31.12.16
António Barbosa Bacelar: "A variedade do mundo"
A variedade do mundo
Este nasce, outro morre, acolá soa
Um ribeiro que corre, aqui suave,
Um rouxinol se queixa brando e grave,
Um leão c'o rugido o monte atroa.
Aqui corre uma fera, acolá voa
C'o grãozinho na boca ao ninho, ua ave,
Um derruba o edifício, outro ergue a trave,
Um caça, outro pesca, outro enferroa.
Um nas armas se alista, outro as pendura,
Ao soberbo Ministro aquele adora,
Outro segue do Paço a sombra amada.
Este muda de amor, aquele atura.
Do bem, de que um se alegra, o outro chora.
Oh Mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!
BACELAR, António Barbosa. "A variedade do mundo". In: REIS-SÀ, Jorge e LAGE, Rui (orgs.). Poemas portugueses. Antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao Séc. XXI. Porto: Porto Editora, 2009.
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Poema
29.12.16
Adriano Nunes: "Viver"
Agradeço a meu amigo Adriano Nunes pelo belo poema que me dedicou:
Viver
para Antonio Cicero
Viver
para Antonio Cicero
Existe um eco entre um ou e um se.
Resiste assim em mim um outro eu.
Enfim eu bem que disse - que se deu?
O fim é sem começo mesmo - diz-se
Resiste assim em mim um outro eu.
Enfim eu bem que disse - que se deu?
O fim é sem começo mesmo - diz-se
Desde quando criança me fiz meu
Sol de nãos e sins, sonhos de sons, se-
Mente aberta pra tudo que pudesse
Dar à vez outra vida, a que se deu
Sol de nãos e sins, sonhos de sons, se-
Mente aberta pra tudo que pudesse
Dar à vez outra vida, a que se deu
Entre um elo e um ethos, sob um ver-
So de alegria, o amor para rever
O que já valeria a pena, o ver
So de alegria, o amor para rever
O que já valeria a pena, o ver
Da vertigem do flerte, pra sorver
A dívida de ser e não-ser, ver-
Ve de um instante raro que é viver.
A dívida de ser e não-ser, ver-
Ve de um instante raro que é viver.
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Viver
27.12.16
Claudia Roquette-Pinto: "a caminho"
a caminho
"Abriu-se majestosa e circunspecta
sem emitir um som que fosse impuro"
Carlos Drummond de Andrade
estava a caminho: canoa
comprida-boa partindo
a sombra, a meio-e-meio, no rio
silêncio-cutelo e, certo,
o dia aberto seu ventre
(azáfama de zangões urgentes)
cego
estava a caminho e era
tido por meu o rio
sem costas nem frente,
a brio
inteirado em silêncio
por dentro uma chusma de insetos
vazante, na beira, o estrépito
— meu enxame de equívocos
estava a caminho, e na curva
as águas fendidas as duas
águas se apartam, súditas
do incêndio, das espadas,
do verde (sem acaso)
ruivo que picava
as folhas do gravatá
o gravatá — o suave
súbito roçar de
dedos (vermelho-
acicate) no umbigo
dos nimbos, acordar
a paisagem
o gravatá — seu recato:
ritmo intacto, enflorado,
servindo de pasto
para besouros, girinos
bebedor de símios
o gravatá — o severo
cerne,
o fero centro que ergue
verde-negro, estrela
de silêncio
e precisão
aqui a água turva,
de mistura com raízes
a curvatura da terra
empena,
oblitera a íris
aqui o rio dobra, a nau
soçobra, a cuia escura
do céu emborca
uma água dura,
às catadupas,
cai — fustiga como um pai
resta o caminho — o sombrio
seguir-do-rio (tateio
à guisa de aprendiz)
dedo cego, palavra‑
(sem rasgos na pele da água)
de-superfície
mudo, vazio,
cingido pela água difícil,
braçando no lodo, sigo,
às escuras,
a mão nua abrindo o fio
(começa comigo) a
costura invisível
do rio
ROQUETTE-PINTO, Claudia. "a caminho". In:_____. Zona de sombra. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
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Poema
25.12.16
Paulo Henriques Britto: "Cuidado poeta..."
Cuidado, poeta: o tempo engorda a alma.
Depois de um certo número de páginas
anjos não pousam mais nas entrelinhas.
E até a lucidez, essa moderna,
também se gasta, como qualquer moeda.
O ter o que dizer é jogo arriscado,
não se resolve com um só lance de dados.
Não basta a precisão do gesto apenas.
O gesto mais felino é quase nada
sem o lastro da existência, essa cansada,
com sua textura por demais espessa
pra traspassar a tímida peneira
da pálida poesia, essa antiga.
O tempo é escasso. O dicionário é gordo.
Cuidado: Todo silêncio é pouco.
BRITTO, Paulo Henriques. "Cuidado poeta...". In: FÉLIX, Moacyr (org.). 41 poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998.
