30.7.14
Luís de Camões: "Amor é um fogo que arde sem se ver"
Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
CAMÕES, Luís de. Lírica completa II. Sonetos. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1980.
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Poema
28.7.14
Antonio Cicero no Teatro Poeira, às 20h dos dias 29 e 30 de julho
TEATRO POEIRATEATRO PENSAMENTO . ANTÔNIO CÍCERO29 e 30 de julho
A poesia escrita é capaz de transportar o leitor para uma dimensão do ser inteiramente diferente da dimensão cotidiana – pragmática, utilitária, instrumental – em que todo o mundo passa a maior parte da vida. Trata-se da dimensão poética do ser. Para que a poesia escrita seja capaz disso, entretanto, cada poema deve ser lido comme il faut. Não se lê um poema como se lê um artigo de jornal, um e-mail, uma postagem do Facebook. Para fruir-se plenamente um poema, deve-se mergulhar nele, e isso exige tempo. Ora, como tal dispêndio gratuito de tempo entra em choque com as exigências da dimensão instrumental da vida contemporânea, muitos afirmam que a poesia tornou-se obsoleta em nosso mundo. Penso que, ao contrário, o valor da poesia é ainda hoje imenso exatamente porque, ao provisoriamente preterir a dimensão instrumental em proveito da dimensão poética do ser, ela enriquece imensamente a vida humana.
Nos encontros no Teatro Poeira pretendo convidar os ouvintes a ler, comentar e mergulhar comigo em alguns grandes poemas, de modo que, através deles, alcancemos a dimensão poética do ser.
26.7.14
John Keats: "Ode on a Grecian urn" / "Ode sobre uma urna grega": trad. Augusto de Campos
Ode sobre uma urna grega
I
Inviolada noiva de quietude e paz,
Filha do tempo lento e da muda harmonia,
Silvestre historiadora que em silêncio dás
Uma lição floral mais doce que a poesia:
Que lenda flor-franjada envolve tua imagem
De homens ou divindades, para sempre errantes.
Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes?
Que louca fuga? Que perseguição sem termo?
Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem?
II
A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Jovem cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.
III
Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
Das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
Capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!
Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
Para sempre a estuar de vida palpitante,
Acima da paixão humana e sua lida
Que deixa o coração desconsolado e exausto,
A fronte incendiada e língua ressequida.
IV
Quem são esses chegando para o sacrifício?
Para que verde altar o sacerdote impele
A rês a caminhar para o solene ofício,
De grinalda vestida a cetinosa pele?
Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente
Ou no alto da colina foi despovoar
Nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe
Em tuas ruas, e ninguém virá contar
Por que razão estás abandonada e triste.
V
Ática forma! Altivo porte! em tua trama
Homens de mármore e mulheres emolduras
Como galhos de floresta e palmilhada grama:
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
Tal como a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a idade apagar toda a atual grandeza,
Tu ficarás, em meio às dores dos demais,
Amiga, a redizer o dístico imortal:
"A beleza é a verdade, a verdade a beleza"
— É tudo o que há para saber, e nada mais.
Ode on a Grecian urn
I
Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?
II
Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear'd,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold lover, never, never canst thou kiss
Though winning near the goal — yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!
III
Ah, happy, happy boughs! that cannot shed
Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.
IV
Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.
V
O Attic shape! Fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
«Beauty is truth, truth beauty,» — that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
KEATS, John. "Ode on a Grecian urn" / "Ode sobre uma urna grega". Trad. Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto. Entreversos. Campinas: Unicamp, 2009.
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Poema
23.7.14
Cecília Meireles: "Retrato"
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida
a minha face?
MEIRELES, Cecilia. "Viagem". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.
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Poema
20.7.14
Sophia de Mello Breyner Andresen: "Arte poética"
Arte poética
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão
Olha fita escuta
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "O Búzio de Cós e outros poemas". Edição de Carlos Mendes de Sousa. In:_____. Obra poética. Alfragide: Caminho, 2011.
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18.7.14
Eugénio de Andrade: "Ao fim da tarde"
Ao fim da tarde
Ninguém esperava ver o mar naquele dia
mas era o mar
que estava ali, à porta naqueles olhos.
