31.12.11
Carlos Drummond de Andrade: "Procuro uma alegria"
Procuro uma alegria
Procuro uma alegria
na mala vazia
do fim do ano
e eis que tenho na mão
-- flor do cotidiano --
o vôo de um pássaro
e de uma canção
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
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Carlos Drummond de Andrade
28.12.11
Haroldo de Campos: "O poeta ezra pound desce aos infernos"
O poeta ezra pound desce aos infernos
não para o limbo
dos que jamais foram vivos
nem mesmo
para o purgatório dos que esperam
mas para o inferno
dos que perseveram no erro
apesar de alguma contrição
tardia e da silente senectude
- diretamente com retitude -
o velho ez
já fantasma de si mesmo
e em tanta danação
quanto fulgor de paraíso
CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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Poema
26.12.11
Maldita partícula
Recentemente, pesquisadores que trabalham no LHC, que é o maior acelerador de partículas do mundo, disseram ter visto indícios da existência do “bóson de Higgs”, uma partícula que explicaria por que todas as partículas têm massa. O fato de que essa partícula tenha sido apelidada de “partícula de Deus” animou muitos religiosos a pensarem que, caso seja provada sua existência, ela, de algum modo, reforçará a combalida hipótese da existência de Deus.
Ledo engano. Em interessante artigo intitulado "Maldita partícula", publicado no dia 18 do corrente na Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman mostra que o apelido “partícula de Deus” é um caso de “inadequação entre referência e significado”. Segundo ele, “o apelido surgiu em 1993, como título do livro do físico Leon Lederman: "The God Particle" (a partícula de Deus). O problema é que esse título foi, segundo o autor, dado contra a sua vontade. Lederman queria chamar o livro de "maldita partícula" ("goddamn particle"), "porque ninguém conseguia achá-la". Esperto, o editor ficou só com a primeira sílaba, ‘God’, e a obra e o apelido foram um sucesso. Agora, parece, até encontraram a maldita partícula.” Que os religiosos tirem o cavalinho da chuva...
23.12.11
José Gorostiza: "Pausas I": tradução por Adriano Nunes
Pausas I
O mar! O mar!
Sinto-o de mim adentro.
E apenas por pensar
No mar, tão meu
Tem um sabor de sal meu pensamento.
Pausas I
El mar! ¡El mar!
Dentro de mí lo siento.
Ya sólo de pensar
en él, tan mío
tiene un sabor de sal mi pensamiento.
GOROSTIZA, José. Poesía y Poética. Madrid: ALLCA XX, 1997.
Agradeço a Adriano Nunes pelo por me ter enviado o poema e a tradução que dele fez.
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Poema
21.12.11
Bertolt Brecht: "Die Auswanderung der Dichter" / "A emigração dos poetas": trad. de Paulo César de Souza
A emigração dos poetas
Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Lu-Tu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípides foi ameaçado com processos
E Shakespeare, moribundo, foi impedido
[de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o teto de palha dinamarquês.
Die Auswanderung der Dichter:
Homer hatte kein Heim
Und Dante mußte das seine verlassen.
Li-Po und Tu-Fu irrten durch Bürgerkriege
Die 30 Millionen Menschen verschlangen
Dem Euripides drohte man mit Prozessen
Und dem sterbenden Shakespeare hielt man den
[Mund zu.
Den François Villon suchte nicht nur die Muse
Sondern auch die Polizei.
“Der Geliebte” genannt
Ging Lukrez in die Verbannung
So Heine, und so auch floh
Brecht unter das danische Strohdach.
BRECHT, Bertolt. "Flüchtlingsgespräche". Gesammelte Werke, Bd.14. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1967.
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.
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Poema
20.12.11
18.12.11
Sobre um texto apócrifo
Um amigo me enviou por e-mail um poema atribuído a Shakespeare. Ele começa assim:
“Depois de algum tempo você aprende a diferença,
a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se.
E que companhia nem sempre significa segurança.
[...]”
Como sou um aficionado de Shakespeare, vi logo que essas palavras não foram escritas pelo bardo. Ao perceber esse fato, resolvi fazer uma pesquisa sobre sua autoria. Nos sites brasileiros da Internet, ela é quase sempre atribuída a Shakespeare. Nos americanos, o texto, cujo começo, em ingles, diz
“After a while you learn
The subtle difference between
Holding a hand and chaining a soul
And you learn that love doesn't mean leaning
And company doesn't always mean security.
[…]”
é ora atribuído a Shakespeare, ora a uma certa Veronica A. Shoffstall. Ocorre que não se encontra, no catálogo da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, absolutamente nenhuma obra de tal escritora. Isso indica que ela simplesmente não existe.
Há sites, porém, em que o texto em questão é atribuído a Jorge Luis Borges. Isso ocorre principalmente nos sites hispânicos, onde ele se dá como
“Después de algún tiempo aprenderás la sutil diferencia entre
sostener una mano y encadenar un alma,
y aprenderás que amar no significa apoyarse,
y que compañía no siempre significa seguridad.
