.
Em silêncio conversemos
Que fazer deste ser
sem prumo
despencado do extremo de um dia e
que o sono não recolheu?
Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio
Procurar a nenhuma razão que nos explique
e suavemente nos envolva
em suas turvas paredes protetoras
Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca
A quem sobra olhos resta ver
um ser nu a vida pouca
Só dentes e sapatos
de volta para casa
Nem um passo à frente
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante
neste suave embalo da mágoa
descansemos
De: ALVIM, Francisco. Sol dos cegos. Rio de Janeiro: 1968.
29.10.08
27.10.08
Francisco Bosco: O fim e o recomeço da esperança
O FIM E O RECOMEÇO DA ESPERANÇA
Desde que foi oficialmente anunciada a derrota de Gabeira, algumas horas atrás, tenho recebido muitos emails de amigos comentando o ocorrido. Em meio à consternação geral e às diversas tentativas de análise das causas da derrota e de suas conseqüências, um email tocou num aspecto essencial, que exige a seguinte reflexão. O texto em questão é do jornalista e escritor Fernando Molica; nele, Molica pergunta minha opinião sobre se a derrota de Gabeira significaria a irrefutabilidade política, concretamente falando, do "axioma pernicioso" que Gabeira teria tido a coragem e firmeza éticas de atacar, sendo esse o sentido fundamental de sua candidatura. Esse axioma, eu o descrevera em texto anterior (publicado aqui nesse site), nos seguintes termos: "A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral."
Pois bem, o que mais me entristeceu na derrota de ontem - e ao mesmo tempo é o que deixa acesa uma centelha de esperança - é que Gabeira, a meu ver, não perdeu porque fez uma campanha historicamente inovadora, orientada por princípios éticos inarredáveis. Perdeu por detalhes. Sobretudo erros que ele próprio cometeu durante o segundo turno. Podem-se elencar vários: a declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha (a qual, segundo Gabeira, teria "uma visão suburbana" a respeito da instalação de um lixão na zona oeste do Rio), a declaração mais infeliz ainda sobre os sambistas que apoiaram publicamente Eduardo Paes (que, segundo o candidato do PV, "foram atraídos por uma feijoada"), as imagens muito centradas na zona sul em seus programas, os artistas idem, uma postura pouco incisiva em denunciar os golpes baixos do adversário, entre outros.
Esses erros têm a ver, em parte, com seus próprios méritos. A declaração sobre a vereadora Lucinha é, numa dimensão conceitual mais profunda, desprovida de qualquer preconceito: Gabeira empregou a palavra "suburbana" no sentido de provinciana, limitada, excessivamente local e conjuntural, e não como um preconceito contra a origem de alguém. Da mesma forma, ao falar que os tais sambistas foram atraídos por uma feijoada ele certamente tinha em mente o papel cúmplice da vítima simbólica no populismo brasileiro: a definição do populismo é precisamente a relação não-institucional, não-legal, portanto não-republicana entre o dono do poder e o "povo". Trocando em miúdos, trata-se do político que oferece cesta-básica em troca de votos, pessoalizando a política ao invés de universalizá-la. Os cidadãos pobres que aceitam esse jogo comportam-se exatamente como quem aceita votar em alguém por causa de uma feijoada, e era a esse mecanismo histórico que Gabeira, no fundo, aludia. Não há como comprovar que os sambistas em questão apoiavam Paes por motivos de ordem pessoalizante, daí a declaração de Gabeira ter sido mesmo infeliz e até leviana, mas ela, num nível mais profundo, tocava numa questão fundamental.
Com efeito, a candidatura de Gabeira tinha sua força maior numa dimensão simbólica (centrada na sólida afirmação dos valores republicanos, eles mesmos simbólicos e abstratos por definição) que, por sua vez, exige do eleitorado uma alta capacidade de abstração. Não é por acaso, obviamente, que a imensa maioria de seus eleitores é dotada de maiores níveis de instrução. A essa força simbólica, o candidato adversário respondia com uma retórica concreta, palpável, de ação e números, supostamente esvaziada de caráter ideológico. O embate se estabeleceu entre esses pólos, e Gabeira errou decisivamente ao fornecer munição para que seu adversário, valendo-se dos golpes baixos da política tradicional, transformasse seu republicanismo em elitismo, sua sofisticação intelectual em preconceito. No meu entender, esse erro determinou sua derrota.
Mas, assim como sua candidatura transcendia, simbolicamente, seu tempo e lugar efetivos, sua derrota também transcende seu resultado efetivo. À pergunta de Fernando Molica, com que iniciei esse arrazoado, eu responderia então o seguinte: a derrota de Gabeira não significa a vitória do axioma pernicioso acima referido, mas, ao contrário, a prova de que é possível desmenti-lo. Pois Gabeira não perdeu porque desobedeceu o axioma, mas porque errou em detalhes de campanha. Detalhes que, numa contenda acirrada, acabaram por fazer a diferença. Quando surgirá uma outra figura política com tamanha estatura ética e vontade política para enfrentar tudo isso, aí são outros quinhentos (espero que não quinhentos anos), mas, tal como se deu, a derrota reacende a esperança no momento mesmo que a apagou.
Francisco Bosco
.
Desde que foi oficialmente anunciada a derrota de Gabeira, algumas horas atrás, tenho recebido muitos emails de amigos comentando o ocorrido. Em meio à consternação geral e às diversas tentativas de análise das causas da derrota e de suas conseqüências, um email tocou num aspecto essencial, que exige a seguinte reflexão. O texto em questão é do jornalista e escritor Fernando Molica; nele, Molica pergunta minha opinião sobre se a derrota de Gabeira significaria a irrefutabilidade política, concretamente falando, do "axioma pernicioso" que Gabeira teria tido a coragem e firmeza éticas de atacar, sendo esse o sentido fundamental de sua candidatura. Esse axioma, eu o descrevera em texto anterior (publicado aqui nesse site), nos seguintes termos: "A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral."
Pois bem, o que mais me entristeceu na derrota de ontem - e ao mesmo tempo é o que deixa acesa uma centelha de esperança - é que Gabeira, a meu ver, não perdeu porque fez uma campanha historicamente inovadora, orientada por princípios éticos inarredáveis. Perdeu por detalhes. Sobretudo erros que ele próprio cometeu durante o segundo turno. Podem-se elencar vários: a declaração infeliz sobre a vereadora Lucinha (a qual, segundo Gabeira, teria "uma visão suburbana" a respeito da instalação de um lixão na zona oeste do Rio), a declaração mais infeliz ainda sobre os sambistas que apoiaram publicamente Eduardo Paes (que, segundo o candidato do PV, "foram atraídos por uma feijoada"), as imagens muito centradas na zona sul em seus programas, os artistas idem, uma postura pouco incisiva em denunciar os golpes baixos do adversário, entre outros.
Esses erros têm a ver, em parte, com seus próprios méritos. A declaração sobre a vereadora Lucinha é, numa dimensão conceitual mais profunda, desprovida de qualquer preconceito: Gabeira empregou a palavra "suburbana" no sentido de provinciana, limitada, excessivamente local e conjuntural, e não como um preconceito contra a origem de alguém. Da mesma forma, ao falar que os tais sambistas foram atraídos por uma feijoada ele certamente tinha em mente o papel cúmplice da vítima simbólica no populismo brasileiro: a definição do populismo é precisamente a relação não-institucional, não-legal, portanto não-republicana entre o dono do poder e o "povo". Trocando em miúdos, trata-se do político que oferece cesta-básica em troca de votos, pessoalizando a política ao invés de universalizá-la. Os cidadãos pobres que aceitam esse jogo comportam-se exatamente como quem aceita votar em alguém por causa de uma feijoada, e era a esse mecanismo histórico que Gabeira, no fundo, aludia. Não há como comprovar que os sambistas em questão apoiavam Paes por motivos de ordem pessoalizante, daí a declaração de Gabeira ter sido mesmo infeliz e até leviana, mas ela, num nível mais profundo, tocava numa questão fundamental.
Com efeito, a candidatura de Gabeira tinha sua força maior numa dimensão simbólica (centrada na sólida afirmação dos valores republicanos, eles mesmos simbólicos e abstratos por definição) que, por sua vez, exige do eleitorado uma alta capacidade de abstração. Não é por acaso, obviamente, que a imensa maioria de seus eleitores é dotada de maiores níveis de instrução. A essa força simbólica, o candidato adversário respondia com uma retórica concreta, palpável, de ação e números, supostamente esvaziada de caráter ideológico. O embate se estabeleceu entre esses pólos, e Gabeira errou decisivamente ao fornecer munição para que seu adversário, valendo-se dos golpes baixos da política tradicional, transformasse seu republicanismo em elitismo, sua sofisticação intelectual em preconceito. No meu entender, esse erro determinou sua derrota.
Mas, assim como sua candidatura transcendia, simbolicamente, seu tempo e lugar efetivos, sua derrota também transcende seu resultado efetivo. À pergunta de Fernando Molica, com que iniciei esse arrazoado, eu responderia então o seguinte: a derrota de Gabeira não significa a vitória do axioma pernicioso acima referido, mas, ao contrário, a prova de que é possível desmenti-lo. Pois Gabeira não perdeu porque desobedeceu o axioma, mas porque errou em detalhes de campanha. Detalhes que, numa contenda acirrada, acabaram por fazer a diferença. Quando surgirá uma outra figura política com tamanha estatura ética e vontade política para enfrentar tudo isso, aí são outros quinhentos (espero que não quinhentos anos), mas, tal como se deu, a derrota reacende a esperança no momento mesmo que a apagou.
Francisco Bosco
.
Labels:
Eleiçoes,
Francisco Bosco,
Política
26.10.08
Giuseppe Ungaretti: "Allegría di naufragi" / "Alegria de naufrágios"
.
