que, portanto, Deus não existe. Parece-me que esse seu argumento constitui a justa inversão da chamada prova ou argumento da contingência, segundo o qual a existência contingente já implica por si só o necessário, absoluto.”
R: A existência do contingente talvez até implique o necessário e o absoluto, mas certamente não implica que aquele se origine destes (talvez estes não sejam nada mais que aquele considerado sob outro ponto de vista...), nem muito menos que o necessário e o absoluto sejam o Bem, o Amor, o criador do mundo, um ser transcendente, um ser dotado de consciência, etc., etc....
Sobre livre-arbítrio
“A inteligência age por juízo livre porque conhece o fim, os meios que levam ao fim e a relação mútua de fins e meios. Por isso, ela pode ser a causa do próprio juízo, pelo qual apetece algo e faz algo em vista do fim”.
O conceito foi desenvolvido por São Tomás de Aquino para explicar porque o livre-arbítrio, característico da inteligência humana – a suprema substância imaterial e incorruptível – é o maior dom da humanidade, o que a torna à imagem e semelhança de Deus.
Deitada à varanda, sob o céu sem uma nuvem da manhã de abril, penso na grandeza da misericórdia divina ao nos presentear com tal poder. Na verdade, o livre-arbítrio é a prova maior do amor incondicional de Deus pelo homem – escrevo e agradeço a graça de poder enxergá-lo.
De livre e espontânea vontade, escolho o caminho da fé, do amor e da humildade. E aos que me permitirem, ofereço a mão.
• A citação é do livro Compêndio de Teologia, de S. Tomás de Aquino (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1996).
Rafael,
R: Uso o termo “alteridade” no sentido mais simples possível: como substantivo do adjetivo “outro”; como antônimo de “identidade”.
E: Identidade é o antônimo de diferença e não de alteridade, que é antônimo de mesmidade. Identidade e mesmidade são sinônimos?
R: Só o que quero dizer ... é que o mundo não é Deus, ou seja, o mundo é outro em relação a Deus. Deus e mundo são duas coisas distintas (repare que uso o termo “coisa” aqui também no sentido mais largo e simples possível). Mas o Perfeito não poderia ser distinto de nada. Perfeito é aquilo a que nada falta. Se Deus não é o mundo, falta o mundo a Deus; logo, Deus não é perfeito.
E: Perfeito é aquilo a que não falta nenhuma perfeição. Segundo o seu conceito de perfeição, Deus deveria ser também mal, falso e feio. O mal, segundo a tradição cristã, não é um ser, uma substância, mas uma privação, uma negação. Deus criou seres capazes de afirmá-lo e de de negá-lo.
R: ... Criar “por tabelinha”, criar indiretamente, ainda é criar.
E: Se eu crio o meu filho, e o meu filho cria o meu neto, então crio eu também o meu neto? Se eu educo o meu filho no bem, e o meu filho faz o mal, sou eu o responsável pelo mal que o meu filho faz? Se de Deus não pode provir senão o bem, direta ou indiretamente (por meio de sua criatura), então Deus não é onipotente, pois, como o bem "liberdade" pressupõe a possibilidade do mal, neste caso Deus seria incapaz de criar seres livres.
R: De fato, não é exatamente “a mesma coisa” ... mas, para efeitos desta discussão, dá exatamente na mesma. De um jeito ou de outro, o mal estaria advindo do Bem Absoluto, o que é uma idéia absurda. E não há justificativa que suprima um absurdo lógico. “A criação do mal se justifica porque é condição para o advento de um bem, a liberdade.”... Ora, isso não faz a menor diferença, porque a questão não é essa! ... A questão é que essa criação, empreendida pelo Bem Absoluto, é uma total impossibilidade lógica, com ou sem justificativa.
E: Segundo a sua concepção, o absoluto é impossível. Pois o absoluto implica o relativo, mas o relativo não é o absoluto, assim como o mal não é o bem, a imperfeição não é a perfeição etc. Mas, nesse caso, todo o seu discurso não seria contraditório, uma vez que faz afirmações com pretensão à verdade absoluta sobre a impossibilidade do absoluto, identifica a maldade do mundo, e julga da perfeição das próprias ideias? -- A minha ideia de humildade não é ela mesma humilde, mas é mais ou menos perfeita.
R: ... Não fui eu quem inventou essa história de Deus ser o Bem Absoluto...
E: Deus não é bonzinho (como o meu avô era, p.ex.), ele é sumamente bom, a própria bondade. Mas a bondade divina não é sentimental nem moralista. Quando um pai dá umas palmadas no bumbum do seu filhinho, este chora como se estivesse sofrendo uma dor insuportável, como se fosse morrer. Mas o pai sabe que não é nada disso, que a dor vai passar em poucos minutos. -- Por que você acha que Deus poderia evitar o câncer na garganta da criança? E por que, afinal, ele devia fazer isso? Se Deus fizesse isso, faria sentido continuar falando em sofrimento, em drama, tragédia, enfim, em humanidade?
R: A existência do contingente talvez até implique o necessário e o absoluto, mas certamente não implica que aquele se origine destes (talvez estes não sejam nada mais que aquele considerado sob outro ponto de vista...), nem muito menos que o necessário e o absoluto sejam o Bem, o Amor, o criador do mundo, um ser transcendente, um ser dotado de consciência etc.
E: Eu não acho que Deus possa ser demonstrado. Aliás, creio que nem Anselmo, nem Tomás (que preferia falar de vias em vez de argumento ou prova), nem Descartes acreditavam na possibilidade de uma demonstração meramente lógica de Deus. Demonstrar significa fazer uma dedução reversa. Mas toda inferência dedutiva é derivada a partir de premissas mais gerais, logicamente anteriores. A nossa discussão era acerca da contraditoriedade e insensatez da proposição que afirma a existência de Deus.
Ab., e.
Rafael, concordo com várias de suas posições. Gostaria de ouví-lo a respeito do seguinte argumento.
Por sua definição, ao Perfeito nada falta. Logo, o mundo não falta ao Perfeito, pois se ao Perfeito falta o mundo, o Perfeito não é aquilo a que nada falta.
Grato pela atenção.
PARTE 1:
Edson,
Edg: “Identidade é o antônimo de diferença e não de alteridade, que é antônimo de mesmidade. Identidade e mesmidade são sinônimos?”
R: Depende do discurso em que esses termos apareçam. No caso específico do meu discurso, creio que já expliquei com clareza o bastante o que quero dizer quando afirmo que o mundo é outro em relação a Deus (ou melhor: seria, se houvesse Deus) e que isso impede a perfeição divina, que é o que realmente importa nesta discussão.
Edg: “Perfeito é aquilo a que não falta nenhuma perfeição.”
R: Em outras palavras: perfeito é aquilo que é perfeito... Trata-se de uma não-definição.
Edg: “Segundo o seu conceito de perfeição, Deus deveria ser também mal, falso e feio. O mal, segundo a tradição cristã, não é um ser, uma substância, mas uma privação, uma negação. Deus criou seres capazes de afirmá-lo e de negá-lo.”
R: Se o mal não fosse mais do que “uma privação, uma negação”, se fosse uma pura falta, uma pura ausência, ele não seria nada e, logo, não existiria. Mas é evidente que ele existe; caso contrário, sequer estaríamos falando sobre ele neste exato momento! Portanto, o conceito de mal da “tradição cristã” é falso.
