31.10.11
Carlos Drummond de Andrade: "Inocentes do Leblon"
Hoje, no dia D, de Drummond, um dos poemas que há mais tempo amo:
Inocentes do Leblon
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Sentimento do mundo". In:_____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
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28.10.11
William Butler Yeats: "No second Troy" / "Nenhuma Tróia a mais": tradução de Agusto de Campos
Nenhuma Tróia a mais
Por que culpá-la se ela encheu meus dias
De mágoa, ou se incitou às tropelias
Os ignorantes e jogou com vidas,
Pondo as vielas contra as avenidas,
Quando eles tinham ousadia e flama?
Como fugir a essa pulsão funesta
Que a nobreza fez simples como a chama?
Beleza como um arco tenso, raça
Estranha a uma era como esta,
E cruel, de tão alta e singular?
Que poderia ela contra a graça?
Que Tróia a mais teria que incendiar?
No second Troy
Why should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great,
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done being what she is?
Was there another Troy for her to burn?
CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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27.10.11
Matéria da revista CARIOQUICE: "Um grão de poesia nas dunas da mpb": por Mônica Sinelli
Publico abaixo uma matéria que a Mônica Sinelli publicou na revista Carioquice, a partir de uma entrevista que lhe dei.
UM GRÃO DE POESIA NAS DUNAS DA MPB
por Mônica Sinelli
Entre os insondáveis caminhos que atravessam o erudito e o pop, ele prefere todos. Por transpor sem preconceitos possíveis distâncias que interditariam a coexistência nos dois mundos, Antonio Cicero – verbete do Dicionário Cravo Albin – tem descrito uma trajetória singular nos meios intelectuais e artísticos brasileiros. E timbrado sua grife inconfundível em versos que respiram ares cosmopolitas. Mas, que, em especial, acendem, apaixonadamente, os crepúsculos do Rio de Janeiro.
Carioca do Leblon, o poeta e filósofo Antonio Cicero – filho dos piauienses Ewaldo e Amélia Correia Lima –, nascido a 6 de outubro de 1945, cedo aciona a sintonia fina de percepção da cidade, que mais tarde se tornará musa de tantos poemas. “Eu a via com olhos curiosos; às vezes, felizes, às vezes, não. Minhas primeiras memórias têm a ver com o Jardim de Alah e a praia. Aos 5 anos, me mudei da Avenida Afrânio de Melo Franco, esquina com a Ataulfo de Paiva, para a Bartolomeu Mitre. Brincava na Praça Antero de Quental e estudava no Colégio Santo Agostinho. Com 10 anos, minha família se mudou para a avenida Vieira Souto, em Ipanema".
Adolescente, Cicero começa a escrever tanto em prosa quanto em verso. Em 1960, seu pai vai trabalhar em Washington, nos EUA, levando toda a família. Cícero faz o high school lá. Ao regressar, começa a cursar filosofia na PUC do Rio de Janeiro e, depois, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Em 1969, devido a problemas políticos, vai para Londres, onde se forma em filosofia pela Universidade de Londres. Em 1972, na volta de uma Inglaterra em ebulição, encontra sua cidade igualmente imersa na esteira fervilhante da contracultura. “A ditadura continuava, mas havia bem mais liberdade sexual e comportamental entre os jovens. Lembro-me, por exemplo, de pontos de encontro como o Posto 9, o Dancing Days, as dunas da Gal, o Baixo Leblon, a peça “Trate-me Leão”. E de pessoas: Waly Salomão, Lenny Dale e os Dzi Croquetes, a chegada de Gabeira. Foi muito interessante a década de 70 no Rio”, avalia.
Em 1976, Cicero vai fazer pós-graduação nos Estados Unidos, onde estuda grego e latim, o que lhe permitirá ler no original clássicos como Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio.
Entre seus poemas até então guardados na gaveta, sua irmã Marina – que, com ele, irá impactar a cena musical brasileira por meio de um estilo personalíssimo – pesca, às escondidas, em 1976, “Alma caiada”, criando a canção que no ano seguinte Maria Bethânia chegaria a gravar. Vetada pela censura, ganharia registro, dois anos depois, por Zizi Possi:
Aprendi desde criança
que é melhor me calar
e dançar conforme a dança
do que jamais ousar.
Mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar:
Sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.
De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
O primeiro disco de Marina Lima, “Simples como fogo” (1979), vem com “Transas de amor” (Os sonhos de quem ama não cabem só na cama), sucesso inaugural entre tantos que se sucederão da dupla. Nesse LP, a canção “Tão fácil” já anuncia que o Leblon é um deserto para um coração incerto. E Memória fora de hora expõe:
Meu amor mora lá no Rio
Rio para o amor
Cidade entre morro e mar
E mar e morro
de saudade.
Dali em diante, Antonio Cicero não só assinará com Marina uma das mais bonitas trilhas da música brasileira, mas amplificará seu refinamento estético em composições ao lado de outros parceiros, como Orlando Morais na plangente “Logrador”, interpretada por Bethânia:
Você habita o próprio centro
De um coração que já foi meu
Por dentro torço pra que dentro
em pouco lá só more eu.
Livre de todos os negócios
e vícios que advêm de amar
lá seja o centro de alguns ócios
que escolherei por cultivar.
E pra que os sócios vis do amor,
rancor, dor, ódio, solidão
não mais consumam meu vigor,
amado e amor banir-se-ão
do centro ruma a um logrador
subúrbio desse coração.
Outro parceiro é Claudio Zoli, em “À francesa”:
Meu amor, se você for embora
sabe lá o que será de mim
passeando pelo mundo afora
na cidade que não tem mais fim
ora dando bola ora fora
um irresponsável, pobre de mim.
Se lhe peço pra ficar ou não?
meu amor eu lhe juro
que não quero deixá-lo na mão
e nem sozinho no escuro
mas os momentos felizes não estão escondidos
nem no passado nem no futuro.
Certamente vai haver tristeza
algo além de um fim de tarde a mais
mas depois as luzes todas acesas
paraísos artificiais
e se você saísse à francesa
eu viajaria muito, mas muito mais.
O Rio seguirá recorrente na sua criação, a exemplo de “Inverno” (com Adriana Calcanhotto):
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
E em Virgem:
As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que precisar?
As luzes brilham no Vidigal
e não precisam de você;
os Dois Irmãos
também não
precisam.
O Hotel Marina quando acende
não é por nós dois
nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
esses nem sabem de você
nem vão querer saber
e o farol da ilha só gira agora
por outros olhos e armadilhas:
o farol da ilha procura agora
outros olhos e armadilhas.
Também com Marina, “Este ano” tem o emblemático verso “o Rio soa como eu sou”.
MUSAS CAPRICHOSAS
“A filosofia e a composição musical são atividades opostas, mas complementares do meu espírito. Nem sempre é fácil administrar o tempo entre elas”, relata Cicero, afirmando mover-se “aos trancos e barrancos” nessa ponte. Sobre a possibilidade de interseção com os distintos elementos de um universo e do outro, observa: “A poesia é uma zona de confluência. Todo bom poema é concreto (o que não quer dizer concretista), e o concreto é a síntese de muitas determinações abstratas. Tudo influencia tudo. Minha poesia vem do acaso e do trabalho. O que chamamos de inspiração é um acaso que mexe produtivamente com nosso inconsciente e vice-versa. Não há oposição entre inspiração e trabalho. O trabalho solicita a inspiração, e a inspiração tem que ser trabalhada.”