Alegria de naufrágios
E rápido retoma
a viagem
como
depois do naufrágio
um sobrevivente
lobo do mar
Allegría di naufragi
E subito riprende
il viaggio
come
dopo il naufragio
un superstite
lupo di mare
De: UNGARETTI, Giuseppe. Allegria di naufragi. Firenze: Vallechi, 1919.
Alegria de naufrágios
E rápido retoma
a viagem
como
depois do naufrágio
um sobrevivente
lobo do mar
Allegría di naufragi
E subito riprende
il viaggio
come
dopo il naufragio
un superstite
lupo di mare
De: UNGARETTI, Giuseppe. Allegria di naufragi. Firenze: Vallechi, 1919.
Labels:
Giuseppe Ungaretti,
Poema
25.10.08
Caetano Veloso: Gabeira
.
GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA. Vamos redobrar o entusiasmo e deixar a onda crescer. Gabeira é uma onda boa. O Rio está tendo coragem de olhar para si mesmo. Acho que estamos bem com Paes e Gabeira para escolher. Não tenho nada contra Paes. Mas Gabeira é muito mais coerente. Desprezemos a mão pesada da grande imprensa em sua tentativa de sufocar a força espontânea que a candidatura de Gabeira desencadeou. Tudo o que ele fez de admirável - respeito aos concorrentes, limpeza na campanha de rua, desprezo pelos “santinhos” - vai ganhar cada vez mais significado. Gabeira se eleger prefeito do Rio é algo bom em si mesmo. Comecemos a pensar em ajudá-lo a governar. E que esse nosso pensamento chegue ao governo do estado e ao planalto. Essa raiva de Dirceu é patética. E a de Vladimir (de quem sempre gosto mais) é apenas para uso de campanha. Depois todos terão de conviver com a retidão e a sensatez que Gabeira nunca abandonou e que há de manter quando for prefeito.
Do blog "Obra em Progresso", http://www.obraemprogresso.com.br/
GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA. Vamos redobrar o entusiasmo e deixar a onda crescer. Gabeira é uma onda boa. O Rio está tendo coragem de olhar para si mesmo. Acho que estamos bem com Paes e Gabeira para escolher. Não tenho nada contra Paes. Mas Gabeira é muito mais coerente. Desprezemos a mão pesada da grande imprensa em sua tentativa de sufocar a força espontânea que a candidatura de Gabeira desencadeou. Tudo o que ele fez de admirável - respeito aos concorrentes, limpeza na campanha de rua, desprezo pelos “santinhos” - vai ganhar cada vez mais significado. Gabeira se eleger prefeito do Rio é algo bom em si mesmo. Comecemos a pensar em ajudá-lo a governar. E que esse nosso pensamento chegue ao governo do estado e ao planalto. Essa raiva de Dirceu é patética. E a de Vladimir (de quem sempre gosto mais) é apenas para uso de campanha. Depois todos terão de conviver com a retidão e a sensatez que Gabeira nunca abandonou e que há de manter quando for prefeito.
Do blog "Obra em Progresso", http://www.obraemprogresso.com.br/
Constantinos Caváfis: "Desejos", traduzido por Ísis Borges da Fonseca
De: KAVÁFIS, K. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da Fonseca. São Paulo: Odysseus, 2006.
Labels:
Constantinos Caváfis,
Poema
24.10.08
Paul Valéry: sobre a literatura
.
Há pessoas que buscam na literatura a recordação de suas emoções, ou as emoções mesmas; ou o reforço ou o esclarecimento de suas próprias emoções.
Quanto a mim, não necessito nem de tais reforços nem de tais explicações, nem sobretudo da recordação, do ricordo de minhas emoções – pois das minhas emoções só amo as que não precisam ser recordadas nem reforçadas nem esclarecidas.
Aos livros, peço: ou o esquecimento, ser outro – e consequentemente nenhuma profundidade; ou o armamento do meu espírito, o armamento não do indivíduo; – mas visões que não tive e que podem enriquecer o meu arsenal – meios suscetíveis de me engrandecer – ou de me economizar erros ou tempo –
É nisso que os romances sobre o amor me entediam – perder tempo acerca de uma perda de tempo e perdê-lo em análises que já sei que não valem nada, sendo ou demasiadamente particulares ou demasiadamente arbitrárias por essência.
De: VALÉRY, Paul. "Ego". In: Cahiers I. Paris: Gallimard, 1973.
Há pessoas que buscam na literatura a recordação de suas emoções, ou as emoções mesmas; ou o reforço ou o esclarecimento de suas próprias emoções.
Quanto a mim, não necessito nem de tais reforços nem de tais explicações, nem sobretudo da recordação, do ricordo de minhas emoções – pois das minhas emoções só amo as que não precisam ser recordadas nem reforçadas nem esclarecidas.
Aos livros, peço: ou o esquecimento, ser outro – e consequentemente nenhuma profundidade; ou o armamento do meu espírito, o armamento não do indivíduo; – mas visões que não tive e que podem enriquecer o meu arsenal – meios suscetíveis de me engrandecer – ou de me economizar erros ou tempo –
É nisso que os romances sobre o amor me entediam – perder tempo acerca de uma perda de tempo e perdê-lo em análises que já sei que não valem nada, sendo ou demasiadamente particulares ou demasiadamente arbitrárias por essência.
De: VALÉRY, Paul. "Ego". In: Cahiers I. Paris: Gallimard, 1973.
Labels:
Emoção,
Literatura,
Paul Valéry
22.10.08
Ezra Pound: "In a station of the metro" / "Numa estação do metrô"
.
Numa estação do metrô
A aparição desses rostos na multidão:
pétalas num galho molhado, preto.
In a station of the metro
The apparition of these faces in the crowd;
petals on a wet, black bough.
De: POUND, Ezra. "Poems of Lustra: 1913-1915". In: Personae. The shorter poems. Org. p. L. Baechler e A. W. Litz. New York: New Directions, 1990.
Numa estação do metrô
A aparição desses rostos na multidão:
pétalas num galho molhado, preto.
In a station of the metro
The apparition of these faces in the crowd;
petals on a wet, black bough.
De: POUND, Ezra. "Poems of Lustra: 1913-1915". In: Personae. The shorter poems. Org. p. L. Baechler e A. W. Litz. New York: New Directions, 1990.
Labels:
Ezra Pound,
Poema
21.10.08
Francisco Bosco: Uma chance histórica
A candidatura de Gabeira a prefeito do Rio de Janeiro tem uma enorme importância, não apenas para a cidade do Rio, como para todo o Brasil e sua história política. É no mínimo uma raridade, senão uma novidade histórica, uma candidatura que, desde o início, tenha se orientado incondicionalmente por princípios de absoluto respeito à legalidade, ao espaço público e aos adversários políticos. Uma candidatura que tenha se guiado por um elevado senso moral, de que não abriu mão mesmo quando confrontando manobras tradicionais da política brasileira, como distribuição de panfletos apócrifos, uso abusivo e caviloso de declarações infelizes (como no episódio que envolveu a vereadora Lucinha), estratégias obscurantistas, etc.
Pois essa tem sido a postura do candidato Gabeira, que estabeleceu tais princípios como condição para candidatar-se. Não se pode perder de vista a chance e o significado históricos desse gesto e de sua manutenção inabalável. A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral.
É precisamente contra tudo isso que a candidatura de Gabeira desde já se opõe, e a firmeza que o candidato vem demonstrando na sustentação dessa postura não deixa dúvidas quanto a que ela permanecerá orientando sua gestão, em caso de vitória. Pois essa vitória, então, significará nada menos que a possibilidade de o exercício político estar verdadeiramente subordinado aos interesses republicanos, isto é, significará que a esfera política brasileira, tão esvaziada, tão imobilizadora, será dotada de credibilidade. Sem essa credibilidade parece impossível mobilizar a sociedade a fim de ela tornar-se uma força decisiva no processo de engrandecimento do Brasil, processo que exige maior justiça social, o que por sua vez depende de amplo respeito à legalidade. Parece-me que tudo isso fica comprometido quando a esfera política é contaminada, desde as campanhas eleitorais, pelo jogo sujo de que falei acima.
Não sou cientista político, minhas palavras são apenas as de um cidadão atento ao que considera os caminhos e descaminhos de sua cidade, seu país, seu mundo. Mas posso e devo dizer que, numa era de tantas incertezas – morais, estéticas, comportamentais, etc. –, a candidatura de Gabeira é um acontecimento que não me deixa nenhuma dúvida quanto a sua importância e seu significado de oportunidade histórica, oportunidade que não podemos desperdiçar.
Francisco Bosco, a uma semana da eleição.
Pois essa tem sido a postura do candidato Gabeira, que estabeleceu tais princípios como condição para candidatar-se. Não se pode perder de vista a chance e o significado históricos desse gesto e de sua manutenção inabalável. A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral.
É precisamente contra tudo isso que a candidatura de Gabeira desde já se opõe, e a firmeza que o candidato vem demonstrando na sustentação dessa postura não deixa dúvidas quanto a que ela permanecerá orientando sua gestão, em caso de vitória. Pois essa vitória, então, significará nada menos que a possibilidade de o exercício político estar verdadeiramente subordinado aos interesses republicanos, isto é, significará que a esfera política brasileira, tão esvaziada, tão imobilizadora, será dotada de credibilidade. Sem essa credibilidade parece impossível mobilizar a sociedade a fim de ela tornar-se uma força decisiva no processo de engrandecimento do Brasil, processo que exige maior justiça social, o que por sua vez depende de amplo respeito à legalidade. Parece-me que tudo isso fica comprometido quando a esfera política é contaminada, desde as campanhas eleitorais, pelo jogo sujo de que falei acima.
Não sou cientista político, minhas palavras são apenas as de um cidadão atento ao que considera os caminhos e descaminhos de sua cidade, seu país, seu mundo. Mas posso e devo dizer que, numa era de tantas incertezas – morais, estéticas, comportamentais, etc. –, a candidatura de Gabeira é um acontecimento que não me deixa nenhuma dúvida quanto a sua importância e seu significado de oportunidade histórica, oportunidade que não podemos desperdiçar.
