Considero impecável o seguinte texto de Adorno:
Moralidade e estilo. – O escritor acaba por perceber que quanto mais se exprime de modo preciso, consciencioso e adequado ao assunto, tanto mais o resultado literário é considerado difícil, enquanto que, à medida que faz formulações frouxas e irresponsáveis, é recompensado por uma certa compreensão. Não adianta asceticamente evitar expressões técnicas ou alusões a esferas da cultura que deixaram de existir. O rigor e a pureza da expressão lingüística, mesmo quando associados a extrema simplicidade, produzem um vácuo. O desleixo que flui com a corrente habitual da fala passa por um sinal de solidariedade e contato: sabe-se o que se quer porque se sabe o que o outro quer. Respeitar na expressão o objeto, em vez da comunicação, é suspeito: o que quer que seja específico e não derivado de esquemas dados parece inconsiderado, sintoma de excentricidade, quase de confusão. A lógica contemporânea, que faz tanta questão de clareza, aceitou ingenuamente tais perversões a título de linguagem cotidiana. A expressão vaga permite àquele que a ouve representar-se o que lhe agrada e o que de todo modo já pensa. A expressão rigorosa obriga à univocidade da compreensão, ao esforço do conceito, ao qual as pessoas foram desabituadas, e lhes exige, ante todo conteúdo, a suspensão dos lugares comuns, logo um isolamento a que elas violentamente se opõem. Só consideram inteligível aquilo que não precisam primeiro entender; só as toca e lhes é familiar o que é na verdade alienado, a palavra cunhada pelo comércio. Poucas coisas contribuem tanto para a desmoralização dos intelectuais. Quem quiser se livrar dela deve perceber no elogio da comunicação uma traição ao comunicado.
De: ADORNO, T.W. "Minima Moralia". In: _____. Gesammelte Schriften. Vol.4. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. p.114-15.
31.8.07
28.8.07
Emiliano Battista fez uma bela versão inglesa do meu poema Perplexidade. Ei-la:
PERPLEXITY
Not sure just where I lost my way,
Or whether I lost it at all.
Still, I can't help thinking it odd
That this had always been my lot.
PERPLEXIDADE
Não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.
De: CICERO, A., A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.67 (ed. portuguesa: Vila Nova do Famalicão, Quasi, 2006, p.45).
PERPLEXITY
Not sure just where I lost my way,
Or whether I lost it at all.
Still, I can't help thinking it odd
That this had always been my lot.
PERPLEXIDADE
Não sei bem onde foi que me perdi;
talvez nem tenha me perdido mesmo,
mas como é estranho pensar que isto aqui
fosse o meu destino desde o começo.
De: CICERO, A., A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.67 (ed. portuguesa: Vila Nova do Famalicão, Quasi, 2006, p.45).
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Tradução
25.8.07
A busca do novo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 25/08/2007:
A BUSCA DO NOVO
O POETA Ezra Pound inventou inúmeros slogans, máximas, esquemas classificatórios etc. O problema de tais gnomas e traçados é que, retirados dos contextos -muitas vezes polêmicos- em que foram enunciados, eles tendem a esclerosar, tornando-se dogmas que empobrecem as questões a que se referem.
Assim foi, por exemplo, a classificação dos poetas em inventores, mestres e diluidores. Com base nela, Mário Faustino, por exemplo -que, entretanto, em outras ocasiões, mostrou-se um crítico perspicaz-, foi capaz de declarar que Carlos Drummond de Andrade era, "quando muito, um "master". Não é um "inventor" [...]. Nunca seria um Pound, nem mesmo um Eliot".
A meu ver, vários equívocos se manifestam nessas proposições, todos devidos à aplicação rígida das classificações de Pound. Elas pressupõem, por exemplo, que Ezra Pound seja indiscutivelmente melhor do que T.S. Eliot. Por quê? Porque Pound se aproximaria mais do paradigma do inventor. Ora, 50 anos depois de Faustino ter feito esse juízo, nada indica que o valor relativo desses dois poetas venha algum dia a ser um ponto pacífico. Eu mesmo, se tivesse que escolher entre os dois, ficaria com Eliot.
