25.6.21

Waly Salomão: "Olho de lince"

 



Olho de lince


quem fala que sou esquisito hermético

é porque não dou sopa estou sempre elétrico

nada que se aproxima nada me é estranho

                fulano sicrano e beltrano

seja pedra seja planta seja bicho seja humano

quando quero saber o que ocorre à minha volta

ligo a tomada abro a janela escancaro a porta

experimento invento tudo nunca jamais me iludo

quero crer no que vem por beco escuro

me iludo passado presente futuro

                    urro arre i urro

viro balanço reviro na palma da mão o dado

                       futuro presente passado

tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão

na seqüência de diferentes naipes

                       quem fala de mim tem paixão








SALOMÃO, Waly. "Olho de lince". In:_____. "Waly Salomão". In: MORICONI, Ítalo (org.). Destino poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

21.6.21

Régis Bonvicino: "Suor"

 



Suor

 


O mar o mormaço o meio-dia

um cão se delicia

nas ondas do mar

verde, a mata


verde avança

no rochedo

o esqueleto de um peixe

na areia da praia


a brisa

o que tenho a dizer?

o que ela diz

 

o rouco marulho das ondas

sim

e nada além de ser



                                                                              Trindade,       1/2003       



BONVICINO, Régis. "Suor". In:_____. "Remorso do cosmos (de ter vindo ao sol). In:_____. Até agora: poemas reunidos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.


19.6.21

Carlos Drummond de Andrade: "lembrete"

 



lembrete


Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida




ANDRADE, Carlos Drummond de. "lembrete". In:_____. "Corpo". In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.


16.6.21

Charles Baudelaire: "Correspondances" / "Correspondências": trad. por Ivan Junqueira

 



Correspondências



A Natureza é um templo onde vivos pilares 

Deixam filtrar não raro insólitos enredos; 

O homem o cruza em meio a um bosque de segredos 

Que ali o espreitam com seus olhos familiares. 


Como ecos longos que à distância se matizam 

Numa vertiginosa e lúgubre unidade, 

Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, 

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. 


Há aromas frescos como a carne dos infantes, 

Doces como o oboé, verdes como a campina, 

E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, 


Com a fluidez daquilo que jamais termina, 

Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, 

Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. 






Correspondances



La Nature est un temple où de vivants piliers 

Laissent parfois sortir de confuses paroles; 

L'homme y passe à travers des forêts de symboles 

Qui l'observent avec des regards familiers. 


Comme de longs échos qui de loin se confondent 

Dans une ténébreuse et profonde unité, 

Vaste comme la nuit et comme la clarté, 

Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. 


Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants, 

Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, 

–  Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, 


Ayant l'expansion des choses infinies, 

Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, 

Qui chantent les transports de l'esprit et des sens. 





BAUDELAIRE, Charles. "Correspondances" / "Correspondências". In:_____. As flores do mal. Trad. de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.


13.6.21

Luis Olavo Fontes: "meu amor de soslaio"




meu amor de soslaio


Faz tanto calor no Rio de Janeiro

que é bom sentir essa neve

partir do seu olhar.




FONTES,  Luis Olavo. "meu amor de soslaio". In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. Antologia [1976]. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

11.6.21

Eugénio de Andrade: "Regressar ao corpo, entrar nele"

 



Regressar ao corpo, entrar nele

sem receio da insurreição da carne.

Nenhuma boca é fria,

mesmo quando atravessou


o inverno. Uma boca é imortal

sobre outra boca: diamante

aceso, estrela aberta

quando a luz irrompe, invade


ombros, peitos, coxas, nádegas, falos.

Despertos, puros no seu pulsar,

aí os tens: esplendorosos,

duros.





ANDRADE, Eugénio de. "Regressar ao corpo, entrar nele". In:_____. "Branco no branco". In:_____. Poemas de Eugénio de Andrade. Org. por Arnaldo Saraiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

9.6.21

Daniel Maia-Pinto Rodrigues: "O nosso amor parecia uma história de fadas"

 



O nosso amor parecia uma história de fadas

o encanto girava que nem em quatro rodas

depois as rodas deram umas guinadas

e descambou tudo num conto de fodas.




