É com imenso prazer que publico aqui o belíssmo poema que o grande Acadêmico Arnaldo Niskier me presenteou no dia do meu aniversário, 6 de outubro:
Você é um belo poeta
Ao qual se liga a fidalguia
E há também um lado esteta
Além da figura esguia.
BLOG DE ANTONIO CICERO: poesia, arte, filosofia, crítica, literatura, política
MERGULHO NOS MARES COR DE VINHO
Adriano
Espínola
Antonio
Cícero ostenta uma das trajetórias intelectuais e artísticas mais singulares da
cultura e literatura brasileiras contemporâneas. Isso se deve, a meu ver, à
desenvoltura com que transita por diversos gêneros, aparentemente antagônicos,
com igual competência e brilho. Letrista e compositor de sucesso, em parceria
sobretudo com a irmã, a cantora Marina; filósofo, autor de importantes livros
na área (O mundo desde o fim, Finalidades sem fim e Filosofia e poesia); crítico literário (A poesia e a crítica) e sobretudo poeta,
autor de algumas obras (Guardar, A cidade e os livros
e Porventura) que o colocam como um
dos melhores fazedores da atualidade.
Em Antonio Cícero, o letrista
popular, o pensador refinado, o crítico sensível e o poeta inventivo dialogam e
se complementam a todo instante. Como é isso possível? Arrisco afirmar que, por
seu temperamento, vocação e formação, representaria ele, entre nós, a versão
talvez mais próxima do homem grego clássico, isto é, do homem de espírito
ático, para quem a oralidade do aedo, a escrita do rapsodo, a reflexão do sábio
(sophós), o conhecedor dos mitos (mythoi) e o cultor do discurso (epos)não fazem diferença, não fora ainda
o fato de que lê e traduz com grande maestria o idioma grego.
Mas o que nos interessa aqui é destacar
a produção do poeta, na qual tais qualidades podem muito bem ser observadas.
Tomemos, por exemplo, seu mais recente livro, Porventura (2017).
O volume reúne 35 poemas curtos, de
teor lírico, com exceção de “Amazonas”, de andamento épico (“Não queira,
Silviano, que eu cante a selva”), composto de 60 versos, em que o poeta mistura
referências locais, pessoais a episódios e personagens da mitologia grega. A
erudição do autor, entretanto, não pesa na feitura deste e de outros poemas. Ao
contrário: uma certa leveza, não isenta de ironia, perpassa o conjunto das
peças.
Acompanhando essa leveza e o uso de uma
linguagem distensa, podemos, no entanto, surpreender reflexões mais agudas, ora
de raiz heraclitiana (“[enfrento] um só problema:/ ao menos no meu poema/
agarrar o passageiro”), ora epicurista (“Por que não me deitar sobre
este/gramado, se o consente o tempo,/ e há um cheiro de flores e verde?”), ora
platônica (“É certo que me perco em sombras/e que, isolado em minha ilha, já
não me atingem as notícias”), para nada dizer das derivadas do filósofo
Empédocles (“O amor seria fogo ou ar/ em movimento, chama ao vento”).
Um
dos aspectos particularmente atrativos desta poesia reside no hábil entrelaçamento
de feitos míticos do passado aos fatos e vivências do agora, como neste passo,
em que o autor nos fala dos
(...) crimes, imitações da vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias
penelópicas
de horrores ou de
maravilhas
que dia a dia se desfiam
e fiam sem princípio ou
fim (...) (p. 43)
-com explícita
referência à personagem Penélope, mulher de Ulisses, e à tessitura ardilosa e
sempre recomeçada em sua tela de fiação (aqui da televisão). Neste mesmo texto
(“O livro de sombras de Luciano Figueiredo”), o poeta se vale de outro
personagem mítico e da imagem do labirinto de Teseu, no início e fim do poema
(p. 43-45), a sugerir deste modo a circularidade inescapável do ser, entre uma
ponta e outra da existência:
Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me
extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas atrás de
mim.