Outra pressuposição inaceitável é a de que Drummond jamais estaria à altura de "um Pound" ou de "um Eliot". Como pode Faustino pensar isso? É que Drummond, segundo ele, é um mestre, não um inventor. Mas, para mim, é claro que Drummond era um inventor, um mestre e, às vezes, até um diluidor: e que era capaz de ser tudo isso num só poema. Que grande poema não é simultaneamente uma obra de mestria e de invenção? Drummond foi um dos maiores acontecimentos da poesia do século 20 e, enquanto poeta, não é em nada inferior a Pound ou a Eliot ou a quem quer que seja.
Mas o culto ao inventor é freqüentemente associado ao slogan "make it new", que pode literalmente ser traduzido por "faça-o novo" e, menos literalmente, por "faça o novo". A própria idéia da valorização da novidade não é nova; nem é nova a rejeição a essa idéia. Na Atenas clássica, Isócrates já dizia que o importante não é fazer o mais novo, mas o melhor. Mas hoje ouço ou leio freqüentemente jovens poetas, influenciados por essas idéias, falando em "buscar o novo". Evidentemente, a intenção deles não é, por exemplo, achar alguma obra de arte que acabe de ser feita (logo, que seja nova) e copiá-la. Não: o que querem é achar alguma idéia nova (no sentido de que jamais tenha sido pensada). Ora, não há como buscar uma idéia de que não se tenha idéia nenhuma, e não se pode ter idéia nenhuma de uma idéia que não exista. Não há como buscá-la: uma idéia nova aparece ou não. Por isso, Picasso dizia, com razão: "Não busco, encontro".
No fundo, o problema está na descontextualização do slogan "make it new". Recontextualizando-o, o poeta Haroldo de Campos o interpreta como uma exortação a "remastigar a herança cultural universal para "nutrir o impulso': renovar".
A injunção de Pound também deve ser entendida a partir da definição que ele próprio dá da literatura como "news that stays news": novas que permanecem novas; novidades que permanecem novidades. O novo que permanece novo não é simplesmente "o novo", mas aquilo que não envelhece. "Um clássico é um clássico", afirma Pound, com toda razão, "porque possui um certo eterno e irreprimível frescor".
Já os poetas líricos gregos pensavam desse modo. Os poetas épicos haviam considerado as Musas -as deusas que inspiram os poetas- como filhas da Memória. Supõe-se, às vezes, que isso representasse o reconhecimento da importância da memória e da memorização para a poesia oral. Outra hipótese é que esse mito refletisse o fato de que os poemas épicos preservavam a memória de feitos originários da comunidade.
Os poetas líricos, porém, compreenderam que o que preservava a memória dos feitos da comunidade era a memorabilidade dos próprios poemas que cantavam tais feitos. Para eles, o feito mais memorável de todos era, portanto, o próprio poema. A memória da Guerra de Tróia era preservada, não tanto porque fosse, ela mesma, memorável, mas em virtude da memorabilidade do poema que a cantava, a "Ilíada".
Nesse sentido, as Musas eram filhas da Memória porque representavam a fonte da qualidade (divina) que tornava os poemas deles -mesmo quando não tratavam dos "grandes temas", mas apenas, por exemplo, dos seus amores- inesquecíveis, memoráveis, dotados de "eterno e irreprimível frescor".
A BUSCA DO NOVO
O POETA Ezra Pound inventou inúmeros slogans, máximas, esquemas classificatórios etc. O problema de tais gnomas e traçados é que, retirados dos contextos -muitas vezes polêmicos- em que foram enunciados, eles tendem a esclerosar, tornando-se dogmas que empobrecem as questões a que se referem.
Assim foi, por exemplo, a classificação dos poetas em inventores, mestres e diluidores. Com base nela, Mário Faustino, por exemplo -que, entretanto, em outras ocasiões, mostrou-se um crítico perspicaz-, foi capaz de declarar que Carlos Drummond de Andrade era, "quando muito, um "master". Não é um "inventor" [...]. Nunca seria um Pound, nem mesmo um Eliot".