Francisco Bosco, a uma semana da eleição.
Labels:
Eleições,
Fernando Gabeira,
Francisco Bosco,
Política,
Rio de Janeiro
Lançamento de livro de Oleg Almeida
Lançamento do livro "Memórias dum hiperbóreo", de Oleg Alemida, hoje, às 19 h, na Livraria Timbre, no Shopping da Gávea, no Rio de Janeiro:
Labels:
Efemérides,
Oleg Almeida
20.10.08
Cecília Meireles: "Elegia a uma pequena borboleta"
.
Elegia a uma pequena borboleta
Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,
como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.
Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!
Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.
Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos
Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!
De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.
Elegia a uma pequena borboleta
Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,
como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,
minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.
Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!
Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.
Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos
Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!
E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!
De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.
Labels:
Cecília Meireles,
Poema
19.10.08
A educação da polícia
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 18 de outubro:
A educação da polícia
RECENTEMENTE UM amigo meu, professor de filosofia, ficou chocado ao passar em frente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). É que, tentando entender qual era o objeto contra o qual protestavam os estudantes que haviam por lá armado uma barricada, ele percebeu um cartaz que continha a palavra "Kant" seguida de um sinal de igualdade, seguido de uma cruz suástica: em suma, "Kant é igual ao nazismo".
"Que estudantes são esses", questionava, "que associam ao nazismo justamente o maior filósofo do iluminismo, aquele que mostrou que o fim último do direito é a liberdade e que afirmava não haver nada neste mundo que não possa ser objeto de crítica?".
Concordando que a cena por ele descrita era absurda – embora talvez não estivesse inteiramente deslocada em certos círculos universitários, digamos "pós-modernos" – resolvi, intrigado, fazer uma sumária pesquisa sobre esse assunto na internet. Logo verifiquei que estávamos equivocados em relação aos estudantes. Não é o filósofo alemão Immanuel Kant, mas o antropólogo brasileiro Roberto Kant de Lima que eles acusam de nazismo ou totalitarismo. Ora, ocorre que conheço suficientemente o trabalho também deste Kant para poder afirmar que, de todo modo, os estudantes em questão estão errados.
De fato, tive oportunidade de ler, algum tempo atrás, dois livros originais e estimulantes desse notável antropólogo. O primeiro, "A antropologia da academia: quando os índios somos nós", é o resultado do fato de que Roberto Kant aproveitou a ocasião em que fazia o seu doutorado, em Harvard, para observar a comunidade acadêmica americana com o olhar de um antropólogo a efetuar seu trabalho de campo. Isso lhe permitiu apreender de maneiras surpreendentes algumas marcantes características tanto da sociedade americana quanto, por comparação, da brasileira.
No outro livro dele que li, "A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos", Roberto Kant consegue, a partir do exame da questão de segurança pública no Rio, revelar os mecanismos particulares por meio dos quais no Brasil, de maneira geral, "uma ordem constitucional igualitária é aplicada de uma maneira hierárquica pelo sistema judicial". As práticas policiais discricionárias são, como ele mostra, parte de um sistema judicial oficial que opera tradicionalmente por meio de "malhas" que particularizam, em todos os níveis do sistema judiciário, a aplicação das leis universais. No nível da polícia, essas "malhas" se manifestam como certos padrões tradicionais de atitude e comportamento -certo ethos- que, a despeito de uma legislação universalista e moderna, perpetuam em grande medida as desigualdades particularistas herdadas do Brasil pré-moderno, tradicional, hierárquico, escravagista.
Forçoso é reconhecer que, sem a eliminação dessas práticas anacrônicas, não se pode dizer que tenham plena vigência, no Brasil, nem os direitos humanos nem a democracia. Essa verdade foi há pouco dramaticamente reafirmada pela descoberta do erro judiciário que consistiu na prisão e na condenação de três rapazes pobres que, para escapar da brutal tortura a que foram submetidos numa delegacia policial de São Paulo, haviam confessado um crime que não cometeram.
Existe portanto, segundo Roberto Kant, uma situação esquizofrênica: por um lado, uma prática policial cuja teoria implícita é antimoderna, antiuniversalista e discriminatória; e, por outro lado, uma teoria moderna, universalista e igualitária, que se encontra por exemplo na nossa Constituição, mas que não integralmente é posta em prática. Foi na tentativa de contribuir para corrigir essa monstruosidade que ele não só criou e coordena um respeitado curso de especialização em segurança pública, como também elaborou um exemplar projeto de curso superior de bacharelado em segurança pública e social. "Urge", diz ele, com razão, "instituir, no âmbito da universidade pública, gratuita e de qualidade, a produção e reprodução de um campo de conhecimento que propicie a transformação da inflexão estatal da segurança pública para o viés do cidadão e da sociedade".
Pois bem, foi ao tentar abrir tal curso na UFF que Roberto Kant provocou a ira do pequeno, porém ruidoso, grupo de estudantes do ICHF que o acusam de nazismo. Será que se consideram revolucionários quando se opõem à luta contra o que há de pior e de mais retrógrado no Brasil?
A educação da polícia
RECENTEMENTE UM amigo meu, professor de filosofia, ficou chocado ao passar em frente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). É que, tentando entender qual era o objeto contra o qual protestavam os estudantes que haviam por lá armado uma barricada, ele percebeu um cartaz que continha a palavra "Kant" seguida de um sinal de igualdade, seguido de uma cruz suástica: em suma, "Kant é igual ao nazismo".
"Que estudantes são esses", questionava, "que associam ao nazismo justamente o maior filósofo do iluminismo, aquele que mostrou que o fim último do direito é a liberdade e que afirmava não haver nada neste mundo que não possa ser objeto de crítica?".
Concordando que a cena por ele descrita era absurda – embora talvez não estivesse inteiramente deslocada em certos círculos universitários, digamos "pós-modernos" – resolvi, intrigado, fazer uma sumária pesquisa sobre esse assunto na internet. Logo verifiquei que estávamos equivocados em relação aos estudantes. Não é o filósofo alemão Immanuel Kant, mas o antropólogo brasileiro Roberto Kant de Lima que eles acusam de nazismo ou totalitarismo. Ora, ocorre que conheço suficientemente o trabalho também deste Kant para poder afirmar que, de todo modo, os estudantes em questão estão errados.
De fato, tive oportunidade de ler, algum tempo atrás, dois livros originais e estimulantes desse notável antropólogo. O primeiro, "A antropologia da academia: quando os índios somos nós", é o resultado do fato de que Roberto Kant aproveitou a ocasião em que fazia o seu doutorado, em Harvard, para observar a comunidade acadêmica americana com o olhar de um antropólogo a efetuar seu trabalho de campo. Isso lhe permitiu apreender de maneiras surpreendentes algumas marcantes características tanto da sociedade americana quanto, por comparação, da brasileira.
No outro livro dele que li, "A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos", Roberto Kant consegue, a partir do exame da questão de segurança pública no Rio, revelar os mecanismos particulares por meio dos quais no Brasil, de maneira geral, "uma ordem constitucional igualitária é aplicada de uma maneira hierárquica pelo sistema judicial". As práticas policiais discricionárias são, como ele mostra, parte de um sistema judicial oficial que opera tradicionalmente por meio de "malhas" que particularizam, em todos os níveis do sistema judiciário, a aplicação das leis universais. No nível da polícia, essas "malhas" se manifestam como certos padrões tradicionais de atitude e comportamento -certo ethos- que, a despeito de uma legislação universalista e moderna, perpetuam em grande medida as desigualdades particularistas herdadas do Brasil pré-moderno, tradicional, hierárquico, escravagista.
Forçoso é reconhecer que, sem a eliminação dessas práticas anacrônicas, não se pode dizer que tenham plena vigência, no Brasil, nem os direitos humanos nem a democracia. Essa verdade foi há pouco dramaticamente reafirmada pela descoberta do erro judiciário que consistiu na prisão e na condenação de três rapazes pobres que, para escapar da brutal tortura a que foram submetidos numa delegacia policial de São Paulo, haviam confessado um crime que não cometeram.
Existe portanto, segundo Roberto Kant, uma situação esquizofrênica: por um lado, uma prática policial cuja teoria implícita é antimoderna, antiuniversalista e discriminatória; e, por outro lado, uma teoria moderna, universalista e igualitária, que se encontra por exemplo na nossa Constituição, mas que não integralmente é posta em prática. Foi na tentativa de contribuir para corrigir essa monstruosidade que ele não só criou e coordena um respeitado curso de especialização em segurança pública, como também elaborou um exemplar projeto de curso superior de bacharelado em segurança pública e social. "Urge", diz ele, com razão, "instituir, no âmbito da universidade pública, gratuita e de qualidade, a produção e reprodução de um campo de conhecimento que propicie a transformação da inflexão estatal da segurança pública para o viés do cidadão e da sociedade".
Pois bem, foi ao tentar abrir tal curso na UFF que Roberto Kant provocou a ira do pequeno, porém ruidoso, grupo de estudantes do ICHF que o acusam de nazismo. Será que se consideram revolucionários quando se opõem à luta contra o que há de pior e de mais retrógrado no Brasil?
Labels:
Brasil,
Escravagismo,
Immanuel Kant,
Modernidade,
Polícia,
Pré-modernidade,
Roberto Kant de Lima,
UFF
16.10.08
Paul Eluard: "[Mon amour]" / "[Meu amor]"
[Meu amor]
Meu amor por ter figurado meus desejos
Posto teus lábios no céu de tuas palavras como
[um astro
Teus beijos na noite viva
E o rastro de teus braços em torno de mim
Como uma chama em sinal de conquista
Meus sonhos estão no mundo
Claros e perpétuos
E quando tu não estás
Sonho que durmo sonho que sonho
[Mon amour]
Mon amour pour avoir figuré mes désirs
Mis tes lèvres au ciel de tes mots comme un astre
Tes baisers dans la nuit vivante
Et le sillage de tes bras autour de moi
Comme une flamme en signe de conquête
Mes rêves sont au monde
Clairs et perpétuels
Et quand tu n'es pas là
Je rêve que je dors je rêve que je rêve
De: ÉLUARD, Paul. "L'Amour la poésie", In: Capitale de la douleur, suivi de L'Amour la poésie. Paris: Gallimard, 1964.
