29.11.07

Jean Baudrillard: de "À sombra das maiorias silenciosas"

Trecho de À sombra das maiorias silenciosas, de Jean Baudrillard:


Na noite da extradição de Klaus Croissant(1), a televisão transmitia um jogo de futebol em que a França disputava sua classificação para a Copa do Mundo. Algumas centenas de pessoas se manifestam diante da Santé, alguns advogados correm na noite, vinte milhões de pessoas passam sua noite diante da televisão. Quando a França ganhou, explosão de alegria popular. Horror e indignação dos espíritos esclarecidos diante dessa escandalosa indiferença. Le Monde: “21 horas. Nesta hora o advogado alemão já foi retirado da prisão da Santé. Daqui a pouco Rocheteau vai marcar o primeiro gol”. Melodrama da indignação. Nenhuma única interrogação sobre o mistério dessa indiferença. Uma única razão sempre invocada: a manipulação das massas pelo poder, sua mistificação pelo futebol, De qualquer maneira, essa indiferença não deveria existir, ela não tem nada a nos dizer. Em outros termos, a "maioria silenciosa" é despossuída até de sua indiferença, ela não tem nem mesmo o direito de que esta lhe seja reconhecida e imputada, é necessário que também esta apatia lhe seja insuflada pelo poder.

Que desprezo atrás dessa interpretação! Mistificadas, as massas não saberiam ter comportamento próprio. De tempos em tempos se lhes concede uma espontaneidade revolucionária através da qual elas vislumbram a “racionalidade do seu próprio desejo”, isso sim, mas Deus nos proteja de seu silêncio e de sua inércia. Ora, é exatamente essa indiferença que exigiria ser analisada na sua brutalidade positiva, em vez de ser creditada a uma magia branca, a uma alienação mágica que sempre desviaria as multidões de sua vocação revolucionária.

Mas, por outro lado, como é que ela consegue desviá-las? Com relação a este fato estranho, pode-se perguntar: por que após inúmeras revoluções e um século ou dois de aprendizagem política, apesar dos jornais, dos sindicatos, dos partidos, dos intelectuais e de todas as energias postas a educar e a mobilizar o povo, por que ainda se encontram (e se encontrará o mesmo em dez ou vinte anos) mil pessoas para se mobilizar e vinte milhões para ficar "passivas"? — e não somente passivas, mas por francamente preferirem, com toda boa fé e satisfação, e sem mesmo se perguntar por que, um jogo de futebol a um drama político e humano? É curioso que essa constatação jamais tenha subvertido a análise, reforçando-a, ao contrário, em sua fantasia de um poder todo-poderoso na manipulação, e de uma massa prostrada num coma ininteligível. Pois nada disso tudo é verdadeiro, e os dois são um equívoco: o poder não manipula nada e as massas não são nem enganadas nem mistificadas. O poder está muito satisfeito por colocar sobre o futebol uma responsabilidade fácil, ou seja, a de assumir a responsabilidade diabólica pelo embrutecimento das massas. Isso o conforta em sua ilusão de ser o poder, e desvia do fato bem mais perigoso de que essa indiferença das massas é sua verdadeira, sua única prática, porque não há outro ideal para inventar, não há nada a deplorar, mas tudo a analisar a respeito disso como fato bruto de distorção coletiva e de recusa de participar nos ideais todavia luminosos que lhes são propostos.

De: BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.16-18,


Nota (retirada da Wikipedia):
1 - Klaus Croissant (1931-2002) era um advogado da Facção do Exército Vermelho que o promotor Rebmann mostrou “ter organizado em seu gabinete a reserva operacional do terrorismo alemão ocidental”. Contra sua prisão foi organizada uma campanha da qual, entre outros, Jean-Paul Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari tomaram parte. Ele se refugiara na França em 10 de julho de 1977, antes de ser preso em Paris em 30 de setembro. Apesar de protestos e demonstrações na Alemanha, na França e na Itália, a corte de apelo criminal de Paris decidiu a favor da extradição para a República Federal da Alemanha em 16 de novembro de 1977, na noite do jogo de futebol a que Baudrillard se refere.

25.11.07

Adriano Espínola: Maramar

MARAMAR


Se tu queres amar,
procura logo o mar.

Ali enlaça o corpo
salgado noutro corpo.

No azul esquecimento
das águas, vai sedento

beber a luz da carne,
o gozo a pino e a tarde.

Tenta imitar a teia
das ondas e marés.

Dança na branca areia.
Outro será quem és.






De: ESPÍNOLA, Adriano. Praia provisória. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p.16.