A meu ver, vários equívocos se manifestam nessas proposições, todos devidos à aplicação rígida das classificações de Pound. Elas pressupõem, por exemplo, que Ezra Pound seja indiscutivelmente melhor do que T.S. Eliot. Por quê? Porque Pound se aproximaria mais do paradigma do inventor. Ora, 50 anos depois de Faustino ter feito esse juízo, nada indica que o valor relativo desses dois poetas venha algum dia a ser um ponto pacífico. Eu mesmo, se tivesse que escolher entre os dois, ficaria com Eliot.
Outra pressuposição inaceitável é a de que Drummond jamais estaria à altura de "um Pound" ou de "um Eliot". Como pode Faustino pensar isso? É que Drummond, segundo ele, é um mestre, não um inventor. Mas, para mim, é claro que Drummond era um inventor, um mestre e, às vezes, até um diluidor: e que era capaz de ser tudo isso num só poema. Que grande poema não é simultaneamente uma obra de mestria e de invenção? Drummond foi um dos maiores acontecimentos da poesia do século 20 e, enquanto poeta, não é em nada inferior a Pound ou a Eliot ou a quem quer que seja.
Mas o culto ao inventor é freqüentemente associado ao slogan "make it new", que pode literalmente ser traduzido por "faça-o novo" e, menos literalmente, por "faça o novo". A própria idéia da valorização da novidade não é nova; nem é nova a rejeição a essa idéia. Na Atenas clássica, Isócrates já dizia que o importante não é fazer o mais novo, mas o melhor. Mas hoje ouço ou leio freqüentemente jovens poetas, influenciados por essas idéias, falando em "buscar o novo". Evidentemente, a intenção deles não é, por exemplo, achar alguma obra de arte que acabe de ser feita (logo, que seja nova) e copiá-la. Não: o que querem é achar alguma idéia nova (no sentido de que jamais tenha sido pensada). Ora, não há como buscar uma idéia de que não se tenha idéia nenhuma, e não se pode ter idéia nenhuma de uma idéia que não exista. Não há como buscá-la: uma idéia nova aparece ou não. Por isso, Picasso dizia, com razão: "Não busco, encontro".
No fundo, o problema está na descontextualização do slogan "make it new". Recontextualizando-o, o poeta Haroldo de Campos o interpreta como uma exortação a "remastigar a herança cultural universal para "nutrir o impulso': renovar".
A injunção de Pound também deve ser entendida a partir da definição que ele próprio dá da literatura como "news that stays news": novas que permanecem novas; novidades que permanecem novidades. O novo que permanece novo não é simplesmente "o novo", mas aquilo que não envelhece. "Um clássico é um clássico", afirma Pound, com toda razão, "porque possui um certo eterno e irreprimível frescor".
Já os poetas líricos gregos pensavam desse modo. Os poetas épicos haviam considerado as Musas -as deusas que inspiram os poetas- como filhas da Memória. Supõe-se, às vezes, que isso representasse o reconhecimento da importância da memória e da memorização para a poesia oral. Outra hipótese é que esse mito refletisse o fato de que os poemas épicos preservavam a memória de feitos originários da comunidade.
Os poetas líricos, porém, compreenderam que o que preservava a memória dos feitos da comunidade era a memorabilidade dos próprios poemas que cantavam tais feitos. Para eles, o feito mais memorável de todos era, portanto, o próprio poema. A memória da Guerra de Tróia era preservada, não tanto porque fosse, ela mesma, memorável, mas em virtude da memorabilidade do poema que a cantava, a "Ilíada".
Nesse sentido, as Musas eram filhas da Memória porque representavam a fonte da qualidade (divina) que tornava os poemas deles -mesmo quando não tratavam dos "grandes temas", mas apenas, por exemplo, dos seus amores- inesquecíveis, memoráveis, dotados de "eterno e irreprimível frescor".