Noutro
poema, ao se ver como um “poeta marginal” (p. 15), atualiza, não sem certa
ironia crítica, expressões ainda hoje correntes, oriundas da cultura grega:
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de
grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
O estilo aliciante dos textos encontra-se
igualmente na musicalidade das palavras, como se percebe nos versos acima. O
ritmo, as assonâncias, aliterações e rimas (toantes, soantes, atenuadas,
imperfeitas ou ampliadas) surgem a cada momento na configuração dos poemas,
compondo uma textura de todo eufônica, a lembrar o letrista ou o aedo
habilidoso na feitura da sua canção (aoidê).
Essa destreza musical faz com que o
poeta engrene outra associação persuasiva, ao fundir linguagem coloquial a
certas formas canônicas, que passa pelo verso medido e chega ao soneto,
habilmente construído num só bloco, como acontece em “Diamante” e “Presente”,
por exemplo. Notável também a fluidez do discurso, ao lado de enjambements,
cortes e elipses, marcados por uma oralidade de base a um só tempo denotativa e
sugestiva. Precisa e elegante. Todas essas qualidades se entremostram, por
exemplo, no poema “Palavras aladas” (p. 29):
Os
juramentos que nos juramos
entrelaçados naquela
cama
seriam traídos, se
lembrados
hoje. Eram palavras
aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar.
Faziam
parte das carícias que
por lá
sopramos: brisas
afrodisíacas
ao pé do ouvido, jamais
contratos.
Esqueçamo-las, pois,
dentre os atos
da língua, houve outros
mais convincentes
e ardentes sobre os
lençóis. Que esses
em futuras noites, em
vislumbres
de lembranças, sempre
nos deslumbrem.
Esse tom coloquial volta-se quase sempre
para fatos aparentemente banais do cotidiano. Entretanto, o autor sabe deles
extrair lição mais funda, tal como se verifica no poema “Meio-fio”, em que a
simples ida a um cinema em Copacabana resulta, após um pequeno acidente de
carro, na percepção de que
da Avenida
Atlântica, a maresia,
cio marinho, alicia
para outras eras da vida. (p. 37)
O mesmo também ocorre no texto “La
Capricciosa” (p. 55), quando o jantar prazeroso em uma pizzaria, com a cidade a
sonhar ao lado, “tranquila e cintilante”, é subitamente desfeito, em
decorrência de uma chamada do celular em que alguém dá notícia pesarosa (a
morte do irmão do escritor, a quem o poema é dedicado). O nome da pizza
(Capricciosa) passa aqui a caracterizar a própria morte, “[que] também tem
arte”.
Já no poema “Na praia” (p. 61), o eu
lírico lembra antigos encontros com amigos “dentro d’água”, “[voando] nas ondas
trans-/parentes, deslizantes, do azul/ mais profundo”. Com o desaparecimento de
alguns deles e a dispersão de outros, o autor consola-se na maturidade ao
mergulhar não mais naquelas águas “transparentes” e azuis da juventude, mas,
sim, nas águas opacas e inebriantes da poesia, ao retomar a mesma imagem que o
personagem Heitor, na Ilíada, vê as
ondas do Mediterrâneo. Com isso, Antonio Cícero reitera a sua condição de poeta
que sabe ser continuador de Homero e contíguo a ele:
(...). Já não procuro
o azul. Os mares em que
mergulho
são os homéricos, cor de
vinho.
(In:
O cego e o trapezista. Recife: CEPE,
2022).
Espinola, Adriano: "Mergulho nos maresa cor de vinho", in O cego e o trapezista (Recife: CEPE, 2022).
Rumor do mundo
As palavras, vício
torpe, antigo.
As últimas? As primeiras?
Como os ouriços
abrem-se ao rumor do mundo:
o sol ainda verde dos limões,
os esquilos
doutras tardes, o latido
da chuva nas janelas,
os velhos em redor do lume
— nunca foram tão belas.
Andrade, Eugénio, "Rumor do mundo", in Poemas de Eugénio de Andrade: seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999).
ΙNDAGA[DOR]
O poeta é um ser humano,
que paga tributos e preços venais,
vive em sociedade,
precisa comer e beber,
revolta-se com o alto custo das coisas.
Ama e odeia.
Despreza o comezinho e o ritual visível.
Estima o invisível e, sobretudo, o invulgar.
Tem fé e esperança. Conhece a burocracia
e as ruínas do alumbramento.