18.11.07

Democracia: formal ou profunda?

O Seguinte artigo foi publicado sábado, 17 de novembro, na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo:

Democracia: formal ou profunda?

No dia 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.

No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premier espanhol Aznar, obrigando o atual premier, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a lhe sugerir que se calasse.

Não pode ter escapado a ninguém que a acusação de Chávez saíu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo são, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para “legitimar” os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.

Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois disso tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por “três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos”. Essa é a “democracia direta” (leia-se a “ditadura plebiscitária”) de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe. E é essa a “democracia direta” que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do Presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.

A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também no Brasil, caso se enfraqueça o legislativo, usando o artifício, caro aos regimes populistas e totalitários, de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.

Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stalin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de “democracia formal” em nome de – como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima – uma “democracia profunda”.

A verdadeira democracia não pode deixar de ser formal porque não se pode prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela. Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.

Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação dos direitos humanos e da sociedade aberta.

O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia – profunda ou rasa –, mas de ditadura.

14.11.07

Paulo Guedes: A estética fascista

O seguinte artigo de Paulo Guedes foi publicado em O Globo, segunda-feira, 12 de novembro de 2007:

A estética fascista

O rei Juan Carlos, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca durante a Cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile. Chávez acusara de fascista o ex-presidente do governo espanhol José María Aznar. Por mais simpatia que se tenha pelas intenções da "revolução bolivariana", os sintomas desta terrível doença política, o fascismo, estão mais próximos de Chávez do que ele pensa. Segundo Luis Dupeux, em "História cultural da Alemanha: 1919-1960" (1989), "a utilização de palavras de ordem e das manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas. Bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos sempre assegurando a legalidade do sistema". Fechamento da RCTV?
"Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por vívidas imagens: um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; jovens desfilando em paradas; militantes espancando membros de alguma demonizada minoria. Nacionalismo, ataques a propriedades, recurso à violência, voluntarismo, antiintelectualismo, rejeição a soluções de compromisso, desprezo pela sociedade estabelecida foram características do fascismo", registra Robert Paxton, em "A anatomia do fascismo" (2005).
Prossegue o autor: "Os primeiros movimentos fascistas ostentavam também seu desprezo pelos valores burgueses, pelo "dinheiro, imundo dinheiro", atacando o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar os donos de loja em favor de artesãos, e os proprietários de terra em favor de camponeses. Exploraram as vítimas da industrialização rápida e da globalização, os perdedores da modernização, usando as técnicas de propaganda mais modernas. Política de massas, tentava apelar sobretudo às emoções, pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora plenamente consciente de sua identidade e seu poder." Líder, povo, identidade e poder "bolivarianos"?
"Um artifício usado pelos fascistas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária." Chavistas atacando universitários?
"Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo "sim ou não"."
E, a propósito do alerta do senador José Sarney para a possibilidade de um futuro confronto, e também da manchete segundo a qual os comandantes militares pressionam o Congresso por mais verbas para o reaparelhamento das Forças Armadas, adverte Paxton: "Parece ser regra geral que a guerra seja indispensável à manutenção do tônus muscular do fascismo. Pois o ápice da experiência estética fascista seria a guerra."

10.11.07

Borges: Límites

Jorge Luís Borges
Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar,
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos,
Hay un espejo que me ha visto por última vez,
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Entre los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cincuenta años:
La muerte me desgasta, incesante.
De Inscripciónes (Montevideo, 1923), de Julio Platero Haedo

BORGES, J.L. “Límites”. In: “El hacedor” Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editoras, 1974, p.849.

Limites
Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordar,
Há uma rua próxima que está vedada a meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até o fim do mundo.
Entre os livros de minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que já nunca abrirei.
Este verão cumprirei cinqüenta anos:
A morte me desgasta, incessante.
De Inscripciónes (Montevideo, 1923), de Julio Platero Haedo

6.11.07

Alba Zaluar: Inverter não é transformar

O seguinte artigo de Alba Zaluar foi publicado na sua coluna da Folha de São Paulo, segunda-feira, 15 de outubro de 2007:


