30.5.16

Friedrich Hölderlin: "Abbite" / "Perdão!": Paulo Quintela




Perdão!

Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei
A dourada paz dos deuses, e das mais secretas,
Das mais fundas dores da vida
Muitas de mim aprendeste.

Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens
Passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu
Repousas depois e brilhas de novo
Na tua beleza, ó luz suave!




Abbitte

Heilig Wesen! gestört hab’ ich die goldene
Götterruhe dir oft und der geheimeren
Tiefern Schmerzen des Lebens
Hast du manche gelernt von mir.

O vergiß es, vergieb! gleich dem Gewölke dort
Vor dem friedlichen Mond, geh’ ich dahin und du
Ruhst und glänzest in deiner
Schöne wieder, du süßes Licht!




HÖLDERLIN, Friedrich. "Abbite" / "Perdão!". In:_____. Poemas. Org. e trad. de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1959.

27.5.16

Nelson Ascher: "Vale tudo"




Vale tudo

Quando nada
mais nos resta
vale tudo

pois se tudo
mais vai sempre
dar em nada

nada mais nos
vale salvo
tentar tudo

mas tentando
tudo nesse
tudo ou nada

não por nada
nada é tudo
que nos resta

pois no vale
tudo nada
vale a pena.



ASCHER, Nelson. "Vale tudo". In:_____. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

25.5.16

Manuel António PIna: "Amor como em casa"




Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.




PINA, Manuel António. "Amor como em casa". In:_____. Todas as palavras. Poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

23.5.16

Francisco Alvim: "Revolução"




REVOLUÇÃO

Antes da revolução eu era professor
Com ela veio a demissão da Universidade
Passei a cobrar posições, de mim e dos outros
(meus pais eram marxistas)
Melhorei nisso –
hoje já não me maltrato
nem a ninguém


ALVIM, Francisco. "Revolução". In:_____. Passatempo e outros poemas. São Paulo: Brasiliense, 1981.

18.5.16

Carlos Nejar: "Canção do cego barqueiro"




Canção do cego barqueiro

Orelha vasta de água,
o que escutas
vem de onde?

Orelha de céu chegado;
caracol de vogais, rio,
o que escutas
vem de quando?

E as coisas parecem ver-nos,
se as estivermos amando.

Trouxe os meus dias pequenos
como ramos de jacintos.
E que possam compreender-me.
E eu a eles, por instinto.

Os dias grandes são poucos,
gloriosos, talvez extremos.
E os diamantes no fogo
duram, enquanto morremos.



NEJAR, Carlos. "Canção do cego barqueiro". In:_____. Canções. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

15.5.16

Federico García Lorca: "Se ha quebrado el sol" / "Partiu-se o sol": tradução de William Agel de Melo





          Partiu-se o sol

          Partiu-se o sol
          entre nuvens de cobre.
Dos montes azuis chega um ar sonoro.
          No prado do céu,
          entre flores de estrelas,
          a lua vai em crescente
          como um garfo de ouro.

Pelo campo (que espera os tropéis de almas),
          vou carregado de pena,
          pelo caminho só;
          porém o meu coração
          um raro sonho canta
         de uma paixão oculta
         a distância sem fundo.

         Ecos de mãos brancas
         sobre a minha fronte fria,
         paixão que se madurou
         com pranto de meus olhos!





          Se ha quebrado el sol

          Se ha quebrado el sol
          entre nubes de cobre.
De los montes azules llega un aire suave.

          En el prado del cielo,
          entre flores de estrellas,
          va la luna en creciente
          como un garfio de oro.

Por el campo (que espera los tropeles de almas),
          voy cargado de pena,
          Por el camino solo;
          Pero el corazón mío
          un raro sueño canta
          de una pasión oculta
          a distancia sin fondo.

          Ecos de manos blancas
          sobre mi frente fría
          ¡pasión que maduróse
          con llanto de mis ojos!



LORCA, Federico García. "Se ha quebrado el sol" / "Partiu-se o sol". In:_____. "Poemas esparsos". In:_____. Obra poética completa. Tradução de William Agel de Melo. Brasília: Editora U. de Brasília. São Paulo: Martins Fontes, 1989.



12.5.16

Christovam de Chevalier: "Ofício 2"




Ofício 2


Página em branco
lida em voz alta.
O poema é, no entanto
invisível esmeralda.

Sem escada de incêndio
que lhe indique a saída
o poeta solfeja o silêncio.
Cantar é urgente como a vida



CHEVALIER, Christovam. "Ofício 2". In:_____. No escuro da noite em claro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.

10.5.16

Rose Ausländer: "Du und ich" / "Você e eu": trad. Arthur Nogueira




Você e eu

eu digo
você e eu
somos nosso mundo

ele é um eu
como eu e você

floresce como nós
morrerá como nós

e dará lugar
a outros mundos





Du und ich

Ich sage
du und ich
sind unre Welt

Sie ist ein Ich
wie ich und du

blüht wie wir
wird sterben wie wir

und Platz machen
andern Welten



AUSLÄNDER, Rose. "Du und ich". In:_____. Im Atemhaus wohnen. Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 1995.

8.5.16

Cecília Meireles: "Reinvenção"




Reinvenção

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... – mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só – no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só – na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.



MEIRELES, Cecília. "Reinvenção". In:_____. "Vaga música". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.


6.5.16

Ferreira Gullar: "Uma voz"




Uma voz

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando.



GULLAR, Ferreira. "Uma voz". In:_____. "Dentro da noite veloz". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

4.5.16

André Ladeia: "Efêmera"



Efêmera

A terra boia no oceano negro
E estrelado
Ela dança e rodopia;

Ah! Como é bela
E frágil...

A Terra é uma bolha de sabão.



LADEIA, André. "Efêmera". In:_____. Alçapão. Rio de Janeiro: Oito e Meio, 2016.

2.5.16

Francisco Sá de Miranda: "Cantiga III"




Cantiga III (Redação segunda)

Que é isto? onde me lançou
esta tempestade má?
Qu’é de mi, se não sou lá,
e cá comigo não vou?

Inda que me eu cá não via
(tudo vos confessarei)
onde a vós e a mi deixei
cuidava que me acharia;
agora quem, donde estou,
novas de mi me trará?
Pois dizeis que não sou lá,
não sei, sem mi, onde vou.



SÁ de MIRANDA, Francisco. "Cantiga III" In: REIS-SÁ, Jorge e LAGE, Rui. Poemas portugueses -- Antologia da Poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Porto: Porto Editora, 2009.