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Poema
23.12.16
Thássio G. Ferreira: "Exercício da rima"
Exercício da rima
O poeta pede, sem pudor,
embora humildemente,
ao poeta de si que o lê, o leitor,
tão prezado e paciente,
que lhe perdoe o louvor
à rima inconsequente.
FERREIRA, Thássio G. "Exercício da rima". In:_____. (Des)nudo. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016.
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21.12.16
Lêdo Ivo: "Queixa do editor de poesia"
Queixa do editor de poesia
"Poesia não se vende,
ninguém a entende!"
-- suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.
IVO, Lêdo. "Queixa do editor de poesia". In:_____. Antologia poética. Org. de Albano Martins. Porto: Afrontamento, 2012.
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Poema
18.12.16
Rogério Batalha: "Na cavidade do dia"
Na cavidade do dia
na cavidade do dia
encontrei
minha poesia
(como quem encontra
certas frutas
que exalam mais forte
pouco antes da morte).
como se, da desordem,
do nada, ela brotasse:
não como um bicho que voa
não como coisa que flutua
mas como ruína que sonha
e penetra na própria busca.
BATALHA, Rogério: "Na cavidade do dia". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: Texto Território, 2016.
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Rogério Batalha
16.12.16
Ricardo Silvestrin: "Caos, Ébero e Nix"
Caos, Ébero e Nix
O Caos era tudo
antes da criação do mundo.
Dele nasceram Ébero,
as trevas do inferno
e Nix, a noite.
De Nix e Ébero
vieram Áiter, o éter
e Hemera, o dia.
Antes do Caos,
nada mais havia.
Nosso elemento primordial,
nossa origem e final,
dele nascemos,
contra ele organizamos o mundo.
Mas sabemos, lá no fundo,
que o Caos é tudo.
SILVESTRIN, Ricardo. "Caos, Ébero e Nix". In:_____. Typographo. São Paulo: Patuá, 2016.
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14.12.16
Fernando Pessoa: "Análise"
Análise
Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
PESSOA, Fernando. "Análise". In:_____. "Cancioneiro". In:_____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
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Poema
11.12.16
Luiz Roberto Nascimento Silva: "Salvador 1971"
Salvador 1971
De repente
com essa lufada de vento,
lembrei-me
de mim jovem
no Carnaval,
quando descobri
a cidade de Salvador.
Senti
a mesma intensidade
daquele momento,
andando sem lenço
sem documento
por aquele esplendor.
Talvez
a mesma liberdade
– lufada de vento –
esteja ainda presente
neste momento,
no homem maduro que sou.
SILVA, Luiz Roberto Nascimento. "Salvador 1971". In:_____. Sim. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2016.
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8.12.16
Carlos Nejar: Casida das coisas da alma
Casida das coisas da alma
As cinzas do amor só ardem
se na memória se abrasam.
Inda que as coisas em alma
se entendam pela metade.
Mas onde estender as asas
de um sonho que se entreabre?
O que é fogo amor acalma
e o que é centelha se apaga.
E se o sol se move em nada,
a luz é onda parada.
As cinzas do amor só ardem
onde a infância não se acaba.
NEJAR, Carlos. "Casida das coisas da alma". In:_____. Quarenta e nove casidas e um amor desabitado. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2016.
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6.12.16
Trecho de "Vinícius de Moraes, um rapaz de família", de Suzana Moraes
Vejam, no belo filme de Susana Moraes, "Vinícius de Moraes, um rapaz de família", uma conversa de Vinícius e Ferreira Gullar sobre o "Poema sujo":
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Vinícius de Moraes
4.12.16
Ferreira Gullar: "Perplexidades"
Perplexidades
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
GULLAR, Ferreira. "Perplexidades". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.
2.12.16
Friedrich Hölderlin: "An die jungen Dichter" / "Aos poetas jovens": trad. Paulo Quintela
Aos poetas jovens
Queridos Irmãos! talvez a nossa arte amadureça,
Pois, como o jovem, há muito ela fermenta já,
Em breve em beleza serena;
Sede então devotos, como o Grego o foi.
Amai os deuses e pensai nos mortais com amizade!
Odiai a ebriedade como o gelo! Não ensineis nem descrevais!
Se o mestre vos assusta,
Pedi conselho à grande Natureza!
Lieben Brüder! es reift unsere Kunst vielleicht,
Da, dem Jünglinge gleich, lange sie schon gegärt,
Bald zur Stille der Schönheit;
Seid nur fromm, wie der Grieche war!
Liebt die Götter und denkt freundlich der Sterblichen!
Haßt den Rausch, wie den Frost! lehrt, und beschreibet nicht!
Wenn der Meister euch ängstigt,
Fragt die große Natur um Rat.
HÖLDERLIN, Friedrich. "An die jungen Dichter" / "Aos poetas jovens". In:_____. Poemas. Seleção e tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântica, 1959.
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