Os estímulos, segundo ele, estão em todo lugar. “Mas numa dimensão do tempo que não é aquela – utilitária – em que passamos a maior parte da vida. É o tempo do devaneio. Só entra nele quem está totalmente disponível a `perder tempo`, sem garantia nenhuma de que as musas virão, porque elas são caprichosas. Agora, sem essa disposição, elas não vêm mesmo”, repara. Reino secreto este, que se pode contemplar em “Misteriosamente”, parceria com João Bosco e Waly Salomão:
É noite
alta e quente e não vou mais dormir
Pois uma canção insiste em surgir misteriosamente
...Gota por gota cada nota vai brotar
Algo gratuito assim
que vem só porque quer.
O desassombro em transitar tanto no universo erudito quanto no pop desenha um caminho solitário para Cicero como intelectual no Brasil. “Especialmente, na filosofia – reconhece. Devo ao poeta e ensaísta Antonio Medina Rodrigues o único artigo publicado pela imprensa, no ‘Estadão’, sobre meu livro de filosofia O mundo desde o fim (1995). Nada, também, divulgou-se quando saiu Finalidades sem fim (2005), meu livro de ensaios sobre poesia e arte. Creio que isso se deve a dois fatos. Primeiro, não estou ligado à academia; segundo, desenvolvi meu pensamento por mim mesmo, a partir, é claro, de um diálogo com grandes pensadores, mas sem vinculação nenhuma com as modas contemporâneas, que considero superficiais. Os professores convencionais de filosofia não sabem como lidar com meus textos.” Tal destemor para interatuar em terrenos diversos e, aparentemente, conflitantes, sem abrir mão da entrega em nenhum deles, está explícito na bela e contundente “Três”
(com Marina):
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder
partir
Quero poder ficar.
FEITO DE UM MUNDO IMENSO
Para Cicero, a filosofia, ao contrário da poesia, tem a pretensão de dizer verdades – verdades até absolutas. “Uma verdade absoluta é que nenhuma positividade é absoluta. Isso significa também que o absoluto é negativo; ou ainda: que a negatividade é absoluta”, acentua ele, que tem em Kant e Horácio o filósofo e o poeta maiores. “Kant é o filósofo do mundo moderno, crítico, aberto. Sobre Horácio, faço minhas as palavras de Nietzsche: Até hoje não senti em nenhum poeta o mesmo arrebatamento artístico que desde o início uma ode horaciana me deu. Em algumas línguas, não se pode sequer querer o que lá foi alcançado.”
Reflexões angustiantes aparecem em versos como os de “Dilema”, que está no CD “Antonio Cicero por Antonio Cicero”, lançado em 1996 (na coleção “Poesia Falada”, produzida por Paulinho Lima), no qual lê seus poemas:
O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
E sou feito de um mundo imenso
Imerso num universo
que não é feito de mim
Mas mesmo isso é controverso
Se nos versos de um poema
Perverso sai o reverso.
Disperso num tal
dilema
O certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.
“A primeira vocação de um poema escrito é ser lido. E lido não para fora, mas para dentro. É claro que quem o lê tem que levar em conta o seu som. Trata-se de uma leitura aural, como diz o poeta francês Jacques Roubaut. A recitação não passa de um suplemento ao livro”, sinaliza.
Ainda naquele ano, Cicero publica “Guardar”, seu primeiro livro de poesias (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira 1997), o que só tornará a fazer em 2002, com “A cidade e os livros”, em que o Rio de Janeiro o captura e magnetiza:
O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugres que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros incontáveis que contêm.
“Nesse poema, conto minha descoberta, quando adolescente, de que a cidade inteira estava aberta para mim; que, de certo modo, pertencia a mim. Como garoto da Zona Sul, eu rarissimamente saía da região, e nunca sozinho. Um dia descobri que podia tomar um bonde ou ônibus e andar pela cidade toda. Comecei a percorrer também o Centro a pé. Às vezes pegava uma barca e passeava em Niterói, ou um trem na Central até Cascadura, Madureira, Méier. Foi uma grande sensação de liberdade. Em “O último romântico”, que fiz com Lulu Santos e Sergio Souza, falo da importância de reunir a Zona Norte à Zona Sul.”
À polêmica discussão em torno de uma letra de música poder ou não configurar poesia, ele analisa: “Que uma letra de música pode ser poesia é inegável, pois os poemas líricos gregos, como os de Safo, Anacreonte ou Píndaro, eram letras de música, e ninguém duvida que sejam grande poesia. Um poema consiste numa síntese indecomponível de determinações semânticas, sintáticas, morfológicas, fonológicas, rítmicas. Tudo nele conta: sentidos, sons, sugestões, ecos. Quero que sejam assim os poemas que faço.” E complementa: “Não desassocio nada de nada no poema que escrevo para ser lido. Já na canção é diferente, pois não componho música, não toco instrumento, nem canto. Normalmente, recebo uma melodia e tento interpretá-la, pensando no parceiro ou em quem a cantará. E ponho palavras nela. Sendo assim, música é uma coisa e letra, outra.”
OS TAIS CAQUINHOS
Qual a percepção do poeta hoje, depois de ter escrito a demolidora “Pra começar” (com Marina) ainda nos anos 80, em torno dos “caquinhos do velho mundo” – pátrias, famílias, religiões e preconceitos? “O que eu dizia ali é uma verdade. Mas muitos se desesperam, ao perceber que essas coisas perderam a sacralidade, e tentam colar seus caquinhos de qualquer modo, à força. Querem voltar a um passado idealizado. Não suportam a ideia de viver num mundo aberto, em que tudo está sujeito a ser criticado. Tentam fechá-lo artificialmente e, para tanto, têm que usar imensa violência. Esse é o germe do fascismo. Precisamos estar alertas a esse risco.” A visão afiada sobre o Brasil contemporâneo se evidencia em “Zona de fronteira” (com João Bosco e Waly Salomão):
Já alguns sinais estão aí
Sempre a brotar do ar
De um território que está por explodir
...Sim, bem
em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o Brasil.
Conectado a plataformas virtuais, com site e blog próprios, Cicero examina a escrita em tempos de internet. “Publico no blog textos que gostaria que muita gente lesse, meus ou os que admiro. Mas não acho que a poesia deva mudar por causa da internet. Eu a uso como um veículo de comunicação e, também, uma espécie de enciclopédia e biblioteca. Não tenho tempo para facebooks ou coisas do gênero”, descarta. Com três livros em vias de publicação – um de poemas, um sobre poesia e filosofia, além de um terceiro de ensaios –, o atual morador do bairro do Humaitá arremata: “Continuo sendo um andarilho, mas não tenho tanto tempo para flanar. Gosto de caminhar. Meu espaço favorito é o Jardim Botânico, onde uma minha tia muito querida, Maria Cândida, a Tilinha, levava-me para passear com sua filha, minha prima Marília, quando eu era garoto. Adoro Leblon, Copacabana, Lagoa, Botafogo, Niterói e, sempre, o Centro. Para mim, viver bem é ter tempo para o devaneio, ler, escrever
e pensar sem compromisso, jantar e tomar um vinho, conversando com os amigos.” Pois, então, um brinde à doce vida, poeta!