Meu amor por ter figurado meus desejos
Posto teus lábios no céu de tuas palavras como
[um astro
Teus beijos na noite viva
E o rastro de teus braços em torno de mim
Como uma chama em sinal de conquista
Meus sonhos estão no mundo
Claros e perpétuos
E quando tu não estás
Sonho que durmo sonho que sonho
[Mon amour]
Mon amour pour avoir figuré mes désirs
Mis tes lèvres au ciel de tes mots comme un astre
Tes baisers dans la nuit vivante
Et le sillage de tes bras autour de moi
Comme une flamme en signe de conquête
Mes rêves sont au monde
Clairs et perpétuels
Et quand tu n'es pas là
Je rêve que je dors je rêve que je rêve
De: ÉLUARD, Paul. "L'Amour la poésie", In: Capitale de la douleur, suivi de L'Amour la poésie. Paris: Gallimard, 1964.
Labels:
Paul Éluard,
Poema
14.10.08
Wisława Szymborska: Trecho de "O poeta e o mundo"
O mundo – o que quer que pensemos quando aterrorizados pela sua vastidão e pela nossa própria impotência, ou amargurados pela sua indiferença e pelo sofrimento individual de pessoas, animais e talvez até de plantas, pois o que garante que as plantas não sintam dor; o que quer que pensemos das extensões penetradas pelos raios de estrelas cercadas de planetas que tenhamos acabado de descobrir: de planetas já mortos? Ainda mortos? Simplesmente não sabemos; o que quer que pensemos desse teatro incomensurável para o qual temos bilhetes reservados, mas bilhetes cuja duração é ridiculamente curta, sendo cercada por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos deste mundo – ele é espantoso.
Mas “espantoso” é um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Afinal, ficamos espantados por coisas que desviam de alguma norma bem conhecida e universalmente aceita, de uma obviedade à qual nos acostumamos. Ora, o problema é que não há esse mundo óbvio. Nosso espanto existe por si e não se baseia na comparação com coisa nenhuma.
É verdade que, na fala cotidiana, em que não paramos para pesar cada palavra, usamos frases como “o mundo cotidiano”, “a vida corriqueira”, “o curso normal das coisas”... Mas na língua da poesia, em que cada palavra é sopesada, nada é comum ou normal. Nem sequer uma pedra e nem sequer uma nuvem por cima. Nem sequer um dia e nem sequer uma noite depois. E sobretudo, nem sequer uma existência, seja de quem for, neste mundo.
De: SZYMBORSKA, Wisława. "The poet and the world". Nobel lecture.
Labels:
Espanto,
Poesia,
Wisława Szymborska
12.10.08
Pedro Salinas: "[No te veo]" / "[Não te vejo]
[Não te vejo]
Não te vejo. Bem sei
que estás aqui, atrás
de uma frágil parede
de ladrilhos e cal, bem ao alcance
da minha voz, se chamasse.
Mas não chamarei.
Chamarei amanhã,
quando, ao não te ver mais
imagine que continuas
aqui perto, ao meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem eu não quis dar.
Amanhã... quando estiveres
lá atrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de anos.
[No te veo]
No te veo. Bien sé
que estás aquí, detrás
de una frágil pared
de ladrillos y cal, bien al alcance
de mi voz, si llamara.
Pero no llamaré.
Te llamaré mañana,
cuando, al no verte ya
me imagine que sigues
aqui cerca, a mi lado,
y que basta hoy la voz
que ayer no quise dar.
Mañana... cuando estés
allá detrás de una
frágil pared de vientos,
de cielos y de años.
De: SALINAS, Pedro. Poesias completas. Madrid: Aguilar, 1961.
Não te vejo. Bem sei
que estás aqui, atrás
de uma frágil parede
de ladrilhos e cal, bem ao alcance
da minha voz, se chamasse.
Mas não chamarei.
Chamarei amanhã,
quando, ao não te ver mais
imagine que continuas
aqui perto, ao meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem eu não quis dar.
Amanhã... quando estiveres
lá atrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de anos.
[No te veo]
No te veo. Bien sé
que estás aquí, detrás
de una frágil pared
de ladrillos y cal, bien al alcance
de mi voz, si llamara.
Pero no llamaré.
Te llamaré mañana,
cuando, al no verte ya
me imagine que sigues
aqui cerca, a mi lado,
y que basta hoy la voz
que ayer no quise dar.
Mañana... cuando estés
allá detrás de una
frágil pared de vientos,
de cielos y de años.
De: SALINAS, Pedro. Poesias completas. Madrid: Aguilar, 1961.
Labels:
Pedro Salinas,
Poema
11.10.08
João Cabral sobre o verso livre: em 1953 e 35 anos depois
João Cabral em 1953:
Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno. Pois a verdade é que a realidade presente é rica demais para caber nessas formas hoje requintadas e artificiais das épocas de estabilidade cultural.
Isso não se aplica, é claro, às formas da poesia popular que usam a métrica e a rima com absoluta liberdade, sem transformá-las em condição essencial e ponto de partida da criação poética.
(Entrevista a Vinícius de Moraes, Manchete, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1953)
João Cabral em 1988:
(...) Uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil.
(Entrevista a Mário César Carvalho, Folha de S,Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 24 de maio de 1988)
De: CABRAL de MELO NETO, J. ATHAÍDE, F. (Org.) Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Acho o verso livre uma aquisição fabulosa e que é bobagem qualquer tentativa de volta às formas preestabelecidas. Abrir mão das aquisições da poesia moderna seria para mim como banir a poesia do mundo moderno. Pois a verdade é que a realidade presente é rica demais para caber nessas formas hoje requintadas e artificiais das épocas de estabilidade cultural.
Isso não se aplica, é claro, às formas da poesia popular que usam a métrica e a rima com absoluta liberdade, sem transformá-las em condição essencial e ponto de partida da criação poética.
(Entrevista a Vinícius de Moraes, Manchete, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1953)
João Cabral em 1988:
(...) Uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre. No tempo em que você tinha que metrificar e rimar, você tinha que trabalhar seu texto. Desde o momento em que existe o verso livre, todo o mundo acha de descrever a dor de corno dele corno se fosse um poema. No tempo da poesia metrificada e rimada, você tinha que trabalhar e tirava o inútil.
(Entrevista a Mário César Carvalho, Folha de S,Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 24 de maio de 1988)
De: CABRAL de MELO NETO, J. ATHAÍDE, F. (Org.) Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Labels:
João Cabral de Melo Neto,
Métrica,
Rima,
Verso livre
10.10.08
Nando Reis: "Igreja"
.
IGREJA (Nando Reis)
Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei.
Eu não gosto de bispo
Eu não gosto de cristo
Eu não digo amém.
Eu não monto presépio
Eu não gosto de vigário
Nem da missa das seis.
Eu não gosto de terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém.
Eu não gosto do papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus.
Eu não gosto da igreja
Eu não entro na igreja
Eu não tenho religião.
IGREJA (Nando Reis)
Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei.
Eu não gosto de bispo
Eu não gosto de cristo
Eu não digo amém.
Eu não monto presépio
Eu não gosto de vigário
Nem da missa das seis.
Eu não gosto de terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém.
Eu não gosto do papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus.
Eu não gosto da igreja
Eu não entro na igreja
Eu não tenho religião.
Labels:
Nando Reis,
Poema,
Religião
8.10.08
Juán Ramón Jiménez: "No era nadie"/"Não era ninguém"
.
Não era ninguém
– Não era ninguém. A água. – Ninguém?
E não é ninguém a água? – Não
há ninguém. É a flor. – Não há ninguém?
Mas não é ninguém a flor?
– Não há ninguém. Era o vento. – Ninguém?
O vento não é ninguém? – Não
há ninguém. Ilusão. – Não há ninguém?
E não é ninguém a ilusão?
No era nadie
– No era nadie. El agua. – ¿Nadie?
¿Que no es nadie el agua? – No
hay nadie. Es la flor. – ¿No hay nadie?
Pero ¿no es nadie la flor?
– No hay nadie. Era el viento. – ¿Nadie?
¿No es el viento nadie? – No
hay nadie. Ilusión. – ¿No hay nadie?
¿Y no es nadie la ilusión?
De: JIMÉNEZ, Juan Ramón. Jardines lejanos. Madrid: Taurus, 1982.
Não era ninguém
– Não era ninguém. A água. – Ninguém?
E não é ninguém a água? – Não
há ninguém. É a flor. – Não há ninguém?
Mas não é ninguém a flor?
– Não há ninguém. Era o vento. – Ninguém?
O vento não é ninguém? – Não
há ninguém. Ilusão. – Não há ninguém?
E não é ninguém a ilusão?
No era nadie
– No era nadie. El agua. – ¿Nadie?
¿Que no es nadie el agua? – No
hay nadie. Es la flor. – ¿No hay nadie?
Pero ¿no es nadie la flor?
– No hay nadie. Era el viento. – ¿Nadie?
¿No es el viento nadie? – No
hay nadie. Ilusión. – ¿No hay nadie?
¿Y no es nadie la ilusión?
De: JIMÉNEZ, Juan Ramón. Jardines lejanos. Madrid: Taurus, 1982.
Labels:
Juan Ramón Jiménez,
Poema
6.10.08
Fernando Pessoa: poema 165 do "Cancioneiro"
Agradeço ao Edson Dognaldo Gil por nos ter lembrado a seguinte maravilha de Fernando Pessoa:
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguêm
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguêm
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar
De: PESSOA, Fernando. "Cancioneiro". In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
Labels:
Edson Dognaldo Gil,
Fernando Pessoa,
Poema
5.10.08
Que é a poesia?