22.8.07
Lançamento de "Todos os dias", de Jorge Reis-Sá
Hoje (quarta-feira) às 19h estarei, junto com o poeta Eucanaã Ferraz e a diretora editorial da Editora Record, Luciana Villas-Boas, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon (Av. Afrânio de Melo Franco, 290), para um bate papo sobre as relações literárias entre o Brasil e Portugal.
A ocasião é o lançamento do excelente romance "Todos os dias", de Jorge Reis-Sá, um dos talentos da nova geração de escritores portugueses.
A ocasião é o lançamento do excelente romance "Todos os dias", de Jorge Reis-Sá, um dos talentos da nova geração de escritores portugueses.
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Efemérides
19.8.07
Luís Miguel Nava: Rapaz
RAPAZ
Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.
NAVA, Luís Miguel. "Rapaz". In: Poesia completa. 1974-1994. Org. e posfácio de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.86.
Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.
NAVA, Luís Miguel. "Rapaz". In: Poesia completa. 1974-1994. Org. e posfácio de Gastão Cruz. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p.86.
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Poema
18.8.07
Leitura de poemas
Hoje (sábado) vou fazer uma leitura de poemas no POP -- Pólo de Pensamento -- às 18h.
O POP fica à rua Conde Afonso Celso, 103, no Jardim Botânico.
O POP fica à rua Conde Afonso Celso, 103, no Jardim Botânico.
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16.8.07
Gastão Cruz: Depois dum sonho
Do grande poeta português Gastão Cruz:
DEPOIS DUM SONHO
Não deixaste o deserto mas
árvores na casa Em sonho és
o sedutor arbusto reflectindo
para sempre o meio-dia O sol
porém desfaz-se quando as pálpebras
num ardor se entreabrem e te ocultas
nos ângulos do quarto Ausente
és pois o centro
feroz da minha vida transitas
como serpente fria no ventre
contraído escondes-te na
floresta que sem cessar se expande
onde dormíamos E erras
nos limites duma casa
destruída por raízes
De: CRUZ, G. "Depois dum sonho". In: Rua de Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p.9.
DEPOIS DUM SONHO
Não deixaste o deserto mas
árvores na casa Em sonho és
o sedutor arbusto reflectindo
para sempre o meio-dia O sol
porém desfaz-se quando as pálpebras
num ardor se entreabrem e te ocultas
nos ângulos do quarto Ausente
és pois o centro
feroz da minha vida transitas
como serpente fria no ventre
contraído escondes-te na
floresta que sem cessar se expande
onde dormíamos E erras
nos limites duma casa
destruída por raízes
De: CRUZ, G. "Depois dum sonho". In: Rua de Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p.9.
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Poema
11.8.07
Antonio Cicero: O segredo grego
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007:
O segredo grego
VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da cultura clássica ao publicar "Black Athena" ("Atena Negra"), em que defende que grande parte da cultura grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo. A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro -de menor importância, mas que justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas idéias sejam absolutamente novas. Elas correspondem, de acordo com ele, a uma revisão do que denomina o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do Egito. O "modelo antigo", comenta Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa época, ao se constituir a disciplina moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da influência egípcia e semítica sobre a Grécia. Segundo Bernal, isso se deu principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia, agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por africanos e asiáticos, que, para a nova 'ciência racial', haviam passado a ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão. Como poderia esta influenciar aquela? Lembro que foi, de fato, esse o modelo que aprendi nas aulas de história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo ariano. Entretanto, o seu próprio "modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus momentos mais extremos, afirma, por exemplo, que a cultura grega foi roubada da egípcia. Pois bem, longe de se dissociar de tais tolices, Bernal declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que está na moda, "apropriação", mas a palavra "roubo" não é inteiramente inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação não é eufemismo para roubo. Roubo é uma apropriação ilícita, em que o proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas, tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa originalidade não se deveu a "raça" nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão sem dúvida fundido a outras etnias no verdadeiro crisol étnico que era o Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito sem lei e irreverente" dos príncipes aqueus da idade heróica deve-se ao fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral, ao mesmo tempo que desprezavam as religiões dos povos conquistados, exatamente por serem religiões de povos conquistados. Pois foi mais ou menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega, abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres, tanto de qualquer Igreja quanto de qualquer Estado central.