UM GRÃO DE POESIA NAS DUNAS DA MPB
por Mônica Sinelli
Entre os insondáveis caminhos que atravessam o erudito e o pop, ele prefere todos. Por transpor sem preconceitos possíveis distâncias que interditariam a coexistência nos dois mundos, Antonio Cicero – verbete do Dicionário Cravo Albin – tem descrito uma trajetória singular nos meios intelectuais e artísticos brasileiros. E timbrado sua grife inconfundível em versos que respiram ares cosmopolitas. Mas, que, em especial, acendem, apaixonadamente, os crepúsculos do Rio de Janeiro.
Carioca do Leblon, o poeta e filósofo Antonio Cicero – filho dos piauienses Ewaldo e Amélia Correia Lima –, nascido a 6 de outubro de 1945, cedo aciona a sintonia fina de percepção da cidade, que mais tarde se tornará musa de tantos poemas. “Eu a via com olhos curiosos; às vezes, felizes, às vezes, não. Minhas primeiras memórias têm a ver com o Jardim de Alah e a praia. Aos 5 anos, me mudei da Avenida Afrânio de Melo Franco, esquina com a Ataulfo de Paiva, para a Bartolomeu Mitre. Brincava na Praça Antero de Quental e estudava no Colégio Santo Agostinho. Com 10 anos, minha família se mudou para a avenida Vieira Souto, em Ipanema".
Com os pais, na praia do Leblon, na década de 50 |
Adolescente, Cicero começa a escrever tanto em prosa quanto em verso. Em 1960, seu pai vai trabalhar em Washington, nos EUA, levando toda a família. Cícero faz o high school lá. Ao regressar, começa a cursar filosofia na PUC do Rio de Janeiro e, depois, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Em 1969, devido a problemas políticos, vai para Londres, onde se forma em filosofia pela Universidade de Londres. Em 1972, na volta de uma Inglaterra em ebulição, encontra sua cidade igualmente imersa na esteira fervilhante da contracultura. “A ditadura continuava, mas havia bem mais liberdade sexual e comportamental entre os jovens. Lembro-me, por exemplo, de pontos de encontro como o Posto 9, o Dancing Days, as dunas da Gal, o Baixo Leblon, a peça “Trate-me Leão”. E de pessoas: Waly Salomão, Lenny Dale e os Dzi Croquetes, a chegada de Gabeira. Foi muito interessante a década de 70 no Rio”, avalia.
Em 1976, Cicero vai fazer pós-graduação nos Estados Unidos, onde estuda grego e latim, o que lhe permitirá ler no original clássicos como Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio.
Em 1963 |
Entre seus poemas até então guardados na gaveta, sua irmã Marina – que, com ele, irá impactar a cena musical brasileira por meio de um estilo personalíssimo – pesca, às escondidas, em 1976, “Alma caiada”, criando a canção que no ano seguinte Maria Bethânia chegaria a gravar. Vetada pela censura, ganharia registro, dois anos depois, por Zizi Possi:
Aprendi desde criança
que é melhor me calar
e dançar conforme a dança
do que jamais ousar.
Mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.
Só comigo ouso lutar:
Sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.
De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.
O primeiro disco de Marina Lima, “Simples como fogo” (1979), vem com “Transas de amor” (Os sonhos de quem ama não cabem só na cama), sucesso inaugural entre tantos que se sucederão da dupla. Nesse LP, a canção “Tão fácil” já anuncia que o Leblon é um deserto para um coração incerto. E Memória fora de hora expõe:
Meu amor mora lá no Rio
Rio para o amor
Cidade entre morro e mar
E mar e morro
de saudade.
Com Marina e saxofonista Leo Gandelman, produtor do disco "Virgem", quando este ganhou o Disco de Ouro. |
Dali em diante, Antonio Cicero não só assinará com Marina uma das mais bonitas trilhas da música brasileira, mas amplificará seu refinamento estético em composições ao lado de outros parceiros, como Orlando Morais na plangente “Logrador”, interpretada por Bethânia:
Você habita o próprio centro
De um coração que já foi meu
Por dentro torço pra que dentro
em pouco lá só more eu.
Livre de todos os negócios
e vícios que advêm de amar
lá seja o centro de alguns ócios
que escolherei por cultivar.
E pra que os sócios vis do amor,
rancor, dor, ódio, solidão
não mais consumam meu vigor,
amado e amor banir-se-ão
do centro ruma a um logrador
subúrbio desse coração.
Outro parceiro é Claudio Zoli, em “À francesa”:
Meu amor, se você for embora
sabe lá o que será de mim
passeando pelo mundo afora
na cidade que não tem mais fim
ora dando bola ora fora
um irresponsável, pobre de mim.
Se lhe peço pra ficar ou não?
meu amor eu lhe juro
que não quero deixá-lo na mão
e nem sozinho no escuro
mas os momentos felizes não estão escondidos
nem no passado nem no futuro.
Certamente vai haver tristeza
algo além de um fim de tarde a mais
mas depois as luzes todas acesas
paraísos artificiais
e se você saísse à francesa
eu viajaria muito, mas muito mais.
O Rio seguirá recorrente na sua criação, a exemplo de “Inverno” (com Adriana Calcanhotto):
No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir
de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.
Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.
Com o irmão, Roberto, e a prima, Gilda |
E em Virgem:
As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que precisar?
As luzes brilham no Vidigal
e não precisam de você;
os Dois Irmãos
também não
precisam.
O Hotel Marina quando acende
não é por nós dois
nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
esses nem sabem de você
nem vão querer saber
e o farol da ilha só gira agora
por outros olhos e armadilhas:
o farol da ilha procura agora
outros olhos e armadilhas.
Também com Marina, “Este ano” tem o emblemático verso “o Rio soa como eu sou”.
MUSAS CAPRICHOSAS
“A filosofia e a composição musical são atividades opostas, mas complementares do meu espírito. Nem sempre é fácil administrar o tempo entre elas”, relata Cicero, afirmando mover-se “aos trancos e barrancos” nessa ponte. Sobre a possibilidade de interseção com os distintos elementos de um universo e do outro, observa: “A poesia é uma zona de confluência. Todo bom poema é concreto (o que não quer dizer concretista), e o concreto é a síntese de muitas determinações abstratas. Tudo influencia tudo. Minha poesia vem do acaso e do trabalho. O que chamamos de inspiração é um acaso que mexe produtivamente com nosso inconsciente e vice-versa. Não há oposição entre inspiração e trabalho. O trabalho solicita a inspiração, e a inspiração tem que ser trabalhada.”
Os estímulos, segundo ele, estão em todo lugar. “Mas numa dimensão do tempo que não é aquela – utilitária – em que passamos a maior parte da vida. É o tempo do devaneio. Só entra nele quem está totalmente disponível a `perder tempo`, sem garantia nenhuma de que as musas virão, porque elas são caprichosas. Agora, sem essa disposição, elas não vêm mesmo”, repara. Reino secreto este, que se pode contemplar em “Misteriosamente”, parceria com João Bosco e Waly Salomão:
É noite
alta e quente e não vou mais dormir
Pois uma canção insiste em surgir misteriosamente
...Gota por gota cada nota vai brotar
Algo gratuito assim
que vem só porque quer.