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo sábado, 4 de outubro:
Que é a poesia?
Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:
“O rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”
Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".
O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".
Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.
E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:
“Nuvens (I)
Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.
"Nubes (I)
No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."
As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.
Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.
Que é a poesia?
Para dizer o que penso ser a poesia, recorro, em primeiro lugar, ao poema "O Rio", de Manuel Bandeira:
“O rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.”
Desde o título, "O Rio", torna-se inevitável pensar no famoso rio do filósofo grego Heráclito, em que não é possível pisar duas vezes. O primeiro verso reforça essa impressão: "Ser como o rio"... Mas a sentença de Heráclito – aparte certas interpretações recherchées – enfatiza o mobilismo universal, o fato de que coisa nenhuma jamais permanece a mesma. O rio de Bandeira, ao contrário, é em primeiro lugar a própria imagem da constância e até de um certo estoicismo: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite./ Não temer as trevas da noite".
O rio a defluir silenciosamente dentro da noite não teme as trevas da noite porque ele é também o rio da noite, isto é, a noite enquanto rio. O infinitivo aqui é implicitamente desiderativo: ele manifesta um desejo. Mas quem é que aqui deseja? Talvez se possa dizer que aquele que deseja é o poeta, ou talvez o "eu" lírico, o heterônimo, o personagem em que o poeta se transforma para escrever o poema; mas o infinitivo excede qualquer subjetividade, qualquer "eu". A rigor, não interessa quem deseja, mas apenas o próprio desejo, que se identifica com o ser. Feito um fenômeno da natureza, feito o próprio rio silencioso dentro da noite e feito a própria noite, o desejo, o ser, os versos do poema e o próprio poema estão lá, no infinitivo, silenciosos como o rio e como a noite. Fundem-se no poema o leitor, o poeta, a noite, o rio, as estrelas: "Se há estrelas nos céus, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ Como o rio as nuvens são água,/ Refleti-las também sem mágoa / Nas profundidades tranqüilas".
Se há estrelas nos céus, o poema as tem na superfície. Se há nuvens que o impedem de refletir as estrelas, aquelas são refletidas na profundidade do seu ser, pois as nuvens são feitas da mesma água que ele. Aqui é de Tales, o primeiro filósofo grego, para quem tudo vem da água e tudo volta para a água, mais do que de Heráclito, que me lembro.
E me lembro sobretudo do poeta Jorge Luis Borges, cujo poema “Nuvens (I)” – do qual apresento a seguir uma tradução literal, seguida do original – diz:
“Nuvens (I)
Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste”.
"Nubes (I)
No habrá una sola cosa que no sea
una nube. Lo son las catedrales
de vasta piedra y bíblicos cristales
que el tiempo allanará. Lo es la Odisea,
que cambia como el mar. Algo hay distinto
cada vez que la abrimos. El reflejo
de tu cara ya es otro en el espejo
y en el día es un dudoso laberinto.
Somos los que se van. La numerosa
nube que se deshace en el poniente
es nuestra imagen. Incesantemente
la rosa se convierte en otra rosa.
Eres nube, eres mar, eres olvido.
Eres también aquello que has perdido."
As nuvens são as transformações da água originária, isto é, são todos os entes que o tempo aplanará. Também são nuvens os versos do poema de Homero. Há entretanto uma diferença: os entes em geral perderam a memória de sua origem aquática e se esqueceram de que são nuvens. A "Odisséia", porém – o poema por antonomásia –, muda como o mar. Algo há distinto cada vez que a abrimos. Eis a diferença entre o poema e os demais entes: o poema jamais olvida, no fluxo de sua superfície significante, morfológica, sintática, melódica, rítmica e de suas submersas correntes semânticas, a natureza líquida de todas as coisas e, principalmente, de si próprio.
Lembro que outro dos primeiros filósofos gregos, Anaximandro, dizia que todos os entes determinados provêm do indeterminado (que ele chamava "ápeiron") e têm como causa o indeterminado – que podemos entender como o movimento, a mudança, a vida, o tempo – do qual provêm. Em cada um deles, porém, o indeterminado se transformou em algum ente determinado. Também o poema é um ente determinado, mas um ente determinado que, refletindo o seu oposto, porta em si a marca d'água do movimento originário. Não apenas, cada vez que o lemos, ele se torna diferente do que era na leitura anterior, mas se torna diferente de si próprio no exato instante em que o estamos a ler. Chamo "poesia" essa propriedade do poema.
Labels:
Anaximandro,
ápeiron,
Heráclito de Êfeso,
Homero,
Jorge Luis Borges,
Manuel Bandeira,
Odisséia,
Poesia,
Tales
3.10.08
VOTO EM GABEIRA
Voto em Fernando Gabeira. Não há político que eu admire mais. Tem um programa sério de governo, tem caráter, é aberto a idéias novas, pensa por conta própria, é brilhante, identifica-se com o que há de melhor no Rio.
Há pouco tempo, poucos acreditavam que ele pudessse chegar ao segundo turno. Agora, ele está à beira de fazê-lo. Isso mostra que o Rio é melhor do que muita gente pensa.
Gabeira é capaz de ganhar essa parada. Além disso, só de chegar ao segundo turno, já nos livrará de um pesadelo chamado Crivella.
Há pouco tempo, poucos acreditavam que ele pudessse chegar ao segundo turno. Agora, ele está à beira de fazê-lo. Isso mostra que o Rio é melhor do que muita gente pensa.
Gabeira é capaz de ganhar essa parada. Além disso, só de chegar ao segundo turno, já nos livrará de um pesadelo chamado Crivella.
Labels:
Eleiçoes,
Fernando Gabeira,
Prefeitura
1.10.08
Entrevista à revista "Filosofia (da série "Ciência & Vida")
Em maio deste ano dei a seguinte entrevista a Mônica Serrano, da revista "Filosofia", da série "Ciência & Vida":
Feito de opostos
De que bases de linguagem / pensamento parte a relação filosofia/ poesia?
A filosofia e a poesia são dois empreendimentos extremos – e opostos – do espírito humano.
O discurso filosófico, na medida em que é filosófico, é proposicional. Isso quer dizer que ele afirma determinadas coisas e, ao fazê-lo, nega o oposto dessas coisas. Assim, os empiristas, por exemplo, afirmam que todo conhecimento provém da experiência. Já os racionalistas afirmam que nem todo conhecimento provém da experiência, pois, segundo eles, há coisas que podemos conhecer a priori. Ora, a afirmação dos empiristas contradiz – logo, nega – a dos racionalistas e vice-versa. Quando nos interessamos pelo conteúdo filosófico de determinado discurso, queremos saber o que é que ele afirma e o que é que ele nega, e queremos saber se o que ele afirma é, de fato, verdadeiro, e se o que ele nega é, de fato, falso.
Já o discurso poético, na medida em que é poético, não é proposicional, isto é, não afirma nem nega coisa alguma. Assim, o poema mais famoso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz: “Tinha uma pedra no meio do caminho”. À primeira vista, trata-se de uma proposição que afirma determinada coisa: que afirma, isto é, que tinha uma pedra no meio do caminho. Na verdade, trata-se de uma pseudoproposição. Por que? Em primeiro lugar, porque não se pode saber exatamente o que é que essa pretensa proposição afirma e, consequentemente, não se pode saber se o que ela pretensamente afirma é verdadeiro ou falso. Tinha uma pedra no meio de que caminho? Quando? Em segundo lugar porque, de todo modo, ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua verdade ou falsidade não teria a menor importância para a apreciação do poema. Que pensaríamos de alguém nos dissesse, por exemplo, que esse poema de Drummond é ruim porque, na verdade, não tinha pedra nenhuma no caminho? Acharíamos que tal pessoa fosse burra ou louca; ou, pelo menos, acharíamos que ela não soubesse o que é um poema. Em terceiro lugar, digamos que alguém escreva um poema dizendo o oposto do que esse diz, isto é: “Não tinha pedra alguma no meio do caminho”. Ainda que se trate de um bom poema, não acharemos que ele desminta o poema do Drummond. É que podemos apreciar igualmente um poema que, aparentemente, afirme X (seja lá o que for X) e um poema que, aparentemente, afirme não-X. E isso significa que, na verdade, nem um nem o outro afirma coisa alguma: nem um nem outro é proposicional.
Qual a importância dessa relação nas suas composições para Marina?
O que acabo de dizer significa, para mim, que o estado de espírito em que entro para pensar filosoficamente é inteiramente diferente do estado de espírito em que entro para escrever poesia. E considero letra de música algo da ordem da poesia. Quando escrevo poesia ou letra de música, uso tudo o que sei, todas as minhas potências: minha intuição, minha razão, meu intelecto, minha emoção, minha experiência, minha sensibilidade, meu senso de humor, minha cultura etc. Naturalmente, uso também o que sei de filosofia. Mas, nesse ponto, a filosofia não é mais importante do que as outras coisas que uso. Ela é apenas uma das coisas que fazem parte da minha vida.
Você continua com a atividade de letrista de música?
Sim. No último disco da Marina há algumas letras minhas. Uma delas, aliás, chamada “Três”, foi regravada tanto pela Adriana Calcanhotto quanto pela Ana Carolina.
Como você se descobriu letrista e qual a importância disso em sua vida?
Tornei-me letrista por acaso, graças à minha irmã, Marina. Ela é dez anos mais jovem do que eu e desde cedo começou a estudar violão. A certa altura, começou a compor músicas e, um belo dia, subtraiu um poema meu de uma gaveta e o musicou. Primeiro fiquei zangando com o fato de ela ter mexido nas minhas anotações, mas acabei gostando do resultado disso, isto é, da canção. A partir daí, mudamos o processo de composição. Como morávamos ambos na casa de nossos pais, passamos a compor em conjunto. Quando ela começava a bolar uma melodia, eu começava a escrever palavras que coubessem nessa melodia. A partir das primeiras frases, a música ia tomando forma, ela fazia mais um pedaço de música, eu fazia mais uns versos etc., até que a canção ficasse pronta. A música inspirava a letra, e a letra inspirava a música. Depois, quando cada qual foi morar na sua casa, passei a receber as melodias numa fita ou, de uns anos para cá, num cd, e a escrever os versos para preencher essas melodias, embora haja sempre momentos em que nos encontramos para conversar sobre o que está sendo feito.
