MERGULHO NOS MARES COR DE VINHO
Adriano
Espínola
Antonio
Cícero ostenta uma das trajetórias intelectuais e artísticas mais singulares da
cultura e literatura brasileiras contemporâneas. Isso se deve, a meu ver, à
desenvoltura com que transita por diversos gêneros, aparentemente antagônicos,
com igual competência e brilho. Letrista e compositor de sucesso, em parceria
sobretudo com a irmã, a cantora Marina; filósofo, autor de importantes livros
na área (O mundo desde o fim, Finalidades sem fim e Filosofia e poesia); crítico literário (A poesia e a crítica) e sobretudo poeta,
autor de algumas obras (Guardar, A cidade e os livros
e Porventura) que o colocam como um
dos melhores fazedores da atualidade.
Em Antonio Cícero, o letrista
popular, o pensador refinado, o crítico sensível e o poeta inventivo dialogam e
se complementam a todo instante. Como é isso possível? Arrisco afirmar que, por
seu temperamento, vocação e formação, representaria ele, entre nós, a versão
talvez mais próxima do homem grego clássico, isto é, do homem de espírito
ático, para quem a oralidade do aedo, a escrita do rapsodo, a reflexão do sábio
(sophós), o conhecedor dos mitos (mythoi) e o cultor do discurso (epos)não fazem diferença, não fora ainda
o fato de que lê e traduz com grande maestria o idioma grego.
Mas o que nos interessa aqui é destacar
a produção do poeta, na qual tais qualidades podem muito bem ser observadas.
Tomemos, por exemplo, seu mais recente livro, Porventura (2017).
O volume reúne 35 poemas curtos, de
teor lírico, com exceção de “Amazonas”, de andamento épico (“Não queira,
Silviano, que eu cante a selva”), composto de 60 versos, em que o poeta mistura
referências locais, pessoais a episódios e personagens da mitologia grega. A
erudição do autor, entretanto, não pesa na feitura deste e de outros poemas. Ao
contrário: uma certa leveza, não isenta de ironia, perpassa o conjunto das
peças.
Acompanhando essa leveza e o uso de uma
linguagem distensa, podemos, no entanto, surpreender reflexões mais agudas, ora
de raiz heraclitiana (“[enfrento] um só problema:/ ao menos no meu poema/
agarrar o passageiro”), ora epicurista (“Por que não me deitar sobre
este/gramado, se o consente o tempo,/ e há um cheiro de flores e verde?”), ora
platônica (“É certo que me perco em sombras/e que, isolado em minha ilha, já
não me atingem as notícias”), para nada dizer das derivadas do filósofo
Empédocles (“O amor seria fogo ou ar/ em movimento, chama ao vento”).
Um
dos aspectos particularmente atrativos desta poesia reside no hábil entrelaçamento
de feitos míticos do passado aos fatos e vivências do agora, como neste passo,
em que o autor nos fala dos
(...) crimes, imitações da vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias
penelópicas
de horrores ou de
maravilhas
que dia a dia se desfiam
e fiam sem princípio ou
fim (...) (p. 43)
-com explícita
referência à personagem Penélope, mulher de Ulisses, e à tessitura ardilosa e
sempre recomeçada em sua tela de fiação (aqui da televisão). Neste mesmo texto
(“O livro de sombras de Luciano Figueiredo”), o poeta se vale de outro
personagem mítico e da imagem do labirinto de Teseu, no início e fim do poema
(p. 43-45), a sugerir deste modo a circularidade inescapável do ser, entre uma
ponta e outra da existência:
Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me
extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas atrás de
mim.
Noutro
poema, ao se ver como um “poeta marginal” (p. 15), atualiza, não sem certa
ironia crítica, expressões ainda hoje correntes, oriundas da cultura grega:
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de
grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
O estilo aliciante dos textos encontra-se
igualmente na musicalidade das palavras, como se percebe nos versos acima. O
ritmo, as assonâncias, aliterações e rimas (toantes, soantes, atenuadas,
imperfeitas ou ampliadas) surgem a cada momento na configuração dos poemas,
compondo uma textura de todo eufônica, a lembrar o letrista ou o aedo
habilidoso na feitura da sua canção (aoidê).
Essa destreza musical faz com que o
poeta engrene outra associação persuasiva, ao fundir linguagem coloquial a
certas formas canônicas, que passa pelo verso medido e chega ao soneto,
habilmente construído num só bloco, como acontece em “Diamante” e “Presente”,
por exemplo. Notável também a fluidez do discurso, ao lado de enjambements,
cortes e elipses, marcados por uma oralidade de base a um só tempo denotativa e
sugestiva. Precisa e elegante. Todas essas qualidades se entremostram, por
exemplo, no poema “Palavras aladas” (p. 29):
Os
juramentos que nos juramos
entrelaçados naquela
cama
seriam traídos, se
lembrados
hoje. Eram palavras
aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar.
Faziam
parte das carícias que
por lá
sopramos: brisas
afrodisíacas
ao pé do ouvido, jamais
contratos.
Esqueçamo-las, pois,
dentre os atos
da língua, houve outros
mais convincentes
e ardentes sobre os
lençóis. Que esses
em futuras noites, em
vislumbres
de lembranças, sempre
nos deslumbrem.
Esse tom coloquial volta-se quase sempre
para fatos aparentemente banais do cotidiano. Entretanto, o autor sabe deles
extrair lição mais funda, tal como se verifica no poema “Meio-fio”, em que a
simples ida a um cinema em Copacabana resulta, após um pequeno acidente de
carro, na percepção de que
da Avenida
Atlântica, a maresia,
cio marinho, alicia
para outras eras da vida. (p. 37)
O mesmo também ocorre no texto “La
Capricciosa” (p. 55), quando o jantar prazeroso em uma pizzaria, com a cidade a
sonhar ao lado, “tranquila e cintilante”, é subitamente desfeito, em
decorrência de uma chamada do celular em que alguém dá notícia pesarosa (a
morte do irmão do escritor, a quem o poema é dedicado). O nome da pizza
(Capricciosa) passa aqui a caracterizar a própria morte, “[que] também tem
arte”.
Já no poema “Na praia” (p. 61), o eu
lírico lembra antigos encontros com amigos “dentro d’água”, “[voando] nas ondas
trans-/parentes, deslizantes, do azul/ mais profundo”. Com o desaparecimento de
alguns deles e a dispersão de outros, o autor consola-se na maturidade ao
mergulhar não mais naquelas águas “transparentes” e azuis da juventude, mas,
sim, nas águas opacas e inebriantes da poesia, ao retomar a mesma imagem que o
personagem Heitor, na Ilíada, vê as
ondas do Mediterrâneo. Com isso, Antonio Cícero reitera a sua condição de poeta
que sabe ser continuador de Homero e contíguo a ele:
(...). Já não procuro
o azul. Os mares em que
mergulho
são os homéricos, cor de
vinho.
(In:
O cego e o trapezista. Recife: CEPE,
2022).
Espinola, Adriano: "Mergulho nos maresa cor de vinho", in O cego e o trapezista (Recife: CEPE, 2022).