O segredo grego
VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da cultura clássica ao publicar "Black Athena" ("Atena Negra"), em que defende que grande parte da cultura grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo. A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro -de menor importância, mas que justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas idéias sejam absolutamente novas. Elas correspondem, de acordo com ele, a uma revisão do que denomina o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do Egito. O "modelo antigo", comenta Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa época, ao se constituir a disciplina moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da influência egípcia e semítica sobre a Grécia. Segundo Bernal, isso se deu principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia, agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por africanos e asiáticos, que, para a nova 'ciência racial', haviam passado a ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão. Como poderia esta influenciar aquela? Lembro que foi, de fato, esse o modelo que aprendi nas aulas de história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo ariano. Entretanto, o seu próprio "modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus momentos mais extremos, afirma, por exemplo, que a cultura grega foi roubada da egípcia. Pois bem, longe de se dissociar de tais tolices, Bernal declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que está na moda, "apropriação", mas a palavra "roubo" não é inteiramente inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação não é eufemismo para roubo. Roubo é uma apropriação ilícita, em que o proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas, tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa originalidade não se deveu a "raça" nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão sem dúvida fundido a outras etnias no verdadeiro crisol étnico que era o Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito sem lei e irreverente" dos príncipes aqueus da idade heróica deve-se ao fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral, ao mesmo tempo que desprezavam as religiões dos povos conquistados, exatamente por serem religiões de povos conquistados. Pois foi mais ou menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega, abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres, tanto de qualquer Igreja quanto de qualquer Estado central.
7.8.07
Hudson Carvalho: "Cansei"
Eis um artigo muito lúcido e oportuno do jornalista Hudson Carvalho:
“CANSEI”
Há dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abespinhou-se por ter recebido uma trovejante vaia no Maracanã, na inauguração dos Jogos Pan-Americanos do Rio. Acostumado com platéias subsidiadas e plácidas, Lula surpreendeu-se com a apupada. Depois, passou a oscilar na digestão do processo. Ora, considerava as vaias naturais, supostamente assimilando-as; ora, observava-as como injustas e viciadas, contestando-as.
Esse pêndulo incorporava também outras percepções difusas e confusas. Ora, as vaias eram atribuídas a uma elite ingrata; ora, eram vistas como instrumentalizadas por uma oposição inconformada com os ditames das urnas. Essas ilações conjugadas, em parte, embasaram a suspeição governista quanto à natureza das arruaças promovidas pelo movimento paulista “Cansei”, no rastro da comoção gerada pelo trágico acidente do avião da TAM.
Em tese, o “Cansei”, como muitos de seus precursores, propõe-se como desaguadouro de todas as mazelas que assolam a sociedade civil, sobretudo aquelas potencializadas pelos descasos dos andaimes governamentais e institucionais. Amparado em causas incandescentes e justas, o “Cansei” – que nome infeliz! - ambiciona o lugar de catalisador de insatisfações múltiplas, notadamente, no caso, é verdade, daquelas que emparedam o governo Lula, tendo a animá-lo cidadãos e contribuintes justamente indignados, mas também foliões elitistas e oposicionistas juramentados. Em suma, um congênere do falecido movimento carioca “Basta”, desintegrado, prematuramente, por insuficiência popular, na sua tentativa de aporrinhar o, então, governante casal Garotinho.
É do direito de todos exercitarem a sua cidadania e espernearem contra a imobilidade, a incapacidade e a imoralidade governamental. Em geral, no entanto, infelizmente, esse tipo de iniciativa presta-se a caftinagens políticas, mesmo quando nascem sob égide virtuosa. E o “Cansei” não foge a regra. É muito difícil um movimento brotar no seio da sociedade sem se contaminar pelos rufiões de plantão. Há sempre políticos oportunistas querendo se assenhorear de aparatos organizados e de demandas nobres, transformando os primeiros em inocentes úteis. Essa simbiose, comumente, vitima os movimentos, conspurcando-os e lhes sugando legitimidade, o que os leva a definhar precocemente.