Para mim, foi muito grande a importância de fazer letras de música, principalmente por duas razões. A primeira é que, embora eu escreva poemas desde adolescente, demorei a publicá-los. Primeiro, isso se deveu à timidez. Segundo, aconteceu de eu morar na Inglaterra, onde estudei filosofia, na mesma época em que estavam lá exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os quais fiz amizade. Nessa época, nem me ocorria escrever letra de música. Mas acontece que, na casa de Caetano e Gil, conheci também o poeta Haroldo de Campos e li as obras poéticas e teóricas dele, de seu irmão Augusto, e de Décio Pignattari. Tudo isso teve uma importância enorme na evolução da minha relação com a poesia. O que ocorre é que fiquei entusiasmado com o brilhantismo das teses concretistas. Excitou-me também o fato de que teses tão brilhantes e originais estivessem sendo elaboradas por brasileiros, pois o nosso país, em matéria de pensamento teórico, é notoriamente tímido. No entanto, a verdade é que, no que diz respeito à poesia, o que eu gostava realmente de ler e de escrever não eram (fora algumas exceções) poemas concretos, mas poemas discursivos, escritos em versos. Ademais, enquanto os concretistas valorizavam sobretudo a visualidade do poema, o importante para mim era a sua musicalidade. Produziu-se então o que chamo de conflito entre o meu intelecto e a minha sensibilidade. Fiquei inseguro em relação aos meus poemas. O efeito mais notável disso foi que, mesmo depois que voltei ao Brasil, demorei muito tempo para publicar o meu primeiro livro de poemas. O que me libertou dessa inibição foi justamente o fato de fazer letras de música que foram cantadas, gravadas, publicadas. Além disso, as restrições concretistas aos poemas em formas tradicionais não se aplicavam às canções: ao contrário, o próprio Augusto escrevera o seu admirável “Balanço da bossa” valorizando a música popular e os seus letristas. Só anos depois, quando eu já tinha elaborado um pensamento estético independente do concretismo (e que se encontra em parte exposto no meu livro “Finalidades sem fim”), comecei a publicar livros de poemas. Penso portanto sobre a relação entre música e poesia a partir dessas experiências e de minhas reflexões teóricas.
A segunda razão pela qual a atividade de letrista foi importante para mim é que ela me proporcionou a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, coisa que teria sido impensável se eu escrevesse apenas poemas para serem lidos.
Dê-nos um exemplo de poesia clássica ou de letras tuas em que a relação poesia / espanto filosófico fica explícita.
Como eu disse, acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. A coisa se dá assim: o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. Toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento é filosofia. Nietzsche é um grande pensador e está na moda, mas a verdade é que, ao contrário do que Deleuze afirmou, o pensamento dele não é nem sistemático, nem consistente, para que ele possa ser considerado um grande filósofo. Embora tenha grandes intuições, Nietzsche freqüentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.
Há como fazer uso da filosofia para criticar poesia ou qualquer tipo de arte? Vemos que em Finalidades sem fim você toca de alguma maneira neste assunto.
Sim , porque a estética faz parte da filosofia, e é possível desenvolver uma teoria da arte a partir de categorias estéticas. É Algumas obras filosóficas, como, por exemplo, a “Crítica do juízo”, de Kant, proporcionam instrumentos conceituais para se pensar a especificidade da obra de arte. O título do meu livro mesmo, “Finalidades sem fim”, vem do conceito de finalidade sem fim, que designa, para Kant, o fato de que o objeto belo tem a forma da finalidade – achamos que ele é o que devia ser – e, no entanto, não tem fim determinado, pois não nos é possível determinar o que é que ele devia ser. Outros conceitos estéticos de Kant são, por exemplo, o de desinteresse, o de universalidade sem conceito etc.
E como analisar movimentos artísticos a partir da filosofia?
Em “Finalidades sem fim” emprego categorias filosóficas para falar da arte de vanguarda, da poesia de Waly Salomão, do Tropicalismo, de Drummond, de Homero etc.
A questão da vanguarda, por exemplo, tem a ver com a questão da autonomia da arte, e esta, por sua vez, depende da autonomia do estético, que foi objeto da “Crítica do Juízo”, de Kant. A vanguarda histórica combateu a arte enquanto instituição, isto é, combateu a autonomia da arte, concebendo-a como um modo de esterilizar ou domesticar a arte. Isso, na verdade, deveu-se a uma compreensão demasiadamente estreita do estético. Nesse ponto, a meu ver, ela estava errada. Ora, essa discussão, que não cabe detalhar aqui, já é filosófica. O equívoco da vanguarda histórica, entretanto, não teve conseqüências puramente negativas. Ao contrário: como mostro em “Finalidades sem fim”, no próprio processo de combater a instituição da arte, ao romper as categorias, os gêneros e as formas artísticas tradicionais, a vanguarda histórica ajudou, na prática, a revelar o caráter convencional de tais categorias, gêneros e formas. Isso foi um feito extraordinário, que transformou definitivamente a concepção moderna de arte.
Por falar em vanguarda, como vc vê a vanguarda nas artes plásticas? A impressão que se tem é que a transgressão que marcou a arte contemporânea ficou presa no tempo enquanto que outros tipos de arte como a música abriram espaço para diferentes vertestes, permitindo diferentes expressões. Já as artes plásticas continuam na transgressão e não aceitam nada que fique fora desse contexto. Isso não é contraditório?
Penso que não há mais vanguarda em arte nenhuma. “Vanguarda”, de “avant-garde”, quer dizer o destacamento que vai à frente, abrindo caminho para o grosso do exército. De vanguarda foram portanto os artistas que abriram caminhos previamente fechados. Por exemplo, os primeiros músicos a fazer música atonal, os primeiros pintores a fazer pintura abstrata ou concreta etc. Abrir um caminho significa relativizar todos os caminhos que já estavam abertos. Essa relativização afeta todos os demais artistas, isto é, afeta o “grosso do exército”. Hoje, porém, não há mais caminhos interditados: logo, não há mais vanguarda. Ao mesmo tempo, os caminhos que já haviam sido abertos por gerações passadas continuam abertos. Houve uma época em que a vanguarda, ao mesmo tempo em que abria novos caminhos, queria fechar os antigos. Isso não vingou.
Assim, mesmo nas artes plásticas, não tenho a impressão de que a ideologia vanguardista da transgressão seja tão dominante quanto você sugere. Aqui mesmo no Brasil não se pode negar a importância de pintores como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luciano Figueiredo, Ronaldo Rego Macedo, Artur Barrio etc.
Em seu livro Finalidades sem fim você afirma que a vanguarda cumpriu o seu papel e abriu novas possibilidades artísticas. Atualmente, o que há de novo na música/poesia/artes plásticas?
Em música, há o belíssimo disco da Adriana Calcanhotto, “Maré”; em poesia, o livro de Eucanaã Ferraz, “Cinemateca”; e em artes plásticas, a exposição de Luciano Figueiredo, “Tercetos”. Não são obras de vanguarda porque, como eu já disse, não há mais vanguarda. São simplesmente obras belíssimas, que acabam de sair, de três artistas que se encontram no que parece ser o acme, como diziam os gregos, no que parece ser o auge da sua maturidade artística.
Qual sua opinião sobre a filosofia ser matéria no ensino médio? Poderia opinar sobre a contribuição da cultura filosófica na educação?
Sou totalmente favorável. Por ser um pensamento crítico e radical, ilimitado, e questionar todos os pressupostos, a filosofia é capaz de funcionar como instrumento para aqueles que desejem pensar autonomamente.
Você acha que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na poesia?
Não. Por que o faria, se, como eu disse antes, filosofar é inteiramente diferente de fazer poesia? Como o faria, se a filosofia é pensamento abstrato e a poesia, concreto, de modo que, quando alguém filosofa, não faz poesia e, quando faz poesia, não filosofa? Penso que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na própria filosofia. A apreciação de poesia deve ser ensinada em outros cursos, de cursos de poesia mesmo ou de literatura, jamais no curso de filosofia.
Platão já considerava antiga a rixa entre a poesia e a filosofia. Foram Heidegger e a filosofia pós-estruturalista – que, na verdade, devia se chamar “filosofia neo-heideggeriana”, pois foi e é fortemente influenciada por Heidegger – que tentaram reconciliá-las. Mas é uma iniciativa destinada ao fracasso, pois, na medida em que é “filosófica”, a poesia perde sua densidade específica e, na medida em que é “poética”, a filosofia perde a sua incisividade.
De que vertentes filosóficas beberia para explicar/legitimar a homossexualidade? Recorreria a Foucault e Deleuze?
Não acho que seja necessário explicar ou legitimar a homossexualidade. Embora já tenha sido ilegal e perseguida -- e continue a sê-lo, em alguns países retrógrados -- a homossexualidade nunca deixou de ser uma expressão legítima de liberdade individual. E o que deve ser explicado não é a homossexualidade, mas a repressão a ela. Mas isso tem que ser feito tanto por uma crítica filosófica e sociológica da religião quanto através de conceitos psicanalíticos como os de Freud, Marcuse ou M.D. Magno, e não pelos pensamentos, no fundo obscurantistas, de Deleuze ou Foucault.
Você poderia explicar melhor o obscurantismo de Foucault nesse contexto?