RODRIGUES, Daniel Maia-Pinto. "O nosso amor parecia uma história de fadas". In:_____. Malva 62: uma recolha de poemas breves. São Paulo: Escrituras, 2011.

7.6.21

Sylvio Back: "ante"

 



ante


ante a lágrima arredia

ante a súplica da alma


ante a lassidão pétrea

ante a colossal tontura


ante o rumor derruído

ante o nervo sanguíneo


ante o agudo alvéolo

ante o áspero clarão


ante o iniludível flerte

ante o inaudível falsete


a esperança é grotesca





BACK, Sylvio. "ante". In:_____. "A maior diversão" (inédito). In:_____. Silenciário: obra reunida. Florianópolis: Editora da UFSC, 2021.


5.6.21

Vera Casa Nova: "Meu poema é feito"

 

Os poemas do belo livro Versos oblíquos ou a obliquidade do tempo, de Vera Casa Nova, são, como ela mesma diz, feitos como conversas com a poesia de diversos poetas. Resolvi, aqui, postar um poema que conversa com a poesia de Hölderlin.




Meu poema é feito

de restos -- 

de mim, da memória

de outros poetas --

o passado de leitura

o presente de leitora

vão abrindo

caminhos

para os versos acontecerem.

Partilho aqui e ali

um verso bem feito

ou mal feito

nos espaços da paixão 

pela poesia.





NOVA, Vera Casa. "Meu poema é feito". In:_____. Versos oblíquos ou a obliquidade do tempo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021.

3.6.21

Antonio Carlos Secchin: "Carta aos pais"

 



Carta aos pais



Vem de um sonho distante

o que aqui celebro novamente:

o amor e seu motor incessante

que incendeia de luz toda a gente.

Catorze de janeiro sessenta vezes

ainda assim não é bastante:

tudo que parecia tão antigo

ressurge na força deste instante.

Sessenta vezes ser feliz inteiro,

por inteiro ser companheiro e amante.

Mil novecentos e quarenta e sete,

clara memória, afeto transbordante

que gerou Carlos, Antonio e Cristina,

ao abrigo do vento e da vida errante.

Regy e Sives, tanta alegria de ver

que vale viver, se viver intensamente

é ação recomeçada em cada dia,

para que cada dia se reinvente.

Nossa herança maior - os pais

que sabem nos chamar para o futuro,

pais que não são de antigamente,

pois o que eles fazem do passado

é trazê-lo sempre perto do presente.

Pais, queridos pais, sessenta anos

aqui se condensam diante de nós,

e, mesmo que nossa voz não cante

tanto quanto se presume,

que agora, então, se proclame

a conta incontornável

deste amor que número nenhum resume.

O tempo, que é velho e que é infante,

nesta hora entra na sala, lentamente.

Aproxima-se de Sives e Regy,

e vê que o par, de tão perfeito e tão constante,

já se tornou eterno nessas bodas,

que, como o casal, são de puro diamante.







SECCHIN, Antonio Carlos. "Carta aos pais". In:_____. Desdizer e antes. Rio de Janeiro: Topbooks, 2017.

1.6.21

Sophia de Mello Breyner Andresen: "Terror de te amar"

 



Terror de te amar



Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo


Mal de te amar neste lugar de imperfeição

Onde tudo nos quebra e emudece

Onde tudo nos mente e nos separa.


Que nenhuma estrela queime o teu perfil

Que nenhum deus se lembre do teu nome

Que nem o vento passe onde tu passas.


Para ti eu criarei um dia puro

Livre como o vento e repetido

Como o florir das ondas ordenadas.







ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Terror de te amar". In: PEDROSA, Inês (org.). Poemas de amor. Antologia de poesia portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005.