Edg: “Se eu crio o meu filho, e o meu filho cria o meu neto, então crio eu também o meu neto? Se eu educo o meu filho no bem, e o meu filho faz o mal, sou eu o responsável pelo mal que o meu filho faz?”
R: Desculpe-me, mas, aqui, a sua argumentação descamba na sofística de modo flagrante. OBVIAMENTE, o verbo “criar” tem sentidos radicalmente distintos nas frases “eu crio o meu filho” e “Deus cria o homem”. Educar um filho, todos sabemos o que é. Criar uma criatura a partir do nada (ou a partir do barro) é determinar-lhe TODAS as possibilidades de ação, pensamento, sentimento ou o que quer que seja, sobretudo, se, além dessa criatura, cria-se também tudo o mais quanto exista no mundo.
Edg: “Se de Deus não pode provir senão o bem, direta ou indiretamente (por meio de sua criatura), então Deus não é onipotente, pois, como o bem ‘liberdade’ pressupõe a possibilidade do mal, neste caso Deus seria incapaz de criar seres livres.”
R: Concordo inteiramente. Só o que isso mostra é que as idéias de livre-arbítrio humano e onipotência divina também são incompatíveis.
Edg: “Segundo a sua concepção, o absoluto é impossível.”
R: Não vejo por quê. Impossível seria um absoluto que se distinguisse radicalmente do relativo – essa mesma distinção o impediria de ser de fato absoluto, já que o absoluto, necessariamente, contém tudo.
Edg: “Pois o absoluto implica o relativo, mas o relativo não é o absoluto, assim como o mal não é o bem, a imperfeição não é a perfeição etc.”
R: Sim, o absoluto não é o relativo, mas o contém. O mal não é o bem (e vice-e-versa) para mim, que os julgo, mas, em si e por si, o mal e o bem não são nada. E a imperfeição não é a perfeição, mas está contida nela, assim como o relativo no absoluto.
Edg: “Mas, nesse caso, todo o seu discurso não seria contraditório, uma vez que faz afirmações com pretensão à verdade absoluta sobre a impossibilidade do absoluto, identifica a maldade do mundo, e julga da perfeição das próprias ideias? -- A minha ideia de humildade não é ela mesma humilde, mas é mais ou menos perfeita.”
R: Meu discurso não é contraditório porque, ao contrário do que você diz, não faz afirmações “sobre a impossibilidade do absoluto”, nem do mal, nem da perfeição. A expressão “mais ou menos perfeita” é que é uma contradição em termos, porque evidentemente o Perfeito não admite o “mais ou menos”.
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “Deus não é bonzinho (como o meu avô era, p.ex.), ele é sumamente bom, a própria bondade. Mas a bondade divina não é sentimental nem moralista. Quando um pai dá umas palmadas no bumbum do seu filhinho, este chora como se estivesse sofrendo uma dor insuportável, como se fosse morrer. Mas o pai sabe que não é nada disso, que a dor vai passar em poucos minutos.”
R: Há qualquer coisa de obsceno em comparar o câncer infantil a “palmadinhas”. Esse tipo de desprezo pelo sofrimento terreno, que, na verdade, é um desprezo pela vida terrena (insignificante diante da “Vida Eterna”), é o que faz com que os fanáticos imponham sofrimento e morte aos outros de consciência limpa. Tenho certeza de que você não é um fanático, e, no entanto, você tem esse ponto em comum com eles. Não considera isso preocupante? Afinal de contas, se o pior dos sofrimentos aqui na Terra equivale a umas “palmadinhas no bumbum”, se esta vida é nada comparada com a outra, o que há de tão horrível assim no que eles fazem? Mas chega de “sentimentalismo” e “moralismo” da minha parte... Eis minha objeção propriamente lógica ao seu argumento: é irrelevante que o mal terreno seja desprezível e efêmero EM RELAÇÃO ao bem eterno. Mesmo sendo desprezível ou efêmero, ele continua sendo um mal e, portanto, não poderia advir do Bem Absoluto, por razões que julgo já ter exposto à exaustão.
Edg: “Por que você acha que Deus poderia evitar o câncer na garganta da criança? E por que, afinal, ele devia fazer isso? Se Deus fizesse isso, faria sentido continuar falando em sofrimento, em drama, tragédia, enfim, em humanidade?”
R: Como eu já disse, não é que Deus poderia ou deveria evitar o câncer. É que o câncer, assim como qualquer outro mal, não poderia logicamente existir nem sequer como uma conjectura remotíssima, caso tudo o quanto há tivesse sido criado pelo Bem Absoluto.
Edg: “Eu não acho que Deus possa ser demonstrado. Aliás, creio que nem Anselmo, nem Tomás (que preferia falar de vias em vez de argumento ou prova), nem Descartes acreditavam na possibilidade de uma demonstração meramente lógica de Deus. Demonstrar significa fazer uma dedução reversa. Mas toda inferência dedutiva é derivada a partir de premissas mais gerais, logicamente anteriores. A nossa discussão era acerca da contraditoriedade e insensatez da proposição que afirma a existência de Deus.”
R: Também não acho que Deus possa ser demonstrado – sobretudo, porque não creio que haja Deus. Sobre a “contraditoriedade e insensatez da proposição que afirma a existência de Deus”, é como eu também já disse: se definimos Deus como, a um só tempo, o Bem Absoluto e o criador de tudo o que há no mundo – o que equivale a dizer: o criador também do mal -, então toda e qualquer proposição em que se faça presente o termo “Deus” será contraditória, porque o próprio termo o é.
Afrânio,
Concordo inteiramente que o mundo não falte ao Perfeito. Na verdade, a meu ver, o Perfeito nada mais é do que o mundo (sendo que, por “mundo”, entendo tudo o quanto haja, em toda e qualquer instância).
DEUS...
Prefiro senti-lo do que discuti-lo.
O regozijo do jardineiro crente:
Deus deve estar orgulhoso de mim, que tudo empreendi para não vê-Lo chegar ao fim.
Prozaico
R: Em outras palavras: perfeito é aquilo que é perfeito... Trata-se de uma não-definição.
E: Perfeito não é aquilo a que nada falta, mas aquilo que não tem nenhuma imperfeição. E o mundo, que você considera o outro de Deus, é imperfeito. A existência espaçotemporal não é uma perfeição, mas uma imperfeição. O universo não é infinito mas indefinido, pois o espaço e o tempo são limitações.
R: Se o mal não fosse mais do que “uma privação, uma negação”, se fosse uma pura falta, uma pura ausência, ele não seria nada e, logo, não existiria. Mas é evidente que ele existe; caso contrário, sequer estaríamos falando sobre ele neste exato momento! Portanto, o conceito de mal da “tradição cristã” é falso.
E: O mal não é o nada, mas a negação do bem. O bem é um bem em si, o mal não. Você fala do mal como quem fala do diabo, de um ente, uma coisa.
R: Desculpe-me, mas, aqui, a sua argumentação descamba na sofística de modo flagrante. OBVIAMENTE, o verbo “criar” tem sentidos radicalmente distintos nas frases “eu crio o meu filho” e “Deus cria o homem”. Educar um filho, todos sabemos o que é. Criar uma criatura a partir do nada (ou a partir do barro) é determinar-lhe TODAS as possibilidades de ação, pensamento, sentimento ou o que quer que seja, sobretudo, se, além dessa criatura, cria-se também tudo o mais quanto exista no mundo.
E: Qualquer comparação com Deus é inadequada, pois Deus e a sua criação são incomensuráveis. Se o homem não é livre, então Deus é responsável pelo mal, o que seria contraditório. Isso é o que você deseja.