Pensa que a sua terra é um ninho místico.
Às vezes é incoerente, outras vezes lúcido.
Vota, participa da comunhão política
e sabe das limitações.
Investe no conhecimento
com medo do precário.
A Poesia é uma Oração
e o poeta,
um Santo!
Faz milagres,
ajuda o seu povo
disperso e surdo
a passar
sobre o mar diáfano da vida,
Inventor de uma desordem,
andadeiro do mágico estranhamento,
com a aurora luzida no tempo e nos símbolos,
ser poeta
é ter imaginações e janeiros aturdidos na alma...
A Poesia é uma dor!
O signo misterioso do alumiamento...
O poeta é o indagador
desse mal desvelado.
Mendes Sousa, Diego: "INDAGA[DOR]"
Lucretius: "Nequiquam..."
Nequiquam, quoniam medio de fonte leporum
surgit amari aliquit quod in ipsis floribus angat.
Lucrécio: "Tudo é vaidade..."
Lucretius: Tudo é vaidade, já que da própria fonte do encantatamento surge uma gota de amargura para atormentar, inclusive nas próprias flores.
Lucretius: "Nequiquam..." \ "Tudo é vaidade...", in De rerum natura, IV, 1133-4, trad. de Antonio Cicero.
Sándor Petöfi: "Abánat"
ABÁNAT?
Abánat? Egy nagy oceán,
Saz örngyeöm?
Az óceán kis gyöng ¨Talán,
Mire fölhozom össze is töröm,
Tristeza...
Tristeza é todo um vasto mar.
E a alegria?
Perolazinha que, ao tentar
trazer à tona, eu quebraria.
Petöfi, Sandor: "Abánat?" \ "Tristeza..." , trad. de Nelson Ascher in Poemas de Sándor Petöfi , org. por Zsuzanna Lazló e Eszeter Klára Dobos (São Paulo, Ed. Madamu, 2023).
Olavo Bilac: "Tédio"
Sobre minh'alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!
Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!
Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,
Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...
BILAC, Olavo, "Tédio", in Canções (Martins Fontes, 1988)
2
Tive tão dura existência.
Tão alma de não lembrar.
Seguro de que tal ciência
nem serve de carregar.
Pesa demais a leveza:
o canto não morrerá.
NEJAR, Carlos, "2", in Canções (Rio de Janeiro: Garamond, 2007).
Ah mundo
vasto
que se devasta
e se condensa
de sonho
a sonho
Lucchesi, Marco, "Ah mundo", in Antologias ABL POESIA. Idealização e apresentação de Ana Maria Machado; organização de Domício Proença Filho e Marco Lucches (Rio de Janeiro, 2013).
L'Ennemi
Ma jeunesse ne fut qu’un ténébreux orage,
Traversé çà et là par de brillants soleils ;
Le tonnerre et la pluie ont
fait un tel ravage,
Qu’il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
Voilà que j’ai touché l’automne des idées,
Et qu’il faut employer la
pelle et les râteaux
Pour rassembler à neuf les terres inondées,
Où l’eau creuse des trous
grands comme des tombeaux.
Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve
Trouveront dans ce sol lavé
comme une grève
Le mystique aliment qui ferait leur vigueur ?
– Ô douleur ! ô
douleur ! Le Temps mange la vie,
Et l’obscur Ennemi qui nous ronge le cœur
Du sang que nous perdons croît et se fortifie !
O inimigo
A juventude não foi mais que um temporal,
Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
As chuvas e os trovões causaram dano tal
Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.
Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
E agora o ancinho e a pá se fazem necessáros
Para outra vez compor o solo lamacento,
Onde profundas covas se abrem como ossários.
E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as fará radiosas?
Ó dor! O Tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!
BAUDELAIRE,
Charles: "L'ennemi" / "O inimigo", in As flores do
mal. Trad. de Ivan Junqueira (Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1985).
Com o tempo a sabedoria
Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade.
The coming of wisdom with time
Though leaves are many, the root is one;
Through all the lying days of my youth
I swayed my leaves and flowers in the sun;
Now I may wither into the truth.