ANDRADE, Eugénio de. "Pequeno formato". In:_____. Poemas de Eugénio de Andrade. Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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Poema
17.7.14
Ferreira Gullar, "Falar"
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
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Poema
13.7.14
João Cabral de Melo Neto: trecho de "O sim contra o sim"
O sim contra o sim
[...]
________________________
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
Mondrian, também, da mão direita
andava desgostado;
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil.
Assim, não a trocou de braço:
queria-a mais honesta
e por isso enxertou
outras mais sábias dentro dela.
Fez-se enxertar réguas, esquadros
e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.
Assim foi que ele, à mão direita,
impôs tal disciplina:
fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda.
______________________________
[...]
MELO NETO, João Cabral de. "Serial". In:_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
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Poema
10.7.14
Friedrich Hölderlin: "Menschenbeifall" / "O aplauso dos homens": trad. Manuel Bandeira
Menschenbeifall
Ist nicht heilig mein Herz, schöneren Lebens voll,
Seit ich liebe? Warum achtet ihr mich mehr,
Da ich stolzer und wilder,
Wortereicher und leerer war?
Ach! der Menge gefällt, was auf den Marktplatz taugt,
Und es ehret der Knecht nur den Gewaltsamen;
An das Göttliche glauben
Die allein, die es selber sind.
HÖLDERLIN, Friedrich. "Gedichte". In:_____. Sämtliche Werke und Briefe. München: Carl Hanser, 1970.
O aplauso dos homens
Não trago o coração mais puro e belo e vivo
Desde que amo? Por que me afeiçoáveis mais
Quando era altivo e rude,
Palavroso e vazio?
Ah! só agrada à turba o tumulto das feiras;
Dobra-se humilde o servo ao áspero e violento.
Só creem no divino
Os que o trazem em si.
HÖLDERLIN, Friedrich. "O aplauso dos homens". Trad. Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.M
Não trago o coração mais puro e belo e vivo
Desde que amo? Por que me afeiçoáveis mais
Quando era altivo e rude,
Palavroso e vazio?
Ah! só agrada à turba o tumulto das feiras;
Dobra-se humilde o servo ao áspero e violento.
Só creem no divino
Os que o trazem em si.
HÖLDERLIN, Friedrich. "O aplauso dos homens". Trad. Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.M
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Poema
8.7.14
W.B. Yeats: "To be carved on a stone at Thoor Ballylee / "Para ser gravado numa pedra em Thoor Ballylee": trad. José Agostinho Baptista
To be carved on a stone at Thoor Ballylee
I, the poet William Yeats,
With old mill boards and sea-green slates,
And smithy work from the Gort forge,
Restored this tower for my wife George;
And may these characters remain
When all is ruin once again.
Para ser gravado numa pedra em Thoor Ballylee
Eu, o poeta William Yeats,
Com velhas tábuas de moinho e lousas verde-mar,
E ferro forjado na forja de Gort,
Restaurei esta torre para a minha esposa George;
Possam estes sinais permanecer
Quando tudo for ruínas outra vez.
YEATS, W. B. "De Michael Robartes and the dancer". In:_____. Uma antologia. Seleção e tradução de José Agostinho Baptista. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
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Poema,
William Butler Yeats
6.7.14
Ivan Junqueira: "O poema"
O seguinte -- belíssimo -- poema abrirá a coletânea "Essa música", de Ivan Junqueira, que será lançado pela Editora Rocco em outubro.
O poema
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
JUNQUEIRA, Ivan. "O poema". In:_____. O Globo. Caderno "Prosa e Verso". Rio de Janeiro, 5/7/2014.
O poema
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
JUNQUEIRA, Ivan. "O poema". In:_____. O Globo. Caderno "Prosa e Verso". Rio de Janeiro, 5/7/2014.
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4.7.14
Gastão Cruz: "A colher"
A colher
Reabro uma
gaveta da infância
e encontro a colher em desuso caída
a sopa lentamente se escoando
no prato fundo:
a vida
em certos dias tinha a forma
daquele objecto antigo
tocando-me nos
lábios com um calor excessivo.
CRUZ, Gastão. "Repercussão". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.
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