E: ... como o bem ‘liberdade’ pressupõe a possibilidade do mal, Deus seria incapaz de criar seres livres.”
R: Concordo inteiramente. Só o que isso mostra é que as idéias de livre-arbítrio humano e onipotência divina também são incompatíveis.
E: Lutero pensava assim como você. Acho que ele não entendeu o Erasmo.
R: ... Impossível seria um absoluto que se distinguisse radicalmente do relativo – essa mesma distinção o impediria de ser de fato absoluto, já que o absoluto, necessariamente, contém tudo.
E: O que significa conter o espírito? Conter o mal e o bem? Se existe, Deus contém o universo? Ou está contido nele? Eu não me incomodaria em dizer, metaforicamente, que não há nada fora de Deus. Mas que significam fora e dentro em relação a algo que não é espacial? Você tem uma visão conjuntista do absoluto. Assim você não pode entender mesmo as crenças de um cristão.
R: Sim, o absoluto não é o relativo, mas o contém. O mal não é o bem (e vice-e-versa) para mim, que os julgo, mas, em si e por si, o mal e o bem não são nada. E a imperfeição não é a perfeição, mas está contida nela, assim como o relativo no absoluto.
E: O relativo depende do absoluto, mas este não depende de nada, apenas de si. Causa sui. O universo inteiro não é nada diante de Deus ou do absoluto. A distância entre um grão de areia e Deus é tão infinita quanto a que existe entre o universo e Deus. Incomensurabilidade. -- Você precisa explicar como é que a beleza pode conter a feiúra, o bem o mal etc.
R: Meu discurso não é contraditório porque, ao contrário do que você diz, não faz afirmações “sobre a impossibilidade do absoluto”, nem do mal, nem da perfeição. A expressão “mais ou menos perfeita” é que é uma
contradição em termos, porque evidentemente o Perfeito não admite o “mais ou menos”.
E: Com P maiúsculo, claro que não. Você conhece a Perfeição? Já se deparou com Ela? Sobre um filme clássico, p.ex., podemos dizer que é perfeito -- ou quase. Dependendo de sua proximidade a um ideal. Um ideal de perfeição que, a rigor, jamais foi nem será realizado. Não existe nenhum filme Perfeito, pois não existe nada Perfeito neste mundo.
Em suma, o seu argumento pode ser resumido da seguinte forma: Deus não pode existir porque eu existo.
Edson Dognaldo Gil, costuma-se dizer que, na ausência de coerção externa, fazemos nossas escolhas, livremente, de acordo com a personalidade de cada um. Pergunto-lhe: a formação da personalidade nâo tem início no momento da concepção e não se desenvolve sob a influência dos ambientes em que a pessoa viveu? Sendo assim, não lhe parece que fazemos nossas escolhas segundo os ditames do genoma que nos foi dado e dos ambientes em que crescemos? Podemos deixar de fazer o que vimos fazendo? Antecipo minha resposta: sim, desde que a minha personalidade me predisponha a isso. Mas a minha personalidade me foi dada, não fui eu quem a construiu. Posso deixar de fazer o que venho fazendo, sim, mas, ao assim proceder, faço o que o meu genoma e as influências ambientais me fazem fazer. Gostaria de ouvir a sua opinião.
PARTE 1:
Edson,
Edg: “Perfeito não é aquilo a que nada falta, mas aquilo que não tem nenhuma imperfeição.”
R: Você não se dá conta da circularidade dessa suposta definição? “Perfeito é o que não tem imperfeição”... Ou seja: perfeito é o que não é imperfeito... Isso não diz nada. Equivale a afirmar: “Perfeito é o que é perfeito.” Obviamente, isso não é falso, mas pode significar qualquer coisa e, por isso, não significa nada.
Edg: “E o mundo, que você considera o outro de Deus (...)”
R: Repare que, conforme os sentidos que eu dou a esses termos, você também considera o mundo o outro de Deus, já que não crê que o mundo seja Deus. Se aquele não é mesmo em relação a este, então só pode ser outro.
Edg: “E o mundo, que você considera o outro de Deus, é imperfeito. A existência espaço-temporal não é uma perfeição, mas uma imperfeição. O universo não é infinito, mas indefinido, pois o espaço e o tempo são limitações.”
R: Ao que parece, sua verdadeira (ainda que tácita) definição de perfeição é idêntica à minha, malgrado as suas outras crenças. Por que o mundo é imperfeito? Por que a existência espaço-temporal é uma imperfeição? Porque ela implica finitude, limitação. E por que estas implicam imperfeição? Ora, porque ao finito, ao limitado, falta algo, justamente aquilo que se encontra para além de seu fim, de seus limites. Como se vê com facilidade, a definição de “perfeito” que subjaz a esse raciocínio é justamente a que eu propus em comentários anteriores e que você, contraditoriamente, nega no seu último: perfeito é aquilo a que não falta nada. Logo, para que Deus fosse perfeito, seria necessário que o mundo não lhe faltasse, isto é, que Deus fosse também o mundo, e não apenas o que há para além dele, para além do espaço e do tempo. Ademais, como eu já havia explicado, dou ao termo “mundo” o sentido mais abrangente possível, isto é, chamo de “mundo” o que quer que haja, em toda e qualquer instância. Assim, se houvesse alguma coisa para além do “mundo”, conforme o sentido que você dá ao termo, isto é, para além do espaço e do tempo, essa coisa ainda faria parte do “mundo” conforme o sentido que eu dou ao termo. Por isso é que afirmo que o mundo é perfeito.
Edg: “O mal não é o nada, mas a negação do bem. O bem é um bem em si, o mal não. Você fala do mal como quem fala do diabo, de um ente, uma coisa.”
Concordo que o mal não seja o nada (ainda que, em si, não seja nada, como o bem, aliás). Esse é o meu ponto. Se o bem fosse o ser e o mal fosse o não-ser, como quer a tradição cristã mencionada por você, o mal teria que ser justamente o nada. Como está claro que não é o caso, a tradição cristã está errada.
Edg: “Qualquer comparação com Deus é inadequada, pois Deus e a sua criação são incomensuráveis.”
R: Mas foi você quem fez uma “comparação com Deus”... Está claro que eu concordo que a sua comparação era completamente inadequada e, o que é pior, engendrava um sofisma na sua argumentação: se o pai, que “cria” o filho, não é responsável pelo mal que este faz, então, Deus, que “cria” o homem, também não é responsável pelo mal cometido por este... Como eu disse, o verbo “criar” tem sentidos radicalmente distintos nas duas proposições, o que torna o raciocínio inválido.
Edg: “Se o homem não é livre, então Deus é responsável pelo mal, o que seria contraditório. Isso é o que você deseja.”
R: O que eu desejo é que o Bem Absoluto governe o mundo, me ame pessoalmente, tenha um plano pessoal para mim e vença no final. Ocorre que eu não confundo os meus desejos com a realidade.
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “Lutero pensava assim como você. Acho que ele não entendeu o Erasmo.”
R: O que Erasmo pensava a respeito dessa questão?
Edg: “O que significa conter o espírito?”