[…]”
Ora, ocorre que tal poema não se encontra nas Obras completas de Borges editadas pela Emecé, nem me parece ter nada a ver com Borges, do ponto de vista estilístico. Trata-se, na verdade, de um texto apócrifo. De todo modo, segue-se que, embora não tenha sido escrito por Borges, o mistério de sua autoria é, certamente, borgeano...
16.12.11
Salvatore Quasimodo: "Dolore di cose che ignoro" / "Pena de coisas que nem sei": tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti
Pena de coisas que nem sei
Densa de brancas e de negras raízes
cheira a fermento e a vermes
a terra talhada d´água.
Pena de coisas que nem sei
em mim rebenta: não basta uma morte
se, escuta, mais vezes me pesa
no coração, com sua relva, um pedaço de terra.
Dolore di cose che ignoro
Fitta di bianche e di nere radici
di lievito odora e lombrichi;
tagliata dall’acque la terra.
Dolore di cose che ignoro
mi nasce: non basta una morte
se ecco più volte mi pesa
con l’erba, sul cuore, una zolla.
QUASIMODO, Salvatore. Poesias. Seleção, tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 1999.
14.12.11
Stendhal: trecho de "Le rouge et le noir"
Quelques heures après, le grand soleil le surprit appuyé sur sa table. Un des moments les plus pénibles de sa vie était celui où chaque matin, en s'éveillant, il apprenait son malheur.
Algumas horas depois, o grande sol o surpreendeu apoiado sobre a mesa. Um dos momentos mais penosos de sua vida era aquele em que a cada manhã, ao acordar, tomava conhecimento de sua infelicidade.
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Stendhal
11.12.11
Adriana Calcanhotto canta, em 12 de novembro de 2008, no Palau de la Musica, em Barcelona, sua bela versão musical do genial poema "Sem saída", de Augusto de Campos:
Sem saída
A estrada é muito comprida
O caminho é sem saída
Curvas enganam o olhar
Não posso ir mais adiante
Não posso voltar atrás
Levei toda minha vida
Nunca saí do lugar
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Augusto de Campos,
Canção,
Poema
Agatão, o Tragediógrafo: Fragmento 6
A técnica ama o acaso e o acaso a técnica.
τέχνη τύχην ἔστερξε καὶ τύχη τέχνην
AGATÃO, o Tragediógrafo. "Fragmento 6". In: SNELL, Bruno (org.). Tragicorum Graecorum fragmenta, vol.1. Göttingen: Vandenhoeck, 1971.
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8.12.11
Thomas Jefferson: "Assenta a razão..."
Assenta a razão firmemente em seu lugar e convoca a seu tribunal todo fato, toda opinião. Questiona corajosamente até a existência de um deus; pois, se houver um deus, ele deve antes aprovar a homenagem da razão do que a do temor de olhos vendados.
JEFFERSON, Thomas. "Letter to Peter Carr, Aug. 10, 1787". Disp. no site The letters of Thomas Jefferson: 1743-1826, no URL http://www.let.rug.nl/usa/P/tj3/writings/brf/jefl61.htm.
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Razão,
Thomas Jefferson
5.12.11
Sophia de Mello Breyner Andresen: "O Minotauro"
O Minotauro
Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
Há uma rápida dança que se dança em frente
[de um toiro
Na antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
Só bebi retsina tendo derramado na terra a
[parte que pertence aos deuses
De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo
[vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua
Devastada era eu própria como a cidade em
[ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que
[mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra
[anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega
Pinturas ondas colunas e planícies
Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes
[e vermelhos
palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar da sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e
[terror
Imanentes ao dia –
Caminhei no palácio dual de combate
[e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos [matinais
nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se
[vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde e se desune e
[se reúne
E esta é a dança do ser
Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minóica
São feitos com barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro
Em Creta onde o Minotauro reina atravessei
[a vaga
De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das [coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que
[percorrem o labirinto,
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Dual". In:_____. Obra poética. SOUSA, Carlos Mendes de (org.). Alfragide: Caminho, 2001.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
3.12.11
Eucanaã Ferraz: "Setembro"
Eucanaã Ferraz
Setembro
Nunca mais será setembro,
nunca mais a tua voz dizendo
nunca mais, eu lembro,
nunca mais, eu não esqueço,
a pele, nunca mais,
o teu olhar quebrado,
dividido, vou esquecê-lo,
é o que te digo, nunca mais
a minha mão no teu sorriso,
a tua voz cantando,
vou apagá-la para sempre,
e os nossos dias, setembro, lembro
bem, dentro a tua voz dizendo não
(ouço ainda agora), como se quebrasse
Um copo, mil copos, contra o muro.
Rasgarei o que não houve, o que seria,
mesmo que tudo em mim me diga não
(e diz), mas é preciso.
Como não se pensa mais um pensamento,
quero, prometo:
nunca mais será setembro.
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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