Com Caetano, no filme "Tabu", de Júlio Bressane. Foto de Marta Braga |
O desassombro em transitar tanto no universo erudito quanto no pop desenha um caminho solitário para Cicero como intelectual no Brasil. “Especialmente, na filosofia – reconhece. Devo ao poeta e ensaísta Antonio Medina Rodrigues o único artigo publicado pela imprensa, no ‘Estadão’, sobre meu livro de filosofia O mundo desde o fim (1995). Nada, também, divulgou-se quando saiu Finalidades sem fim (2005), meu livro de ensaios sobre poesia e arte. Creio que isso se deve a dois fatos. Primeiro, não estou ligado à academia; segundo, desenvolvi meu pensamento por mim mesmo, a partir, é claro, de um diálogo com grandes pensadores, mas sem vinculação nenhuma com as modas contemporâneas, que considero superficiais. Os professores convencionais de filosofia não sabem como lidar com meus textos.” Tal destemor para interatuar em terrenos diversos e, aparentemente, conflitantes, sem abrir mão da entrega em nenhum deles, está explícito na bela e contundente “Três”
(com Marina):
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder
partir
Quero poder ficar.
FEITO DE UM MUNDO IMENSO
Para Cicero, a filosofia, ao contrário da poesia, tem a pretensão de dizer verdades – verdades até absolutas. “Uma verdade absoluta é que nenhuma positividade é absoluta. Isso significa também que o absoluto é negativo; ou ainda: que a negatividade é absoluta”, acentua ele, que tem em Kant e Horácio o filósofo e o poeta maiores. “Kant é o filósofo do mundo moderno, crítico, aberto. Sobre Horácio, faço minhas as palavras de Nietzsche: Até hoje não senti em nenhum poeta o mesmo arrebatamento artístico que desde o início uma ode horaciana me deu. Em algumas línguas, não se pode sequer querer o que lá foi alcançado.”
Reflexões angustiantes aparecem em versos como os de “Dilema”, que está no CD “Antonio Cicero por Antonio Cicero”, lançado em 1996 (na coleção “Poesia Falada”, produzida por Paulinho Lima), no qual lê seus poemas:
O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
E sou feito de um mundo imenso
Imerso num universo
que não é feito de mim
Mas mesmo isso é controverso
Se nos versos de um poema
Perverso sai o reverso.
Disperso num tal
dilema
O certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.
“A primeira vocação de um poema escrito é ser lido. E lido não para fora, mas para dentro. É claro que quem o lê tem que levar em conta o seu som. Trata-se de uma leitura aural, como diz o poeta francês Jacques Roubaut. A recitação não passa de um suplemento ao livro”, sinaliza.
Ainda naquele ano, Cicero publica “Guardar”, seu primeiro livro de poesias (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira 1997), o que só tornará a fazer em 2002, com “A cidade e os livros”, em que o Rio de Janeiro o captura e magnetiza:
O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugres que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros incontáveis que contêm.
Com a mãe, Amélia, na década de 1970 |
“Nesse poema, conto minha descoberta, quando adolescente, de que a cidade inteira estava aberta para mim; que, de certo modo, pertencia a mim. Como garoto da Zona Sul, eu rarissimamente saía da região, e nunca sozinho. Um dia descobri que podia tomar um bonde ou ônibus e andar pela cidade toda. Comecei a percorrer também o Centro a pé. Às vezes pegava uma barca e passeava em Niterói, ou um trem na Central até Cascadura, Madureira, Méier. Foi uma grande sensação de liberdade. Em “O último romântico”, que fiz com Lulu Santos e Sergio Souza, falo da importância de reunir a Zona Norte à Zona Sul.”
À polêmica discussão em torno de uma letra de música poder ou não configurar poesia, ele analisa: “Que uma letra de música pode ser poesia é inegável, pois os poemas líricos gregos, como os de Safo, Anacreonte ou Píndaro, eram letras de música, e ninguém duvida que sejam grande poesia. Um poema consiste numa síntese indecomponível de determinações semânticas, sintáticas, morfológicas, fonológicas, rítmicas. Tudo nele conta: sentidos, sons, sugestões, ecos. Quero que sejam assim os poemas que faço.” E complementa: “Não desassocio nada de nada no poema que escrevo para ser lido. Já na canção é diferente, pois não componho música, não toco instrumento, nem canto. Normalmente, recebo uma melodia e tento interpretá-la, pensando no parceiro ou em quem a cantará. E ponho palavras nela. Sendo assim, música é uma coisa e letra, outra.”
Cazuza, Waly Salomão, Antonio Cicero, no Baixo Leblon, na década de 80 |
OS TAIS CAQUINHOS
Qual a percepção do poeta hoje, depois de ter escrito a demolidora “Pra começar” (com Marina) ainda nos anos 80, em torno dos “caquinhos do velho mundo” – pátrias, famílias, religiões e preconceitos? “O que eu dizia ali é uma verdade. Mas muitos se desesperam, ao perceber que essas coisas perderam a sacralidade, e tentam colar seus caquinhos de qualquer modo, à força. Querem voltar a um passado idealizado. Não suportam a ideia de viver num mundo aberto, em que tudo está sujeito a ser criticado. Tentam fechá-lo artificialmente e, para tanto, têm que usar imensa violência. Esse é o germe do fascismo. Precisamos estar alertas a esse risco.” A visão afiada sobre o Brasil contemporâneo se evidencia em “Zona de fronteira” (com João Bosco e Waly Salomão):
Já alguns sinais estão aí
Sempre a brotar do ar
De um território que está por explodir
...Sim, bem
em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o Brasil.
Com Susana de Moraes, Adriana Calcanhotto e Waly Salomão, ao autografar o CD "Antonio Cicero por Antonio Cicero", em 2004 |
Conectado a plataformas virtuais, com site e blog próprios, Cicero examina a escrita em tempos de internet. “Publico no blog textos que gostaria que muita gente lesse, meus ou os que admiro. Mas não acho que a poesia deva mudar por causa da internet. Eu a uso como um veículo de comunicação e, também, uma espécie de enciclopédia e biblioteca. Não tenho tempo para facebooks ou coisas do gênero”, descarta. Com três livros em vias de publicação – um de poemas, um sobre poesia e filosofia, além de um terceiro de ensaios –, o atual morador do bairro do Humaitá arremata: “Continuo sendo um andarilho, mas não tenho tanto tempo para flanar. Gosto de caminhar. Meu espaço favorito é o Jardim Botânico, onde uma minha tia muito querida, Maria Cândida, a Tilinha, levava-me para passear com sua filha, minha prima Marília, quando eu era garoto. Adoro Leblon, Copacabana, Lagoa, Botafogo, Niterói e, sempre, o Centro. Para mim, viver bem é ter tempo para o devaneio, ler, escrever
e pensar sem compromisso, jantar e tomar um vinho, conversando com os amigos.” Pois, então, um brinde à doce vida, poeta!
Com Marcelo Pies, em Buenos Aires |
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26.10.11
O ENEM falha novamente
A Questão 120 do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) dizia respeito à interpretação do meu poema “Guardar”. Lamentavelmente, a autoria do poema foi atribuída a Gilka Machado...
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24.10.11
Carlos Drummond de Andrade: "Relógio do Rosário"
Relógio do Rosário
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.
Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
ANDRADE, Carlos Drummond de. "Claro enigma". In:_____Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
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Poema
22.10.11
Bibliografia do curso "Certa poesia e alguma canção"
Sobre poética e crítica:
ARISTÓTELES. Poética. Trad. E. de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
ASCHER, Nelson. Poesia alheia. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
AUDEN, W. Fazer, saber e julgar. Trad. de Ângela Melim. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1981.
BANDEIRA, M. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
BERARDINELLI, A. Da poesia à prosa. Trad. de M.S. Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BLANCHOT, M. O espaço literário. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BOILEAU, N. Arte poética. Ed. bilingue. Trad. Conce de Ericeira. Prefácio e notas de J.P. Machado. Lisboa: Fernandes, 1950.
CABRAL de Melo Neto, J. "Poesia e composição". In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p.721-37.
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CICERO, Antonio. Finalidades sem fim.
Ensaios sobre poesia e arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
ELIOT, T.S. “A tradição e o talento individual”. In: Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, 1962.
HORÁCIO. Arte poética. Lisboa: Inquérito, 1984.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Odes de Ricardo Reis". Apontamento solto de Álvaro de Campos. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.251-96.
PESSOA, F. "Nota preliminar às Poesias de Álvaro de Campos". Apontamento solto de Ricardo Reis. In: _____. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1969. p.297-423.
PIGNATARI, Décio. O que é a comunicação poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.
POUND, E. ABC da literatura. Trad. de A. de Campos e J.P. Paes. São Paulo: Cultrix, 2001.
SCHILLER, Friedrich von. A educação estética do homem. Trad. de M. Suzuki e R. Schwartz. São Paulo: Iluminuras, 1995.
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre poesia e outros fragmentos. Trad. V.P. Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.
SHELLEY, P.B. Defesa da poesia. Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
VALÉRY, P. Variedades. Trad. de M.M. de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.
Sobre versificação:
BANDEIRA, Manuel. “A versificação em língua portuguesa”. In: GUIMARÃES, Júlio (org.). _____. Seleta de prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MATTOSO, Glauco. “Apêndice”. In: Geléia de rococó. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999).
ALI, Said. Versificação portuguesa. São Paulo: Edusp, 1999.
Sobre letra de canção:
CICERO, A. "Letra de música". Cultura Brasileira Contemporânea, vol.1, n.1, p.7-15, Rio de Janeiro, Novembro, 2006.
CAMPOS, A.d. "Boa palavra sobre a música popular". In: Balanço da bossa e outras bossas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. p.59-65.
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
TATIT, L. O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
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Poesia
Fernando Brant: depoimento sobre o ECAD
Depoimento do Fernando Brant na audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Ecad realizada no Rio de Janeiro no dia 30 de Setembro de 2011
Tenho em minhas mãos a Constituição do Brasil. Ela é meu livro, a Bíblia do cidadão. Nada falarei aqui que não esteja de acordo com ela.
Sou apenas um compositor brasileiro. É dura a vida de um compositor popular em nosso país. Posso falar de meu caso, pois ele se aplica a muitos que têm algum talento musical ou literário e se aventuram na arte de criar melodias e harmonias, juntá-las às palavras e criar uma canção.
A canção move o mundo. Ao lado do trabalho e da criatividade, o autor necessita de sorte, persistência. Tem de estar disposto a enfrentar muita incompreensão. Precisa ser original no que faz e sagaz na relação com a indústria cultural, com o mercado editorial e de comunicação.
Com 20 anos de idade, estudante ainda, fiz minha primeira letra para uma canção. A obra, em parceria com Milton Nascimento, abriu um deslumbrante horizonte para nós. Ingênuos, no entanto, assinamos um contrato de edição e, sem querer, arranjamos um parceiro indesejado que nos acompanha até hoje. A satisfação do menino letrista assinando o seu primeiro contrato se dissolveria no tempo, permanecendo, porém, um incômodo que ainda me acompanha. Mas que, por não ser irrevogável, pode ser solucionado.
Esse fato serviu, no entanto, para que eu adquirisse a consciência da importância de manter a minha obra sob meu controle. É o que eu fiz, daí em diante. Eu sou o meu editor.
Volto a dizer: é dura a vida de um compositor brasileiro.
Tendo sua obra sob seu controle, nem por isso os problemas estavam resolvidos.
Faltava a solução dos problemas da execução pública das músicas. Em plena ditadura militar, os grandes autores brasileiros se uniram para exigir que a arrecadação e distribuição dos direitos autorais fosse unificada. Como era na maioria dos países. Foi uma bela batalha, coroada pela sensibilidade do Ministro do Supremo, Moreira Alves, que introduziu na primeira lei autoral brasileira, o escritório central de arrecadação e distribuição. Foi o nascimento do ECAD, uma conquista dos autores, músicos e cantores brasileiros.
Donos de emissoras de rádio não queriam pagar direitos autorais, pois estavam, segundo eles, divulgando a obra. Inútil dizer-lhes que divulgação não paga comida, escola, aluguel, taxas e impostos. Ou alertá-los para o fato de que estariam, sem autorização, usando o trabalho alheio.
As emissoras de televisão também não concordavam em pagar pelo uso de música. E os exibidores de cinema. E as prefeituras, os governos em geral.
Depois de muita luta, de muitos anos de esclarecimento sobre o que ocorria em todo mundo, a situação foi melhorando. Nossos direitos passaram a ser reconhecidos. Muitos começaram a observar os direitos dos autores musicais. Mas a cada um que respeita os criadores e as leis, surge um outro disposto a burlar, piratear, usar sem autorização o que não lhe pertence. Brigar pelos direitos autorais é uma batalha sem fim. E é aí que surge a Justiça, interpretando e aplicando a Constituição e a lei autoral do país. Lei nova, de pouco mais de doze anos de existência, uma quase adolescente em termos de legislação, que agora tem entendimento pacificado pelos tribunais superiores e pelos juízes brasileiros. E alguns interesseiros e outros, incautos, querem mudá-la. Aprimorar sim, transformar não.
Estou aqui para falar em nome da UBC- União Brasileira de Compositores, e de milhares de autores, músicos, intérpretes e editoras que dela participam. Falo em nome dos pioneiros que a fundaram – Mário Lago, Braguinha, Ataulfo Alves, Ary Barroso, Lamartine Babo, Dorival Caymmi e tantos outros que, em 1942, se conscientizaram de que somente unidos poderiam defender os seus direitos. União de compositores brasileiros que comemora, no próximo ano, setenta anos de existência.
Falo com o orgulho de ocupar hoje o lugar do primeiro presidente, Ary Barroso. Falo em nome dos que, hoje, consolidam a música popular brasileira como o que ela sempre foi, a melhor do mundo, a arte brasileira mais reconhecida e aplaudida em todos os pontos do planeta.
E me lembro do que me disse Mário Lago, esse gigante da cultura brasileira, narrando os primeiros tempos em que os próprios compositores saíam para cobrar os seus direitos. Eram ameaçados de agressão e até prisão. Não mudou muito a realidade. Enquanto os civilizados reconhecem o direito dos criadores em receber pelo que criam, sempre existem organizações desinformadas e mal intencionadas que tudo fazem para tumultuar o ambiente e fugir à obrigação de reconhecer os direitos autorais.
