29.12.20

Katia Maciel: "achados"

 


Agradeço à querida Katia Maciel por me ter dedicado o seguinte belo poema do seu excelente livro Plantio:



achados

         

                para Antonio Cicero


cicero me disse que esquecemos os poemas

se não escrevemos esquecemos

para onde vão os poemas?

os esquecidos 

esqueci um

no banho

corri até aqui

e cá estamos





MACIEL, Katia. "achados". In:_____. Plantio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019. 

27.12.20

Guillaume Apollinaire: "Et toi mon cœur" / "E tu, meu coração": trad.: Antonio Cicero

 


E tu, meu coração



E tu, meu coração, por que bates


Feito um vigia melancólico

observo a noite e a morte






Et toi mon cœur



Et toi mon cœur pourquoi bats-tu


Comme un guetteur mélancolique

j'observe la nuit et la mort






APOLLINAIRE, Guillaume. "Et toi mon coeur". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002.

25.12.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto de Natal"

 



Soneto de Natal



Como esperar que o dia pequenino,

com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,

desate em nossas mãos os lenços cheios

de canções e trigais e ninfas tristes?


Menino já não sou. Como de novo

conversar com os pássaros, o peixes,

invejar o galope dos cavalos

e voltar a sentir os velhos êxtases?


A linguagem dos grãos, do manso pêssego,

a bem-amada ensina e novamente

sinto em mim o odor de esterco e leite


dos currais onde a infância tange as reses,

sorve a manhã e permanece neste

cantor da relva mínima e dos bois.





COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto de Natal". In:_____. "Poemas dos vinte anos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 


23.12.20

Daniel Jonas: "Três rosas choram, brancas e tombadas"

 



Três rosas choram, brancas e tombadas


Três rosas choram, brancas e tombadas.

No mármore em murmúrio nada se ouve

E tudo o que é é nada do que houve…

Oblíqua cai a chuva nas lombadas…

Na biblioteca parda tudo tomba:

As rosas, as velhinhas, hirtos círios.

E agora tudo chora, grutas, lírios,

E as gárgulas do choro são a tromba…

É nada o que nos move, a paz, a guerra…

Tanto saber errado e tanto crânio!...

O príncipe é que estava certo, o dânio!

E as rosas murcharão, quem as enterra?

Mas quase me esquecia ao que vinha:

Passar-te a mão pela pele tão lisinha…







JONAS, Daniel. "Três roas choram, brancas e tombadas". In:_____. Nó: Sonetos. Porto: Assírio e Alvim, 2014.

20.12.20

Gastão Cruz: "Leitura"

 



Leitura



Como quem liga outro

computador e ouve

um som já conhecido

tocarás o meu corpo


Só as mãos interpretam 

essa espécie de ruído

depois virão os lábios

ler o texto acendido





CRUZ, Gastão. "Leitura". In:_____. "Rua de Portugal". In:_____. Os poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2009.

16.12.20

Arthur Rimbaud: "Ma Bohème" / "Minha Boêmia"

 



Minha Boêmia

   (fantasia)


Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;

Meu paletó também tornava-se ideal;

Sob o céu, Musa! Eu fui teu súdito leal.

Puxa vida! A sonhar amores destemidos!


O meu único par de calças tinha furos.

– Pequeno Polegar do sonho ao meu redor

Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.

– Os meus astros no céu rangem frêmitos puros.


Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,

Nas noites de setembro, onde senti tal vinho

O orvalho a rorejar-me as fronte em comoção;


Onde, rimando em meio à imensidões fantásticas,

Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas

E tangia um dos pés junto ao meu coração!





Ma Bohème

 (fantaisie)


Je m’en allais, les poings dans mes poches crevées ;

Mon paletot aussi devenait idéal ;

J’allais sous le ciel, Muse! et j’étais ton féal ;

Oh! là! là! que d’amours splendides j’ai rêvées !


Mon unique culotte avait un large trou.

– Petit-Poucet rêveur, j’égrenais dans ma course

Des rimes. Mon auberge était à la Grande-Ourse.

– Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou


Et je les écoutais, assis au bord des routes,

Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes

De rosée à mon front, comme un vin de vigueur ;


Où, rimant au milieu des ombres fantastiques,

Comme des lyres, je tirais les élastiques

De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur !










RIMBAUD, Arthur. "Ma Bohème" / "Minha Boêmia". In: BARROSO, Ivo (org. e trad.). Arthur Rimbaud. Poesia completa. Edição bilingue. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.



13.12.20

Antonio Cicero: "Auden e Yeats"

 



Auden e Yeats

 

Eu exaltaria Auden,

viajante atormentado,

dialético e bizarro,

e lhe faria uma ode

se a tanto minha perícia

e minha audácia bastassem.

     

Ou quem sabe, Yeats, numa tarde

feito esta, tão vadia,

possa a leitura da tua

poesia, pura Musa,

inspirar a minha arte

se eu lhe implorar: Poesia,

na prisão destes meus dias

ensina-me a elogiar-te.

 

 


       CICERO, Antonio. "Auden e Yeats". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.

10.12.20

Luis Turiba: "Paridela"

 


Paridela


ativar a consciência da construção do poema

captar sinalizações

escolher suas bases de sustentação

válvulas de escape abertas

indignar-se da alma ao ventre

espinha ereta ,

conexões com as ancestralidades ativadas

sal a gosto

o prazer de abrir um bom dicionário

garimpar palavras luminosas que caibam no corte do

alfaiate

deixar de molho por 3 dias mesmo que tenha nascido de 9

meses

cortar o cordão umbilical com a inspiração

limpar nos detalhes o líquido amniótico para deixá-lo chorar

até a estreia do primeiro mamar

pendurar no varal tendo o cuidado de não despolui-lo por •

completo

salpicar um pouco de sangue quente para o batismo de axé

soltá-lo ao vento com 3 pedras portuguesas em cada bolso

tirar a venda de seus olhos

... '

se sobreviver, -

ganhará a eternidade '

da garrafa de algum náufrago






TURIBA, Luis. "Paridela". Rio de Janeiro: 2020.

8.12.20

Christopher Ernest Dowson: "Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam": trad. de Nelson Ascher

 



Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam



A alegria, o desejo, o pranto, o amor

E a raiva duram pouco.

Nada disso, que eu saiba, há de transpor

O umbral conosco.


Poucos dias de rosas e de vinho:

Surge num vago sonho

E logo se desfaz nosso caminho

Dentro de um sonho.







Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam




They are not long, the weeping and the laughter,

Love and desire and hate:

I think they have no portion in us after

We pass the gate.


They are not long, the days of wine and roses:

Out of a misty dream

Our path emerges for a while, then closes

Within a dream.







DOWSON, Ernest Christopher. "Vitae summa brevis spem nos vetat incohare longam". In: ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.



6.12.20

Armando Freitas Filho: "Vincent"

 



Vincent



O barulho da cor gritante

daquele quadro: a pincelada

chicoteava e custava achar

o tom certo sobreposto

ao outro sem apagá-lo de todo.

A intenção do pincel era

a de incrementar o pigmento

até o limite do inacabado

da exasperação, da intensidade

do sentimento, adensando-o

para muito além do esperado.

E a pintura mesmo depois de seca

mesmo depois dos séculos

acontecia viva no instante

em que o olhar a capturava.







FREITAS FILHO, Armando. "Vincent". In:_____. Arremate. Poemas (2013-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

4.12.20

Salvatore Quasimodo: "Tu chiami una vita" / "Tu pedes uma vida": trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti

 



Tu pedes uma vida



Cansaço de amor, tristeza,

tu pedes uma vida

que dentro, profunda, tem nomes

de céus e jardins.


E fosse minha carne

que o dom do mal transforma.





Tu chiami una vita



Fatica d'amore, tristezza,

tu chiami una vita

che dentro, profonda, ha nomi

di cieli e giardini.


E fosse mia carne

che il dono di male trasforma.







QUSIMODO, Salvatore. "Tu chiami una vita" / "Tu pedes uma vida". In:_____. Poesias. Edição Bilingue. Org. e trad. por Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.

1.12.20

Age de Carvalho: "EU INTIMO-ME"

 



Eu, intimo-me

a reconhecer


(em ti, contigo

em viagem – nós,

dois faróis na estrada

farejando a escuridão luxuosa,

abolindo tempoespaço

à visao da grande nebulosa:

tu, era eu-todo-estrelado,

o céu, espelho)


-me em

mim-mesmo





CARVALHO, Age de. "EU, INTIMO-ME". In:_____. Ainda: em viagem. Belém: ed.ufpa, 2015.