E o pior é que, comumente, muitos desses núcleos elitistas contestatórios têm a besuntá-los uma hipócrita pregação moralista e um preconceito militante. Uma coisa é o absolutismo da ética; outra é o relativismo do falso moralismo a granel.
No mais, ao incorporarem o brado “Fora Lula”, esses empreendimentos enamoram-se de um sentimento golpista indesculpável. Durante trânsito democrático, são os funis eleitorais que legitimam os governantes. Não podemos promover expurgos, fora das cerimônias eleitorais, apenas por avaliarmos um governo incapaz ou inconveniente. Portanto, tão despropositado como o “Fora Lula” de agora era o “Fora FHC” de outrora.
Esses segmentos, entretanto, não são os únicos em tentarem esgarçar a democracia. O próprio presidente Lula e acólitos costumam contribuir, quando, incomodados, ameaçam sublevar as massas em defesa de seu reino, remontando o imaginário de uma intimidação a la Chávez.
O melhor para o país é que todos assumam postura mais sensata e madura. Ninguém é obrigado a gostar do presidente Lula, e muitos têm razões concretas e subjetivas para criticá-lo e, até, vaiá-lo. Não se pode, todavia, pregar a sua degola além da agenda democrática e longe de ritos processuais. Por sua vez, o presidente tem que se habituar ao fato de que nem todos são obrigados a se simpatizarem com ele e com o seu governo, e que a exposição de queixas também faz parte do processo democrático. Nem o mais paranóico pode ver no limitado Cansei sequer um embrião de desestabilização.
A consolidação da democracia é o mais importante. E a democracia se caracteriza, principalmente, em função do respeito aos direitos das minorias. É normal que Lula, como qualquer um, não aprecie vaias dirigidas a si. O presidente da República tem a obrigação, no entanto, de aprender a conviver com elas. O Cansei, mesmo que contagiado, cumpre um papel. Que o governo cumpra o seu.
Hudson Carvalho
“CANSEI”
Há dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abespinhou-se por ter recebido uma trovejante vaia no Maracanã, na inauguração dos Jogos Pan-Americanos do Rio. Acostumado com platéias subsidiadas e plácidas, Lula surpreendeu-se com a apupada. Depois, passou a oscilar na digestão do processo. Ora, considerava as vaias naturais, supostamente assimilando-as; ora, observava-as como injustas e viciadas, contestando-as.
Esse pêndulo incorporava também outras percepções difusas e confusas. Ora, as vaias eram atribuídas a uma elite ingrata; ora, eram vistas como instrumentalizadas por uma oposição inconformada com os ditames das urnas. Essas ilações conjugadas, em parte, embasaram a suspeição governista quanto à natureza das arruaças promovidas pelo movimento paulista “Cansei”, no rastro da comoção gerada pelo trágico acidente do avião da TAM.
Em tese, o “Cansei”, como muitos de seus precursores, propõe-se como desaguadouro de todas as mazelas que assolam a sociedade civil, sobretudo aquelas potencializadas pelos descasos dos andaimes governamentais e institucionais. Amparado em causas incandescentes e justas, o “Cansei” – que nome infeliz! - ambiciona o lugar de catalisador de insatisfações múltiplas, notadamente, no caso, é verdade, daquelas que emparedam o governo Lula, tendo a animá-lo cidadãos e contribuintes justamente indignados, mas também foliões elitistas e oposicionistas juramentados. Em suma, um congênere do falecido movimento carioca “Basta”, desintegrado, prematuramente, por insuficiência popular, na sua tentativa de aporrinhar o, então, governante casal Garotinho.