R: Significa que o espírito não é ontologicamente distinto da matéria, mas sim um efeito dela e, portanto, dá-se inteiramente no mundo, está contido nele, inclusive espacial e temporalmente. Ainda que haja alguma coisa para além do espaço e do tempo, não creio que essa coisa seja o espírito, que é demasiado humano para isso. Essa coisa nos é inconcebível e, infelizmente, só podemos falar dela por metáforas. De um jeito ou de outro, ela (se houver) faz parte do mundo, como não poderia deixar de ser, já que o mundo é tudo, ou seja, é o próprio absoluto, que tudo abrange e contém. O que a noção de absoluto não admite, a meu ver, é justamente a idéia de uma distinção radical, como a que há, segundo os teístas, entre espírito/Deus, de um lado, e matéria/mundo, do outro.
Edg: “O que significa conter (...) o mal e o bem?”
R: Significa que o mal e o bem também se dão inteiramente no mundo, e não para além dele, não porque sejam “coisas” objetivas, mas sim porque, possuindo uma natureza inteiramente subjetiva, isto é, existindo exclusivamente no espírito, nem por isso extrapolam as fronteiras do mundo, já que o espírito mesmo não o faz.
Edg: “Se existe, Deus contém o universo? Ou está contido nele? Eu não me incomodaria em dizer, metaforicamente, que não há nada fora de Deus. Mas que significam fora e dentro em relação a algo que não é espacial?”
R: Em relação a algo que não é espacial, “fora” e “dentro” remetem, metaforicamente, à esfera do ser. Dizer que Deus está fora do mundo é dizer que Deus, literalmente, não existe no mundo e, metaforicamente, não é o mundo, não se confunde com ele ontologicamente. Haveria uma distinção radical entre mundo e Deus; um não conteria nem estaria contido no outro. Eu, se fosse cristão, me incomodaria sim em dizer, metaforicamente, que não há nada fora de Deus. Dizê-lo é afirmar que Deus e o mundo se confundem ontologicamente, é negar aquela distinção radical que me parece um ponto importante do cristianismo.
Edg: “Você tem uma visão conjuntista do absoluto. Assim você não pode entender mesmo as crenças de um cristão.”
R: Não creio que partilhar de uma crença seja condição para entendê-la.
CONTINUA...
PARTE 3:
Edg: “O relativo depende do absoluto, mas este não depende de nada, apenas de si.”
R: A rigor, há uma contradição entre as duas afirmações finais dessa frase. Se o absoluto depende de si, não é verdade que ele não dependa de nada. Na verdade, dizer que ele depende de si é dizer que ele depende de tudo, já que ele é tudo. Se houvesse algo fora de um suposto absoluto, este não seria de fato o absoluto, porque estaria em relação de alteridade (diferença, distinção) com o que quer que houvesse fora dele, só se definindo como si mesmo em contraste com essa sua exterioridade. O absoluto, para merecer esse nome, depende de que tudo esteja contido em si.
Edg: “O universo inteiro não é nada diante de Deus ou do absoluto.”
R: Se o universo está “diante” desse suposto absoluto, ou seja, se é algo distinto dele, é porque este não é um absoluto de fato.
Edg: “Você precisa explicar como é que a beleza pode conter a feiúra, o bem o mal etc.”
R: Não creio que a beleza contenha a feiúra, nem que o bem contenha o mal. O que eu disse é que o Perfeito contém a imperfeição e o absoluto contém o relativo. Não acredito que o belo e o bem sejam o absoluto e o Perfeito.
Edg: “Você conhece a Perfeição? Já se deparou com Ela? Sobre um filme clássico, p.ex., podemos dizer que é perfeito -- ou quase. Dependendo de sua proximidade a um ideal. Um ideal de perfeição que, a rigor, jamais foi nem será realizado. Não existe nenhum filme Perfeito, pois não existe nada Perfeito neste mundo.”
R: A perfeição de que estávamos falando (a qual, segundo o Antonio Cicero – com o que concordo –, é incompatível com a transcendência) não é essa perfeição axiológica a que você se refere agora. Com efeito, você está a redefinir sub-repticiamente os significados das palavras, justamente como o Antonio Cicero acusava “os crentes” de fazer.
Edg: “Em suma, o seu argumento pode ser resumido da seguinte forma: Deus não pode existir porque eu existo.”
R: Ou da forma seguinte: Deus não pode existir porque você existe, porque o homem existe, porque o mundo existe, porque há mal no mundo, no homem, em você e em mim, e porque o mal não poderia advir do Bem Absoluto. De fato, como já disse um filósofo, imaginar que um ser sumamente bom, onisciente e onipotente, criaria criaturas tão imperfeitas e más como nós seria dar provas de falta de humildade e lucidez. Crer em Deus seria pecado de orgulho.
Rafael,
Estamos nos repetindo, e isso, além de contraproducente, incomoda profundamente o dono deste espaço.
Já que você finalmente declarou a sua ideologia materialista, fisicalista, reducionista, não faz o menor sentido continuarmos a discussão: não falamos a mesma língua.
O materialismo e o espiritualismo são intradutíveis um pelo outro. É óbvio que você sempre vai achar que estou a avançar argumentos ad hoc, mudando o sentido das palavras, pois, para você, as palavras têm mesmo outro sentido do que têm para mim.
Para mim, por exemplo, absoluto, bem, beleza, bondade, uno, ser etc. são a mesma coisa, são transcendentais, ou, na linguagem religiosa, são nomes de Deus. -- Já imaginou se nós tivéssemos de esclarecer cada um desses termos neste espaço?
É evidente ainda que, para um materialista como você, Deus não pode existir. Além de impossível, já que, enquanto espírito, Deus teria de descender da matéria, o que de fato é insensato e contraditório, a existência Dele traria consequências desagradáveis para a sua.
Mas é ainda mais claro e distinto que, infelizmente para você, Deus é sim possível. Se não há prova a favor, também não há contra. Se a proposição expressa pela frase "Deus existe" não tem sentido, a expressa pela frase "Deus não existe" também não tem.
A atitude mais racional --e intelectualmente honesta-- é, então, a suspensão do juízo.
Ocorre que nós não somos seres meramente racionais --nem a razão se reduz à razão lógico-formal e instrumental. Por isso, eu opto conscientemente e de cabeça erguida por acreditar em Deus: não faltam boas razões para isso.
Não acreditar em Deus, com efeito, exige um esforço e uma fé ainda maiores do que acreditar Nele. Exige acreditar que o universo surgiu do acaso, um milagre a fazer inveja a qualquer deus. Exige acreditar que a vida se originou da matéria inanimada, uma coisa verdadeiramente estupenda. Exige acreditar que a Nona sinfonia e A divina comédia não passam de fumaça do cérebro... E assim por diante.
Diante de tanta credulidade, sinto-me como um autêntico ateu.
Abraço,
edg
PARTE 1:
Edson,
Edg: “Estamos nos repetindo, e isso, além de contraproducente, incomoda profundamente o dono deste espaço.”
R: É verdade.
Edg: “Já que você finalmente declarou a sua ideologia materialista, fisicalista, reducionista, não faz o menor sentido continuarmos a discussão: não falamos a mesma língua. O materialismo e o espiritualismo são intradutíveis um pelo outro.”
R: Não é verdade. Para começar, não se trata de uma “ideologia”, mas de uma posição filosófica. Em segundo lugar, há uma diferença entre discordar e “não falar a mesma língua”.
Edg: “É óbvio que você sempre vai achar que estou a avançar argumentos ad hoc, mudando o sentido das palavras, pois, para você, as palavras têm mesmo outro sentido do que têm para mim.”