Emprego a expressão “obscurantista” no sentido etimológico “de adversário das luzes da razão, inimigo do iluminismo”. Ora a História da loucura na época clássica, de Foucault, no fundo pretende ser, pelo avesso, uma história crítica da razão: e mais, uma história da razão ou da racionalidade ocidental, como se houvesse muitas razões particulares: como se a razão não fosse universal. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar a razão. Acontece que, como toda crítica provém da razão, qualquer tentativa de relativizar a razão só pode ser feita pela própria razão, que, ao reconhecer esse fato, automaticamente anula a relativização a que se submeteu. É o que, corretamente, faz a “Crítica da razão pura”, de Kant. Por não fazer o mesmo, escamoteando os paradoxos e as antinomias em que forçosamente recai, a crítica de Foucault resulta num empreendimento obscurantista, que reduz a razão a uma “luz despótica”. É verdade que a História da loucura é uma das primeiras obras de Foucault e que, mais tarde, ele começou a rever a sua posição em relação ao Iluminismo. Infelizmente, porém, ele morreu antes de poder realizar plenamente o que parecia estar a esboçar. E o fato é que, ainda em 1978, ele se extasiava com a “política com dimensão espiritual” da revolução islamista do aiatolá Khomeini, que, como se sabe, conduziu o Irã a um dos regimes mais obscurantistas do mundo. E note-se que, nos textos dessa época, Foucault usava a palavra “espiritual” no sentido vulgar de “religioso”.
Quanto a Deleuze, limito-me a lembrar que ele chegou a dizer que “a razão é sempre uma região recortada no irracional.[...] No fundo de toda razão [estão] o delírio, a deriva”.
O que é mais forte em vc a filosofia ou a poesia?
A poesia. Sublinho que considero a poesia mais importante para mim, e não de modo absoluto e universal. Outros podem achar a filosofia mais importante. Mas para mim a poesia é mais importante, em primeiro lugar porque, enquanto a filosofia resulta principalmente da atividade do meu intelecto, a poesia resulta, como eu disse acima, do uso, no mais alto grau, de todas as minhas faculdades: intelecto, intuição, emoção, experiência, sensibilidade, senso de humor, cultura etc. Ela é feita, portanto, do melhor de mim. Em segundo lugar porque, para pensar filosoficamente, eu me separo do objeto do meu pensamento e o considero abstratamente; já um poema é concreto, no sentido de ser ao mesmo tempo pensamento e linguagem, sujeito e objeto, eu e não-eu, sentido e som, conceito e imagem, etc. Identifico-me, portanto, infinitamente mais com um poema que eu faça do que com um ensaio de filosofia que eu escreva. Mas a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita” acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema:
DITA
Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.
Quais são seus projetos atuais?
Publicar o meu novo livro de poemas e escrever um livro sobre poesia. Sobre o livro de poemas não sei falar. O livro sobre poesia, porém, será uma obra sistemática. Direi tudo o que sei – ou penso que sei – sobre o assunto: sobre as formas poéticas, sobre a leitura de poemas, sobre a vanguarda, sobre letras de música, sobre métrica, sobre recursos paronomásticos etc.
De:
Feito de opostos
De que bases de linguagem / pensamento parte a relação filosofia/ poesia?
A filosofia e a poesia são dois empreendimentos extremos – e opostos – do espírito humano.
O discurso filosófico, na medida em que é filosófico, é proposicional. Isso quer dizer que ele afirma determinadas coisas e, ao fazê-lo, nega o oposto dessas coisas. Assim, os empiristas, por exemplo, afirmam que todo conhecimento provém da experiência. Já os racionalistas afirmam que nem todo conhecimento provém da experiência, pois, segundo eles, há coisas que podemos conhecer a priori. Ora, a afirmação dos empiristas contradiz – logo, nega – a dos racionalistas e vice-versa. Quando nos interessamos pelo conteúdo filosófico de determinado discurso, queremos saber o que é que ele afirma e o que é que ele nega, e queremos saber se o que ele afirma é, de fato, verdadeiro, e se o que ele nega é, de fato, falso.
Já o discurso poético, na medida em que é poético, não é proposicional, isto é, não afirma nem nega coisa alguma. Assim, o poema mais famoso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz: “Tinha uma pedra no meio do caminho”. À primeira vista, trata-se de uma proposição que afirma determinada coisa: que afirma, isto é, que tinha uma pedra no meio do caminho. Na verdade, trata-se de uma pseudoproposição. Por que? Em primeiro lugar, porque não se pode saber exatamente o que é que essa pretensa proposição afirma e, consequentemente, não se pode saber se o que ela pretensamente afirma é verdadeiro ou falso. Tinha uma pedra no meio de que caminho? Quando? Em segundo lugar porque, de todo modo, ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua verdade ou falsidade não teria a menor importância para a apreciação do poema. Que pensaríamos de alguém nos dissesse, por exemplo, que esse poema de Drummond é ruim porque, na verdade, não tinha pedra nenhuma no caminho? Acharíamos que tal pessoa fosse burra ou louca; ou, pelo menos, acharíamos que ela não soubesse o que é um poema. Em terceiro lugar, digamos que alguém escreva um poema dizendo o oposto do que esse diz, isto é: “Não tinha pedra alguma no meio do caminho”. Ainda que se trate de um bom poema, não acharemos que ele desminta o poema do Drummond. É que podemos apreciar igualmente um poema que, aparentemente, afirme X (seja lá o que for X) e um poema que, aparentemente, afirme não-X. E isso significa que, na verdade, nem um nem o outro afirma coisa alguma: nem um nem outro é proposicional.
Qual a importância dessa relação nas suas composições para Marina?
O que acabo de dizer significa, para mim, que o estado de espírito em que entro para pensar filosoficamente é inteiramente diferente do estado de espírito em que entro para escrever poesia. E considero letra de música algo da ordem da poesia. Quando escrevo poesia ou letra de música, uso tudo o que sei, todas as minhas potências: minha intuição, minha razão, meu intelecto, minha emoção, minha experiência, minha sensibilidade, meu senso de humor, minha cultura etc. Naturalmente, uso também o que sei de filosofia. Mas, nesse ponto, a filosofia não é mais importante do que as outras coisas que uso. Ela é apenas uma das coisas que fazem parte da minha vida.
Você continua com a atividade de letrista de música?
Sim. No último disco da Marina há algumas letras minhas. Uma delas, aliás, chamada “Três”, foi regravada tanto pela Adriana Calcanhotto quanto pela Ana Carolina.
Como você se descobriu letrista e qual a importância disso em sua vida?
Tornei-me letrista por acaso, graças à minha irmã, Marina. Ela é dez anos mais jovem do que eu e desde cedo começou a estudar violão. A certa altura, começou a compor músicas e, um belo dia, subtraiu um poema meu de uma gaveta e o musicou. Primeiro fiquei zangando com o fato de ela ter mexido nas minhas anotações, mas acabei gostando do resultado disso, isto é, da canção. A partir daí, mudamos o processo de composição. Como morávamos ambos na casa de nossos pais, passamos a compor em conjunto. Quando ela começava a bolar uma melodia, eu começava a escrever palavras que coubessem nessa melodia. A partir das primeiras frases, a música ia tomando forma, ela fazia mais um pedaço de música, eu fazia mais uns versos etc., até que a canção ficasse pronta. A música inspirava a letra, e a letra inspirava a música. Depois, quando cada qual foi morar na sua casa, passei a receber as melodias numa fita ou, de uns anos para cá, num cd, e a escrever os versos para preencher essas melodias, embora haja sempre momentos em que nos encontramos para conversar sobre o que está sendo feito.
Para mim, foi muito grande a importância de fazer letras de música, principalmente por duas razões. A primeira é que, embora eu escreva poemas desde adolescente, demorei a publicá-los. Primeiro, isso se deveu à timidez. Segundo, aconteceu de eu morar na Inglaterra, onde estudei filosofia, na mesma época em que estavam lá exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os quais fiz amizade. Nessa época, nem me ocorria escrever letra de música. Mas acontece que, na casa de Caetano e Gil, conheci também o poeta Haroldo de Campos e li as obras poéticas e teóricas dele, de seu irmão Augusto, e de Décio Pignattari. Tudo isso teve uma importância enorme na evolução da minha relação com a poesia. O que ocorre é que fiquei entusiasmado com o brilhantismo das teses concretistas. Excitou-me também o fato de que teses tão brilhantes e originais estivessem sendo elaboradas por brasileiros, pois o nosso país, em matéria de pensamento teórico, é notoriamente tímido. No entanto, a verdade é que, no que diz respeito à poesia, o que eu gostava realmente de ler e de escrever não eram (fora algumas exceções) poemas concretos, mas poemas discursivos, escritos em versos. Ademais, enquanto os concretistas valorizavam sobretudo a visualidade do poema, o importante para mim era a sua musicalidade. Produziu-se então o que chamo de conflito entre o meu intelecto e a minha sensibilidade. Fiquei inseguro em relação aos meus poemas. O efeito mais notável disso foi que, mesmo depois que voltei ao Brasil, demorei muito tempo para publicar o meu primeiro livro de poemas. O que me libertou dessa inibição foi justamente o fato de fazer letras de música que foram cantadas, gravadas, publicadas. Além disso, as restrições concretistas aos poemas em formas tradicionais não se aplicavam às canções: ao contrário, o próprio Augusto escrevera o seu admirável “Balanço da bossa” valorizando a música popular e os seus letristas. Só anos depois, quando eu já tinha elaborado um pensamento estético independente do concretismo (e que se encontra em parte exposto no meu livro “Finalidades sem fim”), comecei a publicar livros de poemas. Penso portanto sobre a relação entre música e poesia a partir dessas experiências e de minhas reflexões teóricas.
A segunda razão pela qual a atividade de letrista foi importante para mim é que ela me proporcionou a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, coisa que teria sido impensável se eu escrevesse apenas poemas para serem lidos.
Dê-nos um exemplo de poesia clássica ou de letras tuas em que a relação poesia / espanto filosófico fica explícita.