É do direito de todos exercitarem a sua cidadania e espernearem contra a imobilidade, a incapacidade e a imoralidade governamental. Em geral, no entanto, infelizmente, esse tipo de iniciativa presta-se a caftinagens políticas, mesmo quando nascem sob égide virtuosa. E o “Cansei” não foge a regra. É muito difícil um movimento brotar no seio da sociedade sem se contaminar pelos rufiões de plantão. Há sempre políticos oportunistas querendo se assenhorear de aparatos organizados e de demandas nobres, transformando os primeiros em inocentes úteis. Essa simbiose, comumente, vitima os movimentos, conspurcando-os e lhes sugando legitimidade, o que os leva a definhar precocemente.
E o pior é que, comumente, muitos desses núcleos elitistas contestatórios têm a besuntá-los uma hipócrita pregação moralista e um preconceito militante. Uma coisa é o absolutismo da ética; outra é o relativismo do falso moralismo a granel.
No mais, ao incorporarem o brado “Fora Lula”, esses empreendimentos enamoram-se de um sentimento golpista indesculpável. Durante trânsito democrático, são os funis eleitorais que legitimam os governantes. Não podemos promover expurgos, fora das cerimônias eleitorais, apenas por avaliarmos um governo incapaz ou inconveniente. Portanto, tão despropositado como o “Fora Lula” de agora era o “Fora FHC” de outrora.
Esses segmentos, entretanto, não são os únicos em tentarem esgarçar a democracia. O próprio presidente Lula e acólitos costumam contribuir, quando, incomodados, ameaçam sublevar as massas em defesa de seu reino, remontando o imaginário de uma intimidação a la Chávez.
O melhor para o país é que todos assumam postura mais sensata e madura. Ninguém é obrigado a gostar do presidente Lula, e muitos têm razões concretas e subjetivas para criticá-lo e, até, vaiá-lo. Não se pode, todavia, pregar a sua degola além da agenda democrática e longe de ritos processuais. Por sua vez, o presidente tem que se habituar ao fato de que nem todos são obrigados a se simpatizarem com ele e com o seu governo, e que a exposição de queixas também faz parte do processo democrático. Nem o mais paranóico pode ver no limitado Cansei sequer um embrião de desestabilização.
A consolidação da democracia é o mais importante. E a democracia se caracteriza, principalmente, em função do respeito aos direitos das minorias. É normal que Lula, como qualquer um, não aprecie vaias dirigidas a si. O presidente da República tem a obrigação, no entanto, de aprender a conviver com elas. O Cansei, mesmo que contagiado, cumpre um papel. Que o governo cumpra o seu.
Hudson Carvalho
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4.8.07
Paulo Henriques Britto: Trompe l'oeil
Paulo Henriques Britto estará em breve lançando o seu livro Tarde. Enquanto isso, publico o seu belíssimo poema “Trompe l’oeil”, do livro Macau:
TROMPE L'OEIL
Os fracassos todos de uma existência,
quando cuidadosamente empilhados,
observada uma certa coerência,
parecem uma espécie de pirâmide
monumental — ainda que truncada,
talvez — desde que olhados à distância
no momento preciso em que os atinge
o sol do entardecer, formando um ângulo
cujo valor exato se obtém
com base no... mas não, é mais esfinge
que pirâmide, sim, pensando bem —
quer dizer, uma esfinge estilizada,
sugerida apenas, como convém
a um monumento, ou cenotáfio, ao nada.
De: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.74.
TROMPE L'OEIL
Os fracassos todos de uma existência,
quando cuidadosamente empilhados,
observada uma certa coerência,
parecem uma espécie de pirâmide
monumental — ainda que truncada,
talvez — desde que olhados à distância
no momento preciso em que os atinge
o sol do entardecer, formando um ângulo
cujo valor exato se obtém
com base no... mas não, é mais esfinge
que pirâmide, sim, pensando bem —
quer dizer, uma esfinge estilizada,
sugerida apenas, como convém
a um monumento, ou cenotáfio, ao nada.
De: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.74.
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Poema
2.8.07
Sair
O último poema do meu livro A cidade e os livros:
De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.
SAIR
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.
De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.
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