A única maneira de se defender o direito autoral musical é pela gestão coletiva. São milhões de canções e milhares os compositores, músicos e intérpretes. É vasto o mundo.
A gestão coletiva surgiu da necessidade de se organizar a autorização, o controle, a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais da obra. A impossibilidade de cada autor controlar a utilização de sua obra, em todos os cantos do país e do mundo, faz com que eles se reúnam em sociedades para gerir seus direitos. A gestão coletiva garante os direitos dos autores e preserva os usuários, pois eles recebem uma autorização ampla e única. E o autor, segundo a lei brasileira, pode, se quiser, não se associar e administrar por conta própria a sua obra. A possibilidade de êxito dessa iniciativa é pequena, mas o autor possui essa liberdade.
Vacinados contra o vírus do autoritarismo, por tê-lo vivido nos tempos da ditadura, não somos daqueles que, a qualquer obstáculo, buscam a proteção do Estado, essa mão, dúbia,
que “ afaga e apedreja”. Os problemas dos cidadãos devem ser resolvidos por eles. A função do Estado, que vive dos impostos que lhe pagamos, é cuidar das grandes questões da coletividade: educação, saúde e segurança públicas, infra-estrutura. Resistimos por não querer, como Prometeu, viver acorrentados.
Recusamos o paternalismo estatal, e mais ainda a intervenção, porque temos, essa sim a nos defender, a Constituição Brasileira.
Está lá, no artigo 5º, inciso XVIII, de nossa Carta Magna: “ a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas, independe de autorização, sendo vedada a intervenção estatal em seu funcionamento.” Essa é uma cláusula pétrea, não pode ser modificada, de acordo com o artigo 60 da Lei Maior: “ não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir… os direitos e garantias individuais”.
O ECAD é fiscalizado, como qualquer empresa privada, pela Receita Federal, INSS, Ministério do Trabalho. Tem auditoria interna e externa, independente. Publica seus balanços na internet. Mas o verdadeiro fiscal do ECAD, que é apenas o braço arrecadador dos autores, é o autor, que é a razão de sua existência, o seu dono.
Vou falar sobre acontecimentos de que fui participante e testemunha.
Com a redemocratização do País, em 1985, o novo Governo criou o Ministério da Cultura e vinculou a ele o CNDA- Conselho Nacional de Direitos Autorais, criado pela lei 5988, de 73. Os novos ventos levaram os primeiros Ministros da Nova República a arejar a composição daquele Conselho, trazendo autores para trabalhar junto com os juristas e advogados que dele faziam parte.
Autores como Gonzaguinha, Maurício Tapajós, Joyce, José Carlos Capinam, Marcos Vinicius Mororó e eu – da área musical- escritores como José Louzeiro, Francisco Alvim, Alberto da Costa e Silva, Ivan Ângelo e Jota Dângelo e o fotógrafo Walter Firmo foram convocados para aliar sua experiência prática de criadores aos conhecimentos jurídicos dos especialistas.
Com a Constituinte, o novo CNDA desempenhou papel importante na afirmação da importância dos direitos autorais, influindo para que a redação do artigo 5º, “ Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, cláusula pétrea de nossa Constituição, protegesse de fato os autores e suas obras.
Está lá no inciso XXVII: “ aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.”
Esse meu interesse em entender o mundo autoral me levou a dedicar grande parte do meu precioso tempo de compositor e pai de família pela causa que é nobre, missão a que mais autores deveriam se dedicar.
Fui, durante esses anos, membro do Bureau Executivo da CISAC (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores) e presidente do Comitê Ibero-americano da mesma CISAC. Conheci de perto como funcionam as grandes sociedades autorais do mundo. A PRS, da Inglaterra; a GEMA, da Alemanha; a SACEM, da França; a JASRAC, do Japão e a SGAE, da Espanha. E fui associado da norte-americana ASCAP.
Abandonei minha relação com a sociedade norte-americana e sou hoje representado pela UBC em todo mundo, pois acredito que em meu país, em minha língua e com a nossa legislação, eu estou mais bem protegido.
Todo esse conhecimento me faz afirmar que a gestão coletiva praticada no Brasil é tão boa ou melhor do que a que existe nos demais países do mundo.
Pode-se ver que estou nessa batalha há muito tempo. Tenho em mim um sentimento coletivo que não enxergo em muitos dos meus companheiros de profissão. Por inocência ou ignorância da realidade do direito autoral no Brasil, declaram publicamente idéias que agridem os seus próprios interesses. Falam mal do prato e do cozinheiro que os alimenta. Com isso, dão força a quem não os respeita e os quer como pedintes. Aderem aos que não querem pagar pelos seus direitos. Coitados, abdicam do direito e responsabilidade de gerir o que é deles e clamam pela proteção do Estado. Que artistas são esses, que cidadãos são esses que, no palco da mídia, confessam sua incapacidade de solucionar seus problemas? As portas da gestão de seus direitos estão abertas, porque são deles. Venham ajudar o imperfeito a melhorar.
O Estado não foi feito para isso. Ele é uma criação do homem para cuidar do bem comum. O particular é questão para ser resolvida pelo particular. Seriam essas pessoas capazes de delegar ao Estado à criação de seus filhos? A resolução de seus problemas conjugais?
De uma fraude cometida por um estelionatário, e que era caso para a polícia investigar, e ela o fez, cria-se uma sórdida campanha na imprensa para esconder interesses escusos.
Os Senadores certamente não conheciam o lado oculto da lua. Espero que essa CPI possa iluminar a verdade e esclarecer as mentiras e os interesses obscuros que estão por trás de tudo isso.
Termino com a leitura de uma carta de princípios assinada por quase mil autores brasileiros.
O AUTOR EXISTE.
o direito autoral é uma conquista da civilização, o contrário é a barbárie.
o direito autoral é um dos direitos humanos (carta da ONU).
ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar sua obra (cláusula pétrea de nossa Constituição).
o direito autoral é um direito privado.
somos capazes de criar e administrar o que nos pertence. para isso, não precisamos da mão do Estado.
há dois lados na questão: o criador que quer receber e empresas que não querem pagar.
para resolver isso, a Justiça e o Estado podem e devem colaborar.
a lei atual protege os criadores no mundo real e no virtual. ela pode ser melhorada e aprimorada.
o que se passa na internet em relação ao direito autoral é transitório: a tecnologia que cria supostos conflitos os resolverá.
todos os autores têm de ter à sua disposição todas as informações sobre o que se arrecada e se distribui.
essa comunicação tem de ser pública e oferecida, também, ao Ministério da Cultura.
a função social da arte é espalhar beleza e prazer estético para a humanidade.
a obrigação de tornar a cultura acessível a todos é do Estado, sem prejudicar o autor.
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20.10.11
Entrevista ao Correio Brasiliense
A seguinte matéria, publicada no jornal Correio Brasiliense de 19 do corrente, foi feita a partir de uma entrevista que concedi a Severino Francisco.