Inverter não é transformar

A IGUALDADE tem sido objeto de uma infindável discussão teórica. Há os que afirmam ser ela uma condição inalcançável, visto que seres humanos diferem em suas capacidades, talentos e disposição para o trabalho; há os que ressaltam a necessidade como o critério para a distribuição da riqueza produzida. Os primeiros, filósofos morais do liberalismo político, preocupam-se com as violações à liberdade que a busca incessante da igualdade vem a trazer. Os segundos, adeptos da economia marxista, acreditam que dar a cada um segundo a sua necessidade inclui o princípio de receber de cada um segundo a sua habilidade de contribuir economicamente.
Nenhum pensador da igualdade defendeu a idéia de que seria possível obter o necessário por fraude, força, roubo, coerção ou dano a outras pessoas. Esse princípio moral está também em Marx, que exaltava o valor do trabalho -o pago e o não pago- e visualizava uma sociedade futura em que essa distribuição seria feita sem coerção de qualquer espécie.
Aqui no Brasil, a discussão tomou rumos indefensáveis. Quem nega a um branco bem-sucedido, mesmo que vindo de meios sociais modestos, o direito de consumir (que inclui portar) os bens disponíveis socialmente, não está recusando para si mesmo, um negro oriundo de favelas e periferias, esse gozo.
Rappers são conhecidos no mundo todo por seu sucesso e sua ilimitada sede de consumo. Coleções de tênis, roupas de marca, automóveis do ano, festas extravagantes são alguns itens listados nos seus currículos de consumidores. E, claro, não se imolam pelo sucesso que os destacou.
Defender o roubo como recurso de distribuição de renda revela um enorme desconhecimento das redes e tramas do submundo do crime, onde grassa o capitalismo mais selvagem de que se tem notícia. Ou bem a pessoa que roubou vai portar esse objeto, que apenas muda de mãos e continua a simbolizar a desigualdade reinante, ou ela vai vendê-lo a um receptador que pagará muito pouco e fará um hiperlucro comercial, ambos sem produzir riqueza nenhuma. Para onde foi a distribuição de renda? Para alimentar a acumulação do receptador e a ilusão do ladrão que precisa voltar a roubar e, portanto, está sempre a se arriscar em benefício de outrem.
Com tanto incentivo a ganhar dinheiro fácil, estimula-se exponencialmente a acumulação de riquezas em poucas mãos. Se as defesas morais contra a fraude e o roubo continuarem a ser destruídas tão hipocritamente, a produção de riquezas será reduzida e o estoque de riquezas do país encolhido a tal ponto que não teremos nem consumo nem muito menos a tão almejada igualdade.

Alba Zaluar

4.11.07

Curso "A Arte do Poeta"


Inscrições pelo tel. (21) 2286-3299
ou pelo site www.polodepensamento.com.br
Curso iniciando no dia 06 de novembro

O curso pretende investigar a natureza da poesia e a sua relação tanto com as outras artes quanto com a filosofia; interrogar a produção poética contemporânea e reconsiderar a tradição; avaliar a experiência da modernidade e, em particular, a experiência da vanguarda; discutir as dicotomias tradicionais, tais como verso e prosa, inspiração e trabalho, forma e conteúdo, continuidade e ruptura etc.; revisitar as formas e as técnicas de versificação; reproblematizar a relação entre poesia e letra de música e, por fim, questionar o sentido e os caminhos da poesia nos mundos da mídia e da Internet.

06 de novembro O que é a poesia? A poesia na tradição Ocidental. Homero e a poesia oral primária. O mito e o epos.

13 de novembro A natureza do poema escrito. A leitura do poema. A poesia e o juízo de valor. A poesia e o legado da tradição.

27 de novembro A poesia e a música. A poesia e a filosofia. A poesia e os novos meios.

04 de dezembro A poesia e o legado da vanguarda. As formas poéticas. A poesia e a modernidade.

4 aulas às terças-feiras, das 19h30 às 21h30
Valor: R$ 240,00 (50% na inscrição e o restante 30 dias após o início do curso; 10% de desconto no pagamento à vista efetuado até 15 dias antes do início do curso)

POP-Pólo de Pensamento Contemporâneo
Rua Conde Afonso Celso, 103 - Jardim Botânico - CEP 22461-060
Tel. (21) 2286-3299 e 2286-3682

A ciência e Deus

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de novembro de 2007:


A ciência e Deus


AS MAIS TRADICIONAIS "provas" da existência de Deus -a "prova ontológica", de Anselmo de Canterbury, e as "cinco vias", de Tomás de Aquino- jamais se recuperaram da refutação que sofreram, por obra de Kant, no século 18. Assim, entende-se que, em seu livro "Deus, um Delírio", Richard Dawkins não lhes dedique muita atenção.

Por outro lado, sendo um biólogo, Dawkins se preocupa principalmente com as pretensões dos defensores do "intelligent design" (que, numa de suas típicas tiradas, ele chama de "criacionismo de smoking"). Estes alegam que a vida, os seres vivos, o ser humano etc. são complexos demais para terem sido produzidos pelo acaso.