R: Não é problema que as palavras tenham sentidos distintos para nós. Basta que isso seja notado. Por exemplo, quanto ao termo “mundo”, notei que, para mim, ele significava “tudo o quanto há, em qualquer instância”, enquanto que, para você, referia-se apenas ao que existe no tempo e no espaço. O problema é quando o sentido de um termo para você não só é diferente do que eu lhe dou, mas também muda sub-repticiamente ao longo do seu próprio discurso. Nossa divergência não obriga você a fazer isso. Você diz: “As palavras têm outros sentidos para você, por isso você sempre vai achar que estou mudando o sentido das palavras.” Ora, uma coisa claramente não se segue da outra. Ainda que os sentidos sejam diferentes para você, não vou achar que você os está mudando, desde que eles permaneçam os mesmos dentro do seu discurso. Só vou achar que você os está mudando se você de fato o fizer.
Edg: “É evidente ainda que, para um materialista como você, Deus não pode existir. Além de impossível, já que, enquanto espírito, Deus teria de descender da matéria, o que de fato é insensato e contraditório, a existência Dele traria consequências desagradáveis para a sua.”
R: A existência de Deus só traria conseqüências agradáveis para a minha. Para começar, esta duraria para sempre! Assim como a dos meus entes queridos. Eu estaria sendo pessoalmente amado pelo criador e governante do mundo. Ele teria um plano pessoal para mim. O Bem, no fim das contas, triunfaria sobre o mal. Após uma vida efêmera cheia de dificuldades e problemas, eu teria uma eternidade de beatitude esperando por mim – bastaria aceitar Deus. Enfim, tudo seria melhor do que de fato é. Seria uma maravilha. Se não creio nisso, é porque, em mim, o princípio de realidade é mais forte do que o do prazer.
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “Mas é ainda mais claro e distinto que, infelizmente para você, Deus é sim possível. Se não há prova a favor, também não há contra. Se a proposição expressa pela frase ‘Deus existe’ não tem sentido, a expressa pela frase ‘Deus não existe’ também não tem.”
R: Tente imaginar um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante. A expressão “um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante” é auto-contraditória e, por isso, não tem sentido. Logo, qualquer proposição que contenha essa expressão será também sem sentido (ao menos parcialmente), inclusive a frase “Não existe um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante”. Evidentemente, daí não decorre que a existência de um tal livro seja possível, muito pelo contrário. Da mesma forma, se a frase “Deus não existe” (assim como “Deus existe”) não tem sentido, é porque o próprio termo “Deus” não tem sentido, por ser auto-contraditório (desde que definido, a um só tempo, como Bem Absoluto e criador do mundo). Daí não se segue que a existência desse Deus seja possível, muito pelo contrário. Dizer que o termo “Deus” não tem sentido é justamente dizer que ele não só não corresponde como também não poderia logicamente corresponder a nada de real.
Edg: “Ocorre que nós não somos seres meramente racionais --nem a razão se reduz à razão lógico-formal e instrumental. Por isso, eu opto conscientemente e de cabeça erguida por acreditar em Deus: não faltam boas razões para isso.”
R: Esse parágrafo contém duas afirmações contraditórias. Primeira: “Não sou um ser meramente racional, por isso acredito em Deus.” Segunda: “Acredito em Deus porque não faltam boas razões para isso.” Com a primeira, eu posso concordar: além da razão, há também desejo em você, e, quando se trata de Deus, você prefere basear suas crenças neste do que naquela. Já da segunda, eu discordo: pelas razões, estas sim boas, que vim apresentando ao longo desta discussão.
Edg: “Não acreditar em Deus, com efeito, exige um esforço e uma fé ainda maiores do que acreditar Nele. Exige acreditar que o universo surgiu do acaso, um milagre a fazer inveja a qualquer deus. Exige acreditar que a vida se originou da matéria inanimada, uma coisa verdadeiramente estupenda. Exige acreditar que a Nona sinfonia e A divina comédia não passam de fumaça do cérebro... E assim por diante. Diante de tanta credulidade, sinto-me como um autêntico ateu.”
R: Não acreditar em Deus não exige acreditar em nada. A rejeição a uma crença não implica a adesão a qualquer outra. No entanto, os “milagres” a que você se refere, por mais incríveis que pareçam, são ainda passíveis de crença, porque as idéias mesmas deles não são logicamente auto-contraditórias. É plenamente possível que o improvável, o implausível, o incrível sejam reais (quem foi que disse que a realidade não é incrível?), desde que suas idéias mesmas sejam logicamente sustentáveis. Mais do que implausível e incrível, a idéia de Deus como, a um só tempo, Bem Absoluto e criador do mundo é auto-contraditória, ou seja, sem sentido e logicamente insustentável. Daí que a existência desse Deus não seja apenas altamente improvável, mas também logicamente impossível. Crer que o universo veio do acaso; a vida, da matéria morta; e a nona sinfonia, do cérebro é, admito, crer no improvável, no incrível e mesmo no maravilhoso, mas não exige credulidade nenhuma, porque essas crenças não se chocam contra a lógica. Crer que o Bem Absoluto criou o mundo, por outro lado, é crer no ilógico, no irracional.
Afrânio,
Concordo com as suas colocações sobre o problema da liberdade.
Edson Dognaldo Gil, antes que a paciência do Antonio Cícero se esgote por completo, gostaria de ouvi-lo sobre mais quatro questões:
1) Você concorda com Isaías (45-7): “Eu formo a luz e crio as trevas; eu faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.”
2) Você concorda com Jeremias, nas suas Lamentações(3-38) : “Porventura da boca do Altíssimo não sai o mal e o bem?”.
3) Se não houvesse sofrimento humano é claro que não faria sentido falar-se em sofrimento humano. E daí? Não poderia haver humanidade sem sofrimento?
4) Como você sabe que o Universo é finito?
Grato pela atenção.
Não me sinto capaz de entrar nessa discussão, apesar de intimamente achar um absurdo a idéia de um deus.
Mas seu último comentário comparando deus ao acaso pareceu-me um grande absurdo.
Como é possível afirmar ser muito mais difícil crer no acaso do que num deus?
o acaso já se incorporou ao senso comum, à ciência, pelo menos desde a física quântica.
entre as frases 'o acaso não existe'(típica dos adeptos do espiritismo) e a frase 'deus não existe', eu fico com a segunda.
Você diz também que: "absoluto, bem, beleza, bondade, uno, ser etc. são a mesma coisa" !!!!!
Não posso concordar. Eu acredito em poesia!
Prezado Edson Dognaldo,
eu aprecio bastante suas intervenções, e embora nem sempre concorde com todas elas, permitem-me boas reflexões. Vejo-me profundamente estimulado no intento de apreender os rudimentos de argumentação lógica, ausência q me oprime muito. E para piorar, a seara filosófica ainda é novidade para mim.
Com base numa exposição intuitiva, gostaria de diferenciar o cristão tomado em "lato sensu" daquele q designo de "stricto sensu". Pelo “lato sensu” refiro-me àquele q “conhece Cristo segundo a carne”, expressão q tomo do apóstolo Paulo de 2ºCoríntios 5:16. O cristão “stricto sensu” é aquele q conhece Cristo segundo o espírito. O Cristo é diferente nas duas formas de conhecimento.
Conhecer segundo a carne designa a situação em q o “self” se encontra ainda no estágio de consciência de predomínio do ego, sendo o ego aí no sentido da terminologia budista. Para esse estágio o apóstolo Paulo emprega várias expressões sinônimas (corpo animal, homem natural ou psíquico, homem terreno, homem velho, Adão feito alma vivente, corpo corruptível). Conhecer segundo o espírito requer q o “self” deva estar encampado no estágio seguinte ao carnal, cuja passagem é marcada pela “ressurreição”. Assim, não se é de estranhar passagens como “Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual.” (1º Coríntios 15:44). Outras expressões sinônimas paulinas para a consciência espiritual – corpo espiritual, homem espiritual, homem celestial, último Adão-espírito vivificante, corpo revestido de imortalidade, de incorruptibilidade.