Correio Brasiliense, 19/10/2011
Antonio Cicero fala sobre a preguiça que faz criar, hoje, na Caixa Cultural
Oswald de Andrade escreveu: ninguém quis comprar o poeta. Mas, na contramão das relações utilitaristas de mercado, a poesia resiste como uma atividade em que a preguiça se torna fecunda e produtiva. Poesia e preguiça são o tema que o poeta, filósofo e compositor carioca Antonio Cicero aborda hoje, a partir das 19h30, na Caixa Cultural: “Para quem pensa que tempo é dinheiro ou que só o perecível vale a pena, a poesia não tem lugar nenhum”, comenta Antonio Cicero. “Felizmente, nem todo mundo pensa assim.”
De maneira geral, a fruição de um poema exige mais tempo livre do que a de obras de outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura, ou numa escultura, ou na arquitetura de um prédio, para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito, observa Antonio Cicero. Quem lê um poema como se fosse um artigo de jornal, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para desfrutar um poema é necessário dedicar-lhe tempo: tempo livre de preocupações utilitárias, livre de finalidades ulteriores, livre de trabalho, livre, em suma, do princípio do desempenho, que rege quase toda a nossa vida cotidiana. “Para fazer um poema, é necessário ainda mais tempo livre. E nada garante que, ainda que um poeta dedique muito tempo à criação de um poema, esse poema vai ficar pronto. Ora, do ponto de vista de quem se encontra submisso ao princípio do trabalho ou do desempenho, alguém que se entrega desse modo a um tempo livre não está fazendo nada, de modo que é simplesmente preguiçoso.”
Cicero pinçou a expressão “preguiça fecunda” no poema A cabeleira, de Charles Baudelaire. Trata-se de um estado de espírito em que a sensibilidade, a imaginação, o intelecto, a cultura — em suma, as diferentes faculdades do poeta — brincam irresponsavelmente umas com as outras. “Nesse estado, abolem-se temporariamente as dicotomias necessárias para a vida utilitária, como a que separa sujeito de objeto, significado de significante, atividade de passividade, causa de efeito etc.” A internet provocaria uma preguiça infecunda e improdutiva, uma preguiça de ler? “Quanto à internet, creio que tudo depende do uso que dela se faz”, responde.
Os poetas modernos ou pós-modernos não assimilaram também a velocidade e a fugacidade, escrevendo com letras de macarrão ou em guardanapos, sem tempo para a preguiça? Cicero não crê que haja poetas de verdade que não tenham tempo para a preguiça, no sentido que indicou. Um poeta assim seria sem tempo para a poesia: “Quanto a escrever em guardanapos, muitas vezes isso ocorre porque a intuição produtiva ou a inspiração nem sempre vem quando a gente quer; às vezes, ela passa voando, quando a gente menos espera; e então, se o poeta não a capturar em pleno voo, e colocar num guardanapo, corre sério risco de perdê-la. Como diziam os antigos, a Musa é ciumenta”.
Banalização
Poetas modernos da qualidade de Baudelaire e Rimbaud usaram o haxixe e outras drogas com o objetivo de ampliar o campo da percepção. Hoje, as drogas foram massificadas e banalizadas. Mas Cicero lembra que o próprio Baudelaire dizia concordar com o teórico musical Auguste Barbereau, que afirmava que os grandes poetas não necessitavam de drogas, pois eram capazes de atingir um estado poético pelo puro e livre exercício da vontade. “De todo modo, eu faria algumas distinções. Penso que as drogas que criam dependência física, como a heroína, são simplesmente nocivas. Além disso, considero nocivas drogas como a cocaína e seus derivados, pois, independentemente de criarem dependência, tornam seus usuários pessoas extremamente desagradáveis e antipoéticas. Já a maconha e o haxixe, parecem-me ser mais ou menos como o álcool: algumas pessoas se dão bem com elas, outras mal. Quanto a mim, prefiro entrar no estado poético sem ter tomado droga nenhuma.”
Qual o lugar da poesia em que tempo é dinheiro? A apreensão utilitária e instrumental do ser, que é a que praticamos durante a maior parte da nossa vida, é absolutamente necessária, mas não é a única, responde Cicero. “É possível também uma apreensão estética do ser: uma disponibilidade tal às suas manifestações que as distinções utilitárias, instrumentais, estabelecidas pela razão crítica deixam, momentaneamente, de ter a última palavra. O poeta enquanto poeta, isto é, enquanto faz poesia, habita o mundo aberto pela apreensão estética do ser.”
Antônio Cicero não sabe dizer com precisão se houve queda no altíssimo nível poético das letras das canções populares no Brasil, depois de alcançar o ápice nas décadas de 1960 e 1960, pois, ultimamente, tem se dedicado quase exclusivamente à poesia feita pra ser lida, por um lado, e à filosofia, por outro: "E isso, não porque não goste do que se faz hoje em matéria de música, mas porque esses dois outros campos têm exigido quase todo o meu tempo. Mas há alguns artistas novos que admiro muito. Entre esses, faço questão de citar dois cantores e compositores: Leo Cavalcanti e Arthur Nogueira."
Depois da grande geração de poetas modernistas e do ciclo da Poesia marginal, Cicero identifica muitos poetas bons, mas sem necessariamente estar ligados em nenhuma corrente estética: "A geração de que você fala abriu caminho para uma pluralidade de poéticas. Cada poeta — e cada poema — deve ser julgado por si, e não pela sua pertinência a esta ou aquela corrente. A internet permite a muita gente mostrar o seu trabalho, o que é bom. Mas o que é bom é raro: e sempre foi assim."
Cicero descobriu a poesia por meio do ritmo de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, lido numa antologia escolar. Ao ser solicitado a citar os grandes poemas e os grandes versos que marcaram a sua vida, ele não nomeia nenhum, pois teme ser injusto. Mas, para ele, o maior livro brasileiro de poesia — e um dos maiores do mundo — é Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade. !Seria bom que se ensinasse a ler poesia – não digo para fora apenas, mas, sobretudo, para dentro – nas escolas. Mas, para isso, os próprios professores precisam aprender a ler poesia."
Correio Brasiliense, 19/10/2011
Antonio Cicero fala sobre a preguiça que faz criar, hoje, na Caixa Cultural
Oswald de Andrade escreveu: ninguém quis comprar o poeta. Mas, na contramão das relações utilitaristas de mercado, a poesia resiste como uma atividade em que a preguiça se torna fecunda e produtiva. Poesia e preguiça são o tema que o poeta, filósofo e compositor carioca Antonio Cicero aborda hoje, a partir das 19h30, na Caixa Cultural: “Para quem pensa que tempo é dinheiro ou que só o perecível vale a pena, a poesia não tem lugar nenhum”, comenta Antonio Cicero. “Felizmente, nem todo mundo pensa assim.”
De maneira geral, a fruição de um poema exige mais tempo livre do que a de obras de outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa pintura, ou numa escultura, ou na arquitetura de um prédio, para que elas nos deleitem. Podemos apreciá-las en passant. Não é assim com um poema escrito, observa Antonio Cicero. Quem lê um poema como se fosse um artigo de jornal, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para desfrutar um poema é necessário dedicar-lhe tempo: tempo livre de preocupações utilitárias, livre de finalidades ulteriores, livre de trabalho, livre, em suma, do princípio do desempenho, que rege quase toda a nossa vida cotidiana. “Para fazer um poema, é necessário ainda mais tempo livre. E nada garante que, ainda que um poeta dedique muito tempo à criação de um poema, esse poema vai ficar pronto. Ora, do ponto de vista de quem se encontra submisso ao princípio do trabalho ou do desempenho, alguém que se entrega desse modo a um tempo livre não está fazendo nada, de modo que é simplesmente preguiçoso.”
