ARTIGO:
A FALTA DE DIÁLOGO
Projeto na
Câmara quer cortar remuneração de artistas sem ouvi-los
Por Gilberto Gil,
do Rio
Originalmente
publicado no Jornal Folha de São Paulo, no dia 12/08/2020
A
falta de diálogo vem interditando a participação e o debate na
sociedade brasileira. E vou buscar como exemplo um fato que envolve,
neste momento, a música brasileira, um dos traços mais marcantes da
nossa cultura. O cenário é o Congresso Nacional.
Em
meio à maior angustia vivida pela saúde pública mundial e suas
consequências econômicas e sociais, alguns políticos decidiram investir
contra os direitos autorais que garantem a sobrevivência de
compositores, músicos e cantores. Estamos falando de uma iniciativa
recente, no Congresso, de um projeto que, se aprovado, impactará
diretamente 400 mil pessoas e suas famílias.
Por
meio das MPs 907 e 948, tentaram, recentemente, permitir que o setor
hoteleiro deixasse de pagar os direitos autorais pela
execução pública das obras musicais em quartos de hotéis. Ao setor
hoteleiro, uniram-se vários outros setores, todos com o mesmo
objetivo: não pagar pelo uso de obras musicais.
Não
conseguiram, mas não desistiram. Em sessão remota prevista para breve,
a Câmara poderá aprovar, sem ouvir os titulares de direitos autorais,
um requerimento de urgência ao projeto de lei 3.968 de 1997, ao qual
estão apensados mais de 50 outros projetos, todos buscando a isenção do
pagamento da remuneração que autores, músicos e intérpretes têm o
direito de receber pelo uso de suas obras musicais.
A
questão aqui colocada é que a Constituição, a Lei Federal de Direitos
Autorais e normas internacionais de proteção à propriedade intelectual
garantem aos autores o domínio sobre suas obras e o devido pagamento
pela execução pública de suas criações.
Em
2013, a sociedade abriu uma ampla discussão, que resultou em diversas
mudanças na Lei de Direito Autoral.
"Se o Congresso
agora entende que esta lei deve ser revista, nós, artistas e entidades
que nos representam, estamos dispostos a discutir o assunto. Queremos e
devemos ser convocados para essa discussão.
Não concordamos —é importante que se diga— nem com o momento nem com a
forma com que essa revisão está sendo proposta, pressupondo, de boa-fé,
que a intenção do Congresso é, de fato, avançar nessa questão.
É um
contrassenso que essa questão seja levada ao Congresso, de afogadilho,
sem o contraditório e o confronto de opiniões, sem que todos os
segmentos envolvidos se sentem à mesa.
Perguntamos:
para onde foi o diálogo? A democracia pressupõe a participação de todos
na definição dos processos políticos. Ouvir todas as partes
interessadas nas questões que lhes dizem respeito é a norma do jogo
democrático.
É
descabido e desumano que isso ocorra em meio a um momento inédito de
pandemia, quando milhões de brasileiros sofrem com incertezas em
relação à sua saúde, convivem indefesos e impotentes com a morte diária
de pessoas vitimadas por uma doença ainda não totalmente conhecida e
enxergam um futuro econômico incerto.
Além
de descabido e desumano, é traiçoeiro sacar de um projeto de 1997,
anterior a uma lei que foi votada e aprovado em 2013. Todo esse
movimento em falso para beneficiar interesses econômicos em detrimento
da sobrevivência de milhares de trabalhadores. Sim, artista é
trabalhador. Não podemos esquecer desse aspecto fundamental na
discussão que precisa ser feita.
A indústria
da música é uma parte importante da economia criativa do Brasil, e
no meio da crise buscou se reinventar. Munidos de uma tecnologia da
comunicação cada vez mais sem fronteiras, os artistas apostaram nas
lives para chegar ao seu público. E tem sido assim nesses tempos em que
não podemos nos abraçar, encontrar as pessoas que amamos nem nos
divertir com segurança.
Portanto,
a música está na contramão das medidas que tentam tolher a capacidade
criativa dos artistas, impondo-lhes num momento tão difícil maiores
restrições econômicas. Temos esperanças de que nenhuma medida nesse
sentido —uma afronta ao Estado democrático de Direito— será aprovada
sem que os artistas sejam chamados ao palco de debates para expor sua
opinião na defesa dos seus direitos.
Evitar
o debate, além de não democrático, pode soar como intolerância, palavra
tão utilizada ultimamente no que tange às relações humanas e políticas
e que deve estar longe, também, das questões que envolvam a cultura
—essa dimensão simbólica que nos caracteriza e nos liberta, tão
preciosa na construção de nossas identidades como povo e nação.
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