Quem ainda tem o “self” no estágio “carnal” adjudica sentido de q o “corpo espiritual” é constituinte orgânico dos “escolhidos” após a morte biológica de um membro do “Homo sapiens”. Desconhece q a simbologia bíblica e seu texto não se ocupam do além, do pós-morte de ser humano, mas de diferentes dimensões da consciência humana.
É por esta razão, usando da terminologia simbólica bíblica, Paulo, ao se designar de consciência espiritual, decorrente de transcender a consciência egóica/carnal, e apontando q o hoje indevidamente diferenciado Antigo Testamento é de caráter reservado, destinado às pessoas como ele, pôde firmar em 1Coríntios 10:11: “Ora, tudo isso lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos.” [traduções outras: fim dos tempos, fim do mundo].
Edson, vejo-lhe razão ao afirmar “Assim, se for provado q Jesus ou não existiu ou não morreu na cruz ou, sobretudo, não ressuscitou, certamente a maior parte dos cristãos perderá a sua fé.”, pois esses “cristãos” são “lato sensu”, consciência carnal, onde impera o pecado (“errar o alvo”, isto é, estar desconforme com a Verdade, é ignorância, ou como bem diz Maomé - falsidade). A sura 17, v. 81 do Corão, proclama “E dize: ‘A verdade chegou; a falsidade desvaneceu-se. A falsidade está destinada a desvanecer-se.’” O q é o mesmo do dito em Efésios, “manifestar Cristo [Eu sou a Verdade e a Vida], ressuscitando-o dos mortos, sujeitando todas as coisas a seus pés.”.
Para o apóstolo Cristo é “poder de Deus e Sabedoria de Deus” (1Coríntios 1:24, “in fine”). Cristo não se situa na história, e pode muito bem representar-se por outros símbolos, como o mesmo Paulo aponta, tomando passagem do Êxodo 17:5-7, asseverando (1Coríntios 10:4) “e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual q os seguia; e a pedra era Cristo.” É com Cristo crucificado q se inaugura o ser humano de consciência espiritual. Por esta razão Paulo augura em 1Coríntios 2:2 “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado.” Ele não cobrava dos seus discípulos coríntios o conhecimento de fato de uma personagem também histórica.
Edson, como o texto ficou longo, preferi dividi-lo. Só remeterei ao simpaticíssimo Cícero a última parte se você achar conveniente, q assim começa: “E q é Deus para o apóstolo Paulo?” Espero críticas suas e dos demais colegas, para q eu me aperfeiçoe e estude.
Imaginar que um terremoto com dezenas de milhares de vítimas seja condição para a existência do livre-arbítrio entre os homens ou para o ingresso deles no Paraíso é menosprezar a inteligência divina e considerá-la semelhante à humana.
PARTE 1:
Edson,
Edg: “Estamos nos repetindo, e isso, além de contraproducente, incomoda profundamente o dono deste espaço.”
R: É verdade.
Edg: “Já que você finalmente declarou a sua ideologia materialista, fisicalista, reducionista, não faz o menor sentido continuarmos a discussão: não falamos a mesma língua. O materialismo e o espiritualismo são intradutíveis um pelo outro.”
R: Não é verdade. Para começar, não se trata de uma “ideologia”, mas de uma posição filosófica. Em segundo lugar, há uma diferença entre discordar e “não falar a mesma língua”.
Edg: “É óbvio que você sempre vai achar que estou a avançar argumentos ad hoc, mudando o sentido das palavras, pois, para você, as palavras têm mesmo outro sentido do que têm para mim.”
R: Não é problema que as palavras tenham sentidos distintos para nós. Basta que isso seja notado. Por exemplo, quanto ao termo “mundo”, notei que, para mim, ele significava “tudo o quanto há, em qualquer instância”, enquanto que, para você, referia-se apenas ao que existe no tempo e no espaço. O problema é quando o sentido de um termo para você não só é diferente do que eu lhe dou, mas também muda sub-repticiamente ao longo do seu próprio discurso. Nossa divergência não obriga você a fazer isso. Você diz: “As palavras têm outros sentidos para você, por isso você sempre vai achar que estou mudando o sentido das palavras.” Ora, uma coisa claramente não se segue da outra. Ainda que os sentidos sejam diferentes para você, não vou achar que você os está mudando, desde que eles permaneçam os mesmos dentro do seu discurso. Só vou achar que você os está mudando se você de fato o fizer.
Edg: “É evidente ainda que, para um materialista como você, Deus não pode existir. Além de impossível, já que, enquanto espírito, Deus teria de descender da matéria, o que de fato é insensato e contraditório, a existência Dele traria consequências desagradáveis para a sua.”
R: A existência de Deus só traria conseqüências agradáveis para a minha. Para começar, esta duraria para sempre! Assim como a dos meus entes queridos. Eu estaria sendo pessoalmente amado pelo criador e governante do mundo. Ele teria um plano pessoal para mim. O Bem, no fim das contas, triunfaria sobre o mal. Após uma vida efêmera cheia de dificuldades e problemas, eu teria uma eternidade de beatitude esperando por mim – bastaria aceitar Deus. Enfim, tudo seria melhor do que de fato é. Seria uma maravilha. Se não creio nisso, é porque, em mim, o princípio de realidade é mais forte do que o do prazer.
CONTINUA...
PARTE 2:
Edg: “Mas é ainda mais claro e distinto que, infelizmente para você, Deus é sim possível. Se não há prova a favor, também não há contra. Se a proposição expressa pela frase ‘Deus existe’ não tem sentido, a expressa pela frase ‘Deus não existe’ também não tem.”
R: Tente imaginar um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante. A expressão “um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante” é auto-contraditória e, por isso, não tem sentido. Logo, qualquer proposição que contenha essa expressão será também sem sentido (ao menos parcialmente), inclusive a frase “Não existe um livro, a um só tempo, presente e ausente a uma mesma estante”. Evidentemente, daí não decorre que a existência de um tal livro seja possível, muito pelo contrário. Da mesma forma, se a frase “Deus não existe” (assim como “Deus existe”) não tem sentido, é porque o próprio termo “Deus” não tem sentido, por ser auto-contraditório (desde que definido, a um só tempo, como Bem Absoluto e criador do mundo). Daí não se segue que a existência desse Deus seja possível, muito pelo contrário. Dizer que o termo “Deus” não tem sentido é justamente dizer que ele não só não corresponde como também não poderia logicamente corresponder a nada de real.
Edg: “Ocorre que nós não somos seres meramente racionais --nem a razão se reduz à razão lógico-formal e instrumental. Por isso, eu opto conscientemente e de cabeça erguida por acreditar em Deus: não faltam boas razões para isso.”
R: Esse parágrafo contém duas afirmações contraditórias. Primeira: “Não sou um ser meramente racional, por isso acredito em Deus.” Segunda: “Acredito em Deus porque não faltam boas razões para isso.” Com a primeira, eu posso concordar: além da razão, há também desejo em você, e, quando se trata de Deus, você prefere basear suas crenças neste do que naquela. Já da segunda, eu discordo: pelas razões, estas sim boas, que vim apresentando ao longo desta discussão.