Cicero pinçou a expressão “preguiça fecunda” no poema A cabeleira, de Charles Baudelaire. Trata-se de um estado de espírito em que a sensibilidade, a imaginação, o intelecto, a cultura — em suma, as diferentes faculdades do poeta — brincam irresponsavelmente umas com as outras. “Nesse estado, abolem-se temporariamente as dicotomias necessárias para a vida utilitária, como a que separa sujeito de objeto, significado de significante, atividade de passividade, causa de efeito etc.” A internet provocaria uma preguiça infecunda e improdutiva, uma preguiça de ler? “Quanto à internet, creio que tudo depende do uso que dela se faz”, responde.
Os poetas modernos ou pós-modernos não assimilaram também a velocidade e a fugacidade, escrevendo com letras de macarrão ou em guardanapos, sem tempo para a preguiça? Cicero não crê que haja poetas de verdade que não tenham tempo para a preguiça, no sentido que indicou. Um poeta assim seria sem tempo para a poesia: “Quanto a escrever em guardanapos, muitas vezes isso ocorre porque a intuição produtiva ou a inspiração nem sempre vem quando a gente quer; às vezes, ela passa voando, quando a gente menos espera; e então, se o poeta não a capturar em pleno voo, e colocar num guardanapo, corre sério risco de perdê-la. Como diziam os antigos, a Musa é ciumenta”.
Banalização
Poetas modernos da qualidade de Baudelaire e Rimbaud usaram o haxixe e outras drogas com o objetivo de ampliar o campo da percepção. Hoje, as drogas foram massificadas e banalizadas. Mas Cicero lembra que o próprio Baudelaire dizia concordar com o teórico musical Auguste Barbereau, que afirmava que os grandes poetas não necessitavam de drogas, pois eram capazes de atingir um estado poético pelo puro e livre exercício da vontade. “De todo modo, eu faria algumas distinções. Penso que as drogas que criam dependência física, como a heroína, são simplesmente nocivas. Além disso, considero nocivas drogas como a cocaína e seus derivados, pois, independentemente de criarem dependência, tornam seus usuários pessoas extremamente desagradáveis e antipoéticas. Já a maconha e o haxixe, parecem-me ser mais ou menos como o álcool: algumas pessoas se dão bem com elas, outras mal. Quanto a mim, prefiro entrar no estado poético sem ter tomado droga nenhuma.”
Qual o lugar da poesia em que tempo é dinheiro? A apreensão utilitária e instrumental do ser, que é a que praticamos durante a maior parte da nossa vida, é absolutamente necessária, mas não é a única, responde Cicero. “É possível também uma apreensão estética do ser: uma disponibilidade tal às suas manifestações que as distinções utilitárias, instrumentais, estabelecidas pela razão crítica deixam, momentaneamente, de ter a última palavra. O poeta enquanto poeta, isto é, enquanto faz poesia, habita o mundo aberto pela apreensão estética do ser.”
Antônio Cicero não sabe dizer com precisão se houve queda no altíssimo nível poético das letras das canções populares no Brasil, depois de alcançar o ápice nas décadas de 1960 e 1960, pois, ultimamente, tem se dedicado quase exclusivamente à poesia feita pra ser lida, por um lado, e à filosofia, por outro: "E isso, não porque não goste do que se faz hoje em matéria de música, mas porque esses dois outros campos têm exigido quase todo o meu tempo. Mas há alguns artistas novos que admiro muito. Entre esses, faço questão de citar dois cantores e compositores: Leo Cavalcanti e Arthur Nogueira."
Depois da grande geração de poetas modernistas e do ciclo da Poesia marginal, Cicero identifica muitos poetas bons, mas sem necessariamente estar ligados em nenhuma corrente estética: "A geração de que você fala abriu caminho para uma pluralidade de poéticas. Cada poeta — e cada poema — deve ser julgado por si, e não pela sua pertinência a esta ou aquela corrente. A internet permite a muita gente mostrar o seu trabalho, o que é bom. Mas o que é bom é raro: e sempre foi assim."
Cicero descobriu a poesia por meio do ritmo de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, lido numa antologia escolar. Ao ser solicitado a citar os grandes poemas e os grandes versos que marcaram a sua vida, ele não nomeia nenhum, pois teme ser injusto. Mas, para ele, o maior livro brasileiro de poesia — e um dos maiores do mundo — é Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade. !Seria bom que se ensinasse a ler poesia – não digo para fora apenas, mas, sobretudo, para dentro – nas escolas. Mas, para isso, os próprios professores precisam aprender a ler poesia."
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17.10.11
Marcel Proust: de "Du côté de chez Swann"
Observação de Swann, em conversação:
"O que lamento nos jornais é que nos fazem prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, enquanto lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais".
PROUST, Marcel. "Du côté de chez Swann". In:_____À la recherche du temps perdu, vol.1. Paris: Pléiade, 1964.
"O que lamento nos jornais é que nos fazem prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, enquanto lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais".
PROUST, Marcel. "Du côté de chez Swann". In:_____À la recherche du temps perdu, vol.1. Paris: Pléiade, 1964.
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14.10.11
Machado de Assis: "Spinoza"
Spinoza
Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.
E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas
Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.
MACHADO DE ASSIS. "Ocidentais". In:_____Obras completas, vol.3. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973.
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Poema
11.10.11
Jorge Salomão: "Um novo organismo novo"
um novo organismo novo
pássaros despertam manhã
caboclo triste
ar de sertão
vida e homens áridos
com o pé na água do rio corrente
correr trechos
estradas
tampas
boca aberta cariada a sorrir por
montanhas de desconexas palavras
soltas ao vento no balanço da suave
palmeira que brilha nos últimos
raios de sol da tarde de hoje
SALOMÃO, Jorge. Conversa de mosquitos. Rio de Janeiro: Jacaré Produções, 2011.
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Poema
9.10.11
Macedonio Fernández: "Amor se fue" / "Amor foi embora"
Amor se fue
Amor se fue; mientras duró
de todo hizo placer.
Cuando se fue
Nada dejó que no doliera.
Amor foi embora
Amor foi embora; enquanto durou
de tudo fez prazer;
Quando foi embora
Nada deixou que não doesse.
FERNÁNDEZ, Macedonio. Poemas. Buenos Aires: Corregidor, 2010.
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Poema
7.10.11
Wisława Szymborska: "Elogio dos sonhos" / trad.: Regina Przybycien
Elogio dos sonhos
Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.
Falo grego fluente
e não só com os vivos.
Dirijo um carro
que me obedece.
Tenho talento,
escrevo grandes poemas.
Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.
Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.
Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.
Ao cair do telhado
desço de manso na relva.
Respiro sem problema
debaixo d'água.
Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.
Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.
Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.
Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.
Faz alguns anos
vi dois sóis.
E anteontem um pinguim.
Com toda a clareza.
SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Trad. de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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Wisława Szymborska
4.10.11
Fernando Pessoa: "A criança que fui chora na estrada"
A criança que fui chora na estrada (1933)
I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
PESSOA, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.
I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
PESSOA, Fernando. Novas Poesias Inéditas. Seleção, organização e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno. Lisboa: Ática, 1973.
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