Como eu disse, acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. A coisa se dá assim: o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. Toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento é filosofia. Nietzsche é um grande pensador e está na moda, mas a verdade é que, ao contrário do que Deleuze afirmou, o pensamento dele não é nem sistemático, nem consistente, para que ele possa ser considerado um grande filósofo. Embora tenha grandes intuições, Nietzsche freqüentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.
Há como fazer uso da filosofia para criticar poesia ou qualquer tipo de arte? Vemos que em Finalidades sem fim você toca de alguma maneira neste assunto.
Sim , porque a estética faz parte da filosofia, e é possível desenvolver uma teoria da arte a partir de categorias estéticas. É Algumas obras filosóficas, como, por exemplo, a “Crítica do juízo”, de Kant, proporcionam instrumentos conceituais para se pensar a especificidade da obra de arte. O título do meu livro mesmo, “Finalidades sem fim”, vem do conceito de finalidade sem fim, que designa, para Kant, o fato de que o objeto belo tem a forma da finalidade – achamos que ele é o que devia ser – e, no entanto, não tem fim determinado, pois não nos é possível determinar o que é que ele devia ser. Outros conceitos estéticos de Kant são, por exemplo, o de desinteresse, o de universalidade sem conceito etc.
E como analisar movimentos artísticos a partir da filosofia?
Em “Finalidades sem fim” emprego categorias filosóficas para falar da arte de vanguarda, da poesia de Waly Salomão, do Tropicalismo, de Drummond, de Homero etc.
A questão da vanguarda, por exemplo, tem a ver com a questão da autonomia da arte, e esta, por sua vez, depende da autonomia do estético, que foi objeto da “Crítica do Juízo”, de Kant. A vanguarda histórica combateu a arte enquanto instituição, isto é, combateu a autonomia da arte, concebendo-a como um modo de esterilizar ou domesticar a arte. Isso, na verdade, deveu-se a uma compreensão demasiadamente estreita do estético. Nesse ponto, a meu ver, ela estava errada. Ora, essa discussão, que não cabe detalhar aqui, já é filosófica. O equívoco da vanguarda histórica, entretanto, não teve conseqüências puramente negativas. Ao contrário: como mostro em “Finalidades sem fim”, no próprio processo de combater a instituição da arte, ao romper as categorias, os gêneros e as formas artísticas tradicionais, a vanguarda histórica ajudou, na prática, a revelar o caráter convencional de tais categorias, gêneros e formas. Isso foi um feito extraordinário, que transformou definitivamente a concepção moderna de arte.
Por falar em vanguarda, como vc vê a vanguarda nas artes plásticas? A impressão que se tem é que a transgressão que marcou a arte contemporânea ficou presa no tempo enquanto que outros tipos de arte como a música abriram espaço para diferentes vertestes, permitindo diferentes expressões. Já as artes plásticas continuam na transgressão e não aceitam nada que fique fora desse contexto. Isso não é contraditório?
Penso que não há mais vanguarda em arte nenhuma. “Vanguarda”, de “avant-garde”, quer dizer o destacamento que vai à frente, abrindo caminho para o grosso do exército. De vanguarda foram portanto os artistas que abriram caminhos previamente fechados. Por exemplo, os primeiros músicos a fazer música atonal, os primeiros pintores a fazer pintura abstrata ou concreta etc. Abrir um caminho significa relativizar todos os caminhos que já estavam abertos. Essa relativização afeta todos os demais artistas, isto é, afeta o “grosso do exército”. Hoje, porém, não há mais caminhos interditados: logo, não há mais vanguarda. Ao mesmo tempo, os caminhos que já haviam sido abertos por gerações passadas continuam abertos. Houve uma época em que a vanguarda, ao mesmo tempo em que abria novos caminhos, queria fechar os antigos. Isso não vingou.
Assim, mesmo nas artes plásticas, não tenho a impressão de que a ideologia vanguardista da transgressão seja tão dominante quanto você sugere. Aqui mesmo no Brasil não se pode negar a importância de pintores como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luciano Figueiredo, Ronaldo Rego Macedo, Artur Barrio etc.
Em seu livro Finalidades sem fim você afirma que a vanguarda cumpriu o seu papel e abriu novas possibilidades artísticas. Atualmente, o que há de novo na música/poesia/artes plásticas?
Em música, há o belíssimo disco da Adriana Calcanhotto, “Maré”; em poesia, o livro de Eucanaã Ferraz, “Cinemateca”; e em artes plásticas, a exposição de Luciano Figueiredo, “Tercetos”. Não são obras de vanguarda porque, como eu já disse, não há mais vanguarda. São simplesmente obras belíssimas, que acabam de sair, de três artistas que se encontram no que parece ser o acme, como diziam os gregos, no que parece ser o auge da sua maturidade artística.
Qual sua opinião sobre a filosofia ser matéria no ensino médio? Poderia opinar sobre a contribuição da cultura filosófica na educação?
Sou totalmente favorável. Por ser um pensamento crítico e radical, ilimitado, e questionar todos os pressupostos, a filosofia é capaz de funcionar como instrumento para aqueles que desejem pensar autonomamente.
Você acha que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na poesia?
Não. Por que o faria, se, como eu disse antes, filosofar é inteiramente diferente de fazer poesia? Como o faria, se a filosofia é pensamento abstrato e a poesia, concreto, de modo que, quando alguém filosofa, não faz poesia e, quando faz poesia, não filosofa? Penso que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na própria filosofia. A apreciação de poesia deve ser ensinada em outros cursos, de cursos de poesia mesmo ou de literatura, jamais no curso de filosofia.
Platão já considerava antiga a rixa entre a poesia e a filosofia. Foram Heidegger e a filosofia pós-estruturalista – que, na verdade, devia se chamar “filosofia neo-heideggeriana”, pois foi e é fortemente influenciada por Heidegger – que tentaram reconciliá-las. Mas é uma iniciativa destinada ao fracasso, pois, na medida em que é “filosófica”, a poesia perde sua densidade específica e, na medida em que é “poética”, a filosofia perde a sua incisividade.
De que vertentes filosóficas beberia para explicar/legitimar a homossexualidade? Recorreria a Foucault e Deleuze?
Não acho que seja necessário explicar ou legitimar a homossexualidade. Embora já tenha sido ilegal e perseguida -- e continue a sê-lo, em alguns países retrógrados -- a homossexualidade nunca deixou de ser uma expressão legítima de liberdade individual. E o que deve ser explicado não é a homossexualidade, mas a repressão a ela. Mas isso tem que ser feito tanto por uma crítica filosófica e sociológica da religião quanto através de conceitos psicanalíticos como os de Freud, Marcuse ou M.D. Magno, e não pelos pensamentos, no fundo obscurantistas, de Deleuze ou Foucault.
Você poderia explicar melhor o obscurantismo de Foucault nesse contexto?
Emprego a expressão “obscurantista” no sentido etimológico “de adversário das luzes da razão, inimigo do iluminismo”. Ora a História da loucura na época clássica, de Foucault, no fundo pretende ser, pelo avesso, uma história crítica da razão: e mais, uma história da razão ou da racionalidade ocidental, como se houvesse muitas razões particulares: como se a razão não fosse universal. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar a razão. Acontece que, como toda crítica provém da razão, qualquer tentativa de relativizar a razão só pode ser feita pela própria razão, que, ao reconhecer esse fato, automaticamente anula a relativização a que se submeteu. É o que, corretamente, faz a “Crítica da razão pura”, de Kant. Por não fazer o mesmo, escamoteando os paradoxos e as antinomias em que forçosamente recai, a crítica de Foucault resulta num empreendimento obscurantista, que reduz a razão a uma “luz despótica”. É verdade que a História da loucura é uma das primeiras obras de Foucault e que, mais tarde, ele começou a rever a sua posição em relação ao Iluminismo. Infelizmente, porém, ele morreu antes de poder realizar plenamente o que parecia estar a esboçar. E o fato é que, ainda em 1978, ele se extasiava com a “política com dimensão espiritual” da revolução islamista do aiatolá Khomeini, que, como se sabe, conduziu o Irã a um dos regimes mais obscurantistas do mundo. E note-se que, nos textos dessa época, Foucault usava a palavra “espiritual” no sentido vulgar de “religioso”.
Quanto a Deleuze, limito-me a lembrar que ele chegou a dizer que “a razão é sempre uma região recortada no irracional.[...] No fundo de toda razão [estão] o delírio, a deriva”.
O que é mais forte em vc a filosofia ou a poesia?
A poesia. Sublinho que considero a poesia mais importante para mim, e não de modo absoluto e universal. Outros podem achar a filosofia mais importante. Mas para mim a poesia é mais importante, em primeiro lugar porque, enquanto a filosofia resulta principalmente da atividade do meu intelecto, a poesia resulta, como eu disse acima, do uso, no mais alto grau, de todas as minhas faculdades: intelecto, intuição, emoção, experiência, sensibilidade, senso de humor, cultura etc. Ela é feita, portanto, do melhor de mim. Em segundo lugar porque, para pensar filosoficamente, eu me separo do objeto do meu pensamento e o considero abstratamente; já um poema é concreto, no sentido de ser ao mesmo tempo pensamento e linguagem, sujeito e objeto, eu e não-eu, sentido e som, conceito e imagem, etc. Identifico-me, portanto, infinitamente mais com um poema que eu faça do que com um ensaio de filosofia que eu escreva. Mas a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita” acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema:
DITA
Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.
Quais são seus projetos atuais?
Publicar o meu novo livro de poemas e escrever um livro sobre poesia. Sobre o livro de poemas não sei falar. O livro sobre poesia, porém, será uma obra sistemática. Direi tudo o que sei – ou penso que sei – sobre o assunto: sobre as formas poéticas, sobre a leitura de poemas, sobre a vanguarda, sobre letras de música, sobre métrica, sobre recursos paronomásticos etc.
De:
Assinar:
Postagens (Atom)