Edg: “Não acreditar em Deus, com efeito, exige um esforço e uma fé ainda maiores do que acreditar Nele. Exige acreditar que o universo surgiu do acaso, um milagre a fazer inveja a qualquer deus. Exige acreditar que a vida se originou da matéria inanimada, uma coisa verdadeiramente estupenda. Exige acreditar que a Nona sinfonia e A divina comédia não passam de fumaça do cérebro... E assim por diante. Diante de tanta credulidade, sinto-me como um autêntico ateu.”
R: Não acreditar em Deus não exige acreditar em nada. A rejeição a uma crença não implica a adesão a qualquer outra. No entanto, os “milagres” a que você se refere, por mais incríveis que pareçam, são ainda passíveis de crença, porque as idéias mesmas deles não são logicamente auto-contraditórias. É plenamente possível que o improvável, o implausível, o incrível sejam reais (quem foi que disse que a realidade não é incrível?), desde que suas idéias mesmas sejam logicamente sustentáveis. Mais do que implausível e incrível, a idéia de Deus como, a um só tempo, Bem Absoluto e criador do mundo é auto-contraditória, ou seja, sem sentido e logicamente insustentável. Daí que a existência desse Deus não seja apenas altamente improvável, mas também logicamente impossível. Crer que o universo veio do acaso; a vida, da matéria morta; e a nona sinfonia, do cérebro é, admito, crer no improvável, no incrível e mesmo no maravilhoso, mas não exige credulidade nenhuma, porque essas crenças não se chocam contra a lógica. Crer que o Bem Absoluto criou o mundo, por outro lado, é crer no ilógico, no irracional.
Afrânio,
Concordo com as suas colocações sobre o problema da liberdade.
Rafael,
Você tem de mostrar onde é que eu mudei o sentido das palavras. Você acha que eu fiz isso porque pressupôs que eu as empregava no mesmo sentido que você.
Usei mundo no sentido de natureza, universo, tudo que há no espaço e ou no tempo. E não no sentido modal.
Absoluto, para mim, não é o todo, como para você (de onde é que você tirou isso, afinal?). Mas o incondicionado, o infinito, o necessário, enfim, na linguagem religiosa, Deus. A propósito, você já leu O mundo desde o fim, do Cicero? Parece que não.
Bem, bondade, beleza, uno, ser são, para mim, transcendentais, no sentido escolástico: supercategorias aplicáveis a tudo e comuntáveis entre si.
Jamais pretendi definir perfeição. Eu apenas modifiquei uma das suas frases com o intuito de deixar claro que a perfeição não consiste na totalidade de tudo e qualquer coisa, mas antes na plenitude de todas as potências. Daí Deus ser a perfeição das perfeições, ato puro.
O mal não é uma potência, mas uma privação: doença é privação de saúde, maldade de bondade, feiúra de beleza etc.
A ideia de Deus, como mostrou Kant, não é autocontraditória: Deus é possível -- o que qualquer ateu esclarecido, embora considere muito improvável, admite.
O mal só se torna um problema lógico quando se esquecem todos os outros artigos das doutrinas religiosas ortodoxas, como a católica. Mas refutar um artigo isolado é muito mais fácil que refutar toda uma doutrina desconhecida, não é?
Os partidários da versão lógica do argumento do mal, como você, assumem um insustentável ônus de prova: as proposições 'Há um criador supremo, onipotente e onibenevolente' não é logicamente contraditória com a proposição 'o mal existe'.
Você enxerga aí contradição porque pressupõe ou que, por ser onipotente, Deus podssa criar qualquer mundo que deseje, ou que, por ser bondoso, Deus tenha de preferir criar um mundo sem o mal.
Ora, se o livre-arbítrio (libertário) é possível, então não é necessariamente verdadeiro que Deus possa criar qualquer mundo possível. E também não é necessariamente verdadeiro que um Deus bondoso não possa ter bastantes razões para criar um mundo em que o mal (dor e sofrimento) seja possível.
Do ponto de vista estritamente lógico, o seu argumento é portanto duplamente inválido.
Note, por fim, que em momento algum eu afirmei que Deus existe. Eu afirmei que a ideia de Deus não é autocontraditória; que a proposição 'Deus existe' não é insensata; que há excelentes razões para crer em Deus, e, finalmente, que eu acredito em Deus.
Afirmações dogmáticas a respeito da in-existência de Deus ficaram por sua conta.
Abraço,
edg
PS: Sugiro que reflita um pouquinho sobre a prova de Pascal!
Edson,
Se, em Kant, Erasmo, Pascal, no “Mundo desde o fim” e na doutrina católica, houvesse de fato algum argumento a opor aos meus, você com certeza estaria reproduzindo esse argumento aqui, e estaria respondendo às minhas colocações de modo específico e no nível do detalhe, como eu faço com as suas (e como mandam as normas da discussão intelectual honesta), dizendo por que e em que ponto exatamente elas estão erradas, de acordo com Kant, Pascal, Erasmo, etc., em vez de simplesmente brandir esses nomes numa tentativa (frustrada) de me intimidar. Fora essa infame estratégia erística (típica de quem se vê sem argumentos, mas não quer dar o braço a torcer), essa sua última mensagem se resume à repetição de afirmações que você já tinha feito antes e às quais eu já havia respondido, sem ser refutado por você (muito embora você possa pretender o contrário. Na verdade, você simplesmente ignora os meus argumentos e me atribui afirmações que eu não fiz, as quais, então, você refuta). Assim sendo, remeto-o às minhas respostas já dadas em comentários anteriores.
Rafael,
Não queria dar a última palavra, mas precisava de lhe dizer que esta sua última mensagem demonstra que eu tinha mesmo razão quando afirmei que não falamos a mesma língua. Sabe por quê?
Porque eu penso quase a mesma coisa de você. Também acho que você simplesmente ignorou os meus argumentos, insistindo em impingir-me as suas definições e o seu vocabulário.
Mas não acho não que você tenha sido desonesto nem infame. Acho que você está sendo ingênuo, só isso.
Para começar, por achar este espaço apropriado para uma discussão aprofundada sobre Deus. E ainda por cima tendo sido avisado de que estava sem tempo, tanto que não respondi a mais ninguém além de você.
Mas, no fundo, não se trata de fato nem de você nem de mim. Trata-se de visões de mundo distintas e incomensuráveis.
Então, não me leve a mal. Se citei alguns nomes e títulos não foi para intimidá-lo com argumentos de autoridade. Foi para tentar mostrar a você que o problema do mal e o respectivo argumento na sua versão lógica têm uma longa história que convém conhecer.
O Cicero, no livro citado, elabora como ninguém o conceito de absoluto. Acho aliás muito mais aceitável o absoluto ciceroniano, abstrato e negativo, do que o seu, concreto e positivo --o que, como tentei mostrar, é uma contradição em termos.
Entretanto, pelo menos para mim, a discussão teve um saldo positivo.
Abraço,
edg
PS: Quando sugeri que refletisse sobre a prova de Pascal, quis dizer, evidentemente, a chamada aposta de Pascal. Isso a propósito das suas considerações sobre a relação da [in]existência de Deus com a sua própria existência. E desculpe-me pelos vários erros de português e de digitação. Eu sou mesmo meio lerdo: quando tento fazer as coisas às pressas...
Edson,
Basta reler rapidamente os comentários acima para verificar que eu nunca tentei impingir a você as minhas definições; apenas tentei explicitar as diferenças de vocabulário entre nós, para evitar que elas gerassem confusões. Tampouco, em momento algum, ignorei os seus argumentos; pelo contrário, respondi a cada um deles especificamente e no nível do detalhe. Você também fez isso com os meus – até um determinado momento. Desse ponto em diante (presumivelmente por já estar sem contra-argumentos), você passou a adotar outras estratégias, como: a alegação de que nossas visões de mundo são “incomensuráveis” (quando, na verdade, são apenas divergentes); a menção a uma série de nomes pretensamente intimidadores; e, agora, a alegação de falta de tempo e inadequação do espaço. Se, na “longa história” do problema do mal, assim como em Pascal ou onde quer que seja, há de fato alguma coisa que impugne fatalmente os argumentos que apresentei, você não deveria estar usando o tempo e o espaço de que dispõe da forma como está fazendo, mas sim mostrando exatamente que “coisa” é essa e como e por que, exatamente, ela impugna o meu raciocínio. Mas você prefere simplesmente sugerir a existência da tal “coisa”, de modo a que qualquer contra-argumentação da minha parte em relação a ela se torne impossível, ao mesmo tempo insinuando que, se eu estivesse de posse dos conhecimentos que você possui, não estaria dizendo o que estou dizendo. Pois bem: se fosse o caso, você deveria ser capaz de mostrar exatamente como e por quê. Mas você não o faz, o que, a meu ver, constitui forte evidência de que não há como fazê-lo. Naturalmente, você pode atribuí-lo à falta de tempo ou à inadequação do espaço. Quão conveniente, não é mesmo?
Rafael,
Você nem sequer conseguiu responder à minha primeira objeção... Não explicitou as premissas ocultas do seu argumento. Eu é que tive de fazer isso por você. E mesmo assim você não me respondeu. Limitou-se a repetir as mesmas teses batidas.
Parece que nós nem nos entendemos acerca do que seja um argumento válido. O seu argumento, que não tem absolutamente nada de original (foi formulado por Epicuro e repetido, entre outros, por Hume) é duplamente inválido --como mostrei. -- Se interessar a alguém, recomendo os comentários analítivos de A. Plantinga e didáticos de W. L. Craig (ambos disponíveis na net)
Encerrando a minha participação neste tópico (pelo que me desculpo com os demais participantes que me fizeram perguntas), gostaria de chamar a sua atenção para o fato de que -- para alguém que preza tanto a ética argumentativa -- não pega nada bem ficar atacando a pessoa do seu interlocutor e nem muito menos lhe dando ordens, dizendo o que ele devia ou não fazer.
Dá a impressão, Rafael, de que você esperava que eu lhe demonstrasse Deus, que eu fizesse questão de refutar o seu argumento, no limite, que eu o convertesse. Mas jamais me passou pela cabeça coisa parecida. Eu não concordo com nada do que você diz, nem com suas definições nem com seu argumento. Para mim basta, porém, mostrar por quê. Se você não quer entender, o problema não é mais meu.
Espero que o Cicero aprove este comentário, pois, embora não trate do assunto em tela, não é de modo algum impertinente.
Abraço,
edg
Edson,
Primeiro, você diz que demonstrou que o meu argumento “era duplamente inválido”; depois, você afirma que não fazia questão de refutá-lo. Há contradição entre essas afirmações (assim como entre várias outra suas, como eu mostrei sem que você me refutasse). Afinal de contas, você conseguiu mostrar que eu estava errado ou “nem queria mesmo”? Eu não esperava que você me convertesse nem lhe dei ordem alguma. Somente manifestei a minha frustração diante de certos procedimentos argumentativos da sua parte. Com efeito, nada do que você diz nessa sua última mensagem é verdade. Eu explicitei as premissas do meu argumento (que, aliás, nunca pretendeu ser original); você não mostrou que ele era inválido; e eu não ataquei a sua pessoa (apenas as suas estratégias argumentativas, a partir de um determinado ponto da discussão). Para verificá-lo, basta reler os comentários acima.
Caro Edson Dognaldo Gil, em manifestação anterior dei a entender que não acredito na existência do livre-arbítrio. Diz você, se bem o entendi, que sem o mal não haveria um bem maior, o livre-arbítrio. Não consigo aceitar que uma menina, depois de esganada, tenha sido lançada da janela de um prédio para o que pai,antes disso, pudesse gozar da liberdade de escolher entre o mal e o bem. Preciso de luzes, Edson, preciso de luzes!
Caro Afrânio,
AF: ...não acredito na existência do livre-arbítrio.
E: Donde se conclui que essa sua não crença é ela mesma ilivre. Mas como eu acredito, então ou somos de espécies distintas ou deve haver pelo menos alguma margem de manobra aí.
AF: Diz você ... que sem o mal não haveria um bem maior, o livre-arbítrio. Não consigo aceitar que uma menina, depois de esganada, tenha sido lançada da janela de um prédio para o que pai,antes disso, pudesse gozar da liberdade de escolher entre o mal e o bem.
E: A filha não sofreu PARA que o pai pudesse ser livre, mas sim PORQUE ele era livre, e, sendo assim, estava dada a possibilidade de ele praticar o mal.
Sem a possibilidade do mal moral, nós não passaríamos de marionetes. Do ponto de vista cristão, mesmo os anjos são capazes de praticar o mal.
O argumento segundo o qual Deus poderia, se quisesse, criar um mundo sem o mal -- já que Ele, além de onibenevolente também é onipotente, implica na tese segundo a qual Deus, se quisesse, poderia criar um círculo quadrado ou fazer com que 2 + 2 fosse igual a 5.
E o argumento segundo o qual Deus poderia pelo menos ter criado um mundo melhorzinho, uma humanidade menos má, implica um conceito fraco de liberdade, na verdade, uma pseudoverdade: não há santo que não seja capaz do pecado.
Agora, se me permite, preciso mesmo me retirar.
Abraço,
edg
Agradeço-lhe, caro Edson, por suas luzes. Como você já manifestou o desejo de não prosseguir agregando mais comentários ao texto do Antonio Cícero, prefiro acompanhá-lo. Com as questões que formulei, acrescidas das duas abaixo, creio ter apresentado uma amostra dos problemas que me ocupam e me ocuparão até o último dos meus dias. Pode ser que esteja sofrendo da pior das cegueiras, a que acomete os que não querem ver o que mentes mais perspicazes veem.
Eis as questões:
1) O pai que submeteu a filha à força da gravidade poderia deixar de fazer o que estava previsto, pelo Ser onisciente, que ocorreria?
2) A filha ingressou, após a queda, no Paraíso da bem-aventurança onde mal algum existe ou esse Paraíso é um quadrado redondo?
Mais uma vez, grato pela atenção. Com questões semelhantes a essas, continuarei me martirizando até o último dos meus suspiros após o qual espero ser iluminado, não pelas chamas que aqueceram Giordano Bruno e Savonarola, mas pela luz suave d´Aquele que um dia disse: Pai, perdoa-lhes porque NÃO SABEM O FAZEM.
Repito: Porque NÃO SABEM O QUE FAZEM.
Parabéns ao Antonio Cícero! Nunca vi um texto movimentar tanta massa cinzenta!
Que artigo fantástico, Antonio. Em que livro posso encontrar esse ensaio de Flew?
Felipe,
no livro organizado por J. Feinberg Reason and responsibility: readings in some basic problems of philosophy, publicado em Belmont, CA, pela Dickenson Publishing Company, em 1968.
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