YEATS, W.B. "The coming of wisdom with time" / "Com o tempo a sabedoria". In: Uma antologia. Trad. de BAPTISTA, José Agostinho (Lisboa: Assírio & Alvim, 2010).
O grito
Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz "claro" e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo
E daí? Dia desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões
CICERO, Antonio. "O grito". In: A cidade e os livros (Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 2002).
CONVITE
No dia 5 de julho, quarta-feira. às
16h, na ACADEMIA CARIOCA
DE LETRAS, à Rua Teixera de
Freitas, 5, sala 306, Antonio
Carlos Secchin (Professor,
Poeta, Ensaísta, Acadêmico da
ACL e da ABL) fará a palestra
Bibliofilia: a novidade
permanente dos livros antigos,
com a apresentação do Acadêmico
Alcmeno Bastos.
É com grande prazer que aqui posto o maravilhoso poema "Emissário do ridículo", que abre o extraordinário novo livro de Diego Mendes Sousa, Agulha de coser o espanto. Como disse, com toda razão, a grande escritora Nélida Piñon, a poesia de Diego "é uma coisa bela, muito poderosa, um fluido de vida".
EMISSÁRIO DO RIDÍCULO
"Todas as cartas de amor são ridículas"
Fernando Pessoa
A poesia é a máxima expressão do ridículo
e o poeta é um ser
excêntrico e risível.
O ridículo torna-se íntimo das palavras
e o poema
é a peça orgânica
que viabiliza
o estranhamento da linguagem.
É no poema que o poeta expõe
as suas dores
e as suas mazelas,
a operar a desprezível história pessoal,
a revelar
a sua exótica humanidade.
A poesia é assim,
a insanidade a rir de si mesma.
Prefiro ser ridículo
a ter que perder as paredes testemunhais
dos meus sentimentos
e sofrimentos.
Reencontro a minha infância,
porque é na inocência
(ou ainda no amor ausente ou na urgência da paixão)
que reside toda alma
devota ao ridículo.
SOUSA, Diego Mendes, "Emissário do ridículo", in: Agulha de coser o espanto
(Teresina, PI, Área de Criação, 2023)
Já publiquei neste blog vários poemas do grande poeta Adriano Espínola. Hoje, relendo seu belíssimo livro de 2002, O lote clandestino, vi que nunca havia aqui publicado o maravilhoso poema que, nessa mesma obra, ele havia dedicado a mim: "A orquídea" Faço-o agora:
A orquídea
A Antonio Cicero
Na janela
do 4º andar
(debruçada
sobre a luz
rascante da
rua rolando
na manhã
agitada
de sinais
& pressa)
pensa
pétalas
devagar
na ponta
da haste/
arte final
& bela:
no alto
(no ar)
branca
floresce
a orquídea-
idéia.
ESPÍNOLA, Adriano, "A orquídea", in: O lote clandestino (Topbooks Editora, Rio de Janeiro, RJ, 2002), p. 45.
Hoje eu estava relendo trechos da excelente tese de doutorado que a grande escritora e crítica literária Noemi Jaffe me deu a honra de escrever sobre meu livro de poemas A cidade e os livros.1 Lá, por acaso, me deparei com meu poema "O país das maravilhas" e verifiquei que ainda não o tinha postado neste blog. Resolvi então postá-lo agora.
O PAÍS DAS MARAVILHAS
Não se entra no país das maravilhas
pois
ele fica do lado de fora,
não
do lado de dentro. Se há saídas
que
dão nele, estão certamente à orla
iridescente
do meu pensamento,
jamais
no centro vago do meu eu.
E
se me entrego às imagens do espelho
ou
da água, tendo no fundo o céu,
não
pensem que me apaixonei por mim.
Não:
bom é ver-se no espaço diáfano
do
mundo, coisa entre coisas que há
no
lume do espelho, fora de si:
peixe
entre peixes, pássaro entre pássaros,
um
dia passo inteiro para lá.
1. JAFFE, Noemi. DO PRINCÍPIO ÀS CRIATURAS. Análise de A cidade e os livros, de Antonio Cicero (Tese de Doutorado, Depto. de letras clássicas e vernáculas: USP, São Paulo, 2007), onde reli meu próprio poema "O país das maravilhas" e resolvi republicá-lo aqui.