Segundo eles, pensar o contrário seria como supor que um furacão que varresse um ferro-velho seria capaz de montar um Boeing 747. Como não dá para crer que algo tão improvável ocorra, eles inferem que tais coisas só podem ter sido produzidas por um designer ou projetista, isto é, por Deus.

A partir dessas considerações, explica-se que Dawkins trate a existência de Deus à maneira de uma hipótese científica como outra qualquer. Aqui não há como não lembrar a lapidar resposta do grande astrônomo Laplace a Napoleão, quando este lhe perguntou por que não mencionara Deus ao explicar o funcionamento do sistema solar: "Excelência, não precisei dessa hipótese".
Pois bem, Dawkins se propõe a considerar a hipótese científica de que "existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que deliberadamente projetou ("designed') e criou o universo e tudo o que nele se encontra, inclusive a nós".

A que conclusões chega? Em primeiro lugar, ele concorda que realidades tão complexas não podem ter sido produzidas pelo mero acaso. Em segundo lugar, porém, ele nega que elas possam ser satisfatoriamente explicadas por um designer. Por quê? Porque, dado que o designer de alguma coisa não pode deixar de ser mais complexo do que essa coisa, seria ainda mais difícil explicar a existência dele do que a dela. Será preciso então apelar a um outro designer para explicar o primeiro, e depois a outro para explicar o segundo, e assim ao infinito: o que desqualifica essa explicação. Desse modo, revela-se inaceitável a hipótese da existência de Deus.

Segundo Dawkins, o que realmente dá conta da produção de coisas extremamente improváveis como o ser humano não é nem o mero acaso nem o design, mas o processo de seleção natural. Este consiste na produção de algo improvável por meio de inúmeras etapas. "Cada uma das etapas", diz ele, "é um tanto improvável, mas não irrealizável. Quando um grande número desses eventos um tanto improváveis se acumula numa série, o produto final da acumulação é de fato muito improvável, tão improvável que não poderia ter sido produzido pelo mero acaso".

É esse resultado final do processo de seleção natural que é usado pelos proponentes do "intelligent design" (incapazes de compreender o poder da acumulação gradativa de improbabilidades) como argumento para a sua modalidade de criacionismo.

Os filósofos ou teólogos que alegam, contra o procedimento de Dawkins, que ele não está levando em conta o fato de que Deus não tem causa imanente, uma vez que é transcendente, de que Deus é uma primeira causa incausada etc., não têm cabimento aqui, já que Dawkins não está senão examinando a hipótese fundamental do "intelligent design", que se pretende puramente científica, e rechaçando-a nos próprios termos em que ela se propõe.

E a verdade é que a argumentação de Dawkins que acabo de descrever só tem sentido se entendida desse modo, como uma espécie de redução ao absurdo da teoria do "intelligent design". Por quê? Porque o "intelligent design" jamais poderia realmente ser considerado como uma hipótese científica.

Quando Laplace diz que não precisa da hipótese de Deus, está, na verdade, explicitando a principal regra do jogo constitutivo da própria ciência: de toda ciência. Deus não vale como hipótese porque tal hipótese explicaria tudo e qualquer coisa: logo, não explicaria nada. Assim, ainda que, pessoalmente, um cientista acredite na existência de Deus, ele não pode, sem trair a sua ciência, aduzir Deus para "explicar" coisa alguma.

A ciência é exatamente a tentativa de explicar o mundo como se Deus não existisse. Não ter deixado isso suficientemente claro -talvez por não o ter suficientemente compreendido- é certamente um dos maiores erros cometidos pelo autor de "Deus, um Delírio".

2.11.07

Calderón de la Barca: de La vida es sueño

Monólogo de Segismundo, Jornada segunda, escena XIX de La vida es sueño, de Calderón de la Barca:


Es verdad; pues reprimamos
esta fiera condición,
esta furia, esta ambición,
por si alguna vez soñamos:
y sí haremos, pues estamos
en mundo tan singular,
que el vivir sólo es soñar;
y la experiencia me enseña
que el hombre que vive, sueña
lo que es, hasta dispertar.
Sueña el rey que es rey, y vive
con este engaño mandando,
disponiendo y gobernando;
y este aplauso, que recibe
prestado, en el viento escribe;
y en cenizas le convierte
la muerte (¡desdicha fuerte!):
¿que hay quien intente reinar,
viendo que ha de dispertar
en el sueño de la muerte?
Sueña el rico en su riqueza
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.
Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí,
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.


De: CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. La vida es sueño. New York: